quarta-feira, 24 de abril de 2013

O verdadeiro conhecimento de si mesmo (São Boaventura)

Nota do blogue: Agradeço ao amigo Fabrício pelo envio da providencial transcrição, fique à vontade para me enviar quantas transcrições quiser desse ótimo santo (ou de outros textos), sendo que seus escritos são raros. Deus lhe pague.

Indigna escrava do Crucificado e da SS. Virgem,
Letícia de Paula

A VIDA PERFEITA 
O verdadeiro conhecimento de si mesmo
(São Boaventura)

            1.      A esposa de Cristo que deseja elevar-se até o cimo da perfeição, há de principiar por si mesma, isto é, esquecida de todas as coisas exteriores, deve penetrar no íntimo de sua consciência e ali discutir, examinar e ver, com diligente cuidado, todos os defeitos, todos os hábitos, todas as inclinações, todas as obras, todos os pecados passados e presentes. Se achar em si alguma coisa menos reta, chore-a sem demora na amargura de seu coração. E para melhor chegares, reverenda madre, a este conhecimento, sabe que todos os nossos pecados e males cometemo-los ou por negligência, ou por malícia.
            Acerca destas três coisas, pois, deve versar o exame de todos os teus males; de outra forma jamais poderás chegar ao perfeito conhecimento de ti mesma.

                                                                  
            2.      Portanto, se desejas conhecer-te a ti mesma e chorar os males cometidos, deves primeiro refletir se há ou houve em ti alguma negligência. Examina-te sobre a negligência com que vigias o teu coração, sobre a negligência com que passas o tempo, e examina-te também se n’alguma obra não tens intenção pecaminosa.
            Estas três coisas cumpre observar com o maior cuidado: vigiar bem o coração, empregar utilmente o tempo, e prefixar a toda obra um fim bom e conveniente.
Igualmente deves refletir sobre a negligência que tivestes na oração, na leitura e na execução da obra; porque nestas três coisas te deves exercer e aperfeiçoar com afinco, se queres produzir e dar bom fruto a seu tempo. Tão intimamente estas três coisas estão unidas, que de forma alguma é suficiente uma sem a outra. Outrossim, cumpre refletires sobre quanto és ou foste negligente em fazer penitência, em lutar e em progredir; porque é mister chorar, com suma diligência, os males cometidos, repelir as tentações diabólicas, e progredir de uma virtude para outra para que possas chegar à terra prometida.
            Desta forma, pois, o exame se ocupa com a negligência.

            3.      Se, porém, desejas conhecer-te melhor, deves, em segundo lugar, refletir se em ti dominou ou domina a concupiscência da voluptuosidade, da curiosidade ou da vaidade. Certamente então reina no homem religioso a concupiscência da voluptuosidade quando deseja coisas doces, isto é, manjares saborosos; quando deseja coisas moles; isto é, vestidos deliciosos; quando deseja coisas carnais, isto é, prazeres luxuriosos.
            A concupiscência da curiosidade existe na serva de Deus, quando deseja saber coisas secretas, quando deseja ver coisas belas, quando deseja possuir coisas raras.
           A concupiscência da vaidade, porém, impera na esposa de Cristo, quando deseja o favor dos homens, quando busca o louvor humano, quando almeja honra diante dos homens. Como veneno deve a serva de Cristo fugir a tudo isso, porque é tudo isso a raiz de todo o mal.

            4.      Em terceiro lugar, se queres ter conhecimento certo de ti mesma, deves diligentemente refletir se há ou houve em ti a malícia da iracúndia, da inveja e da preguiça. Ouve, caríssima irmã, o que digo solicitamente.
            No homem religioso existe a iracúndia quando no espírito, no coração, no afeto, nos sinais, no semblante, na palavra ou no clamor mostra a seu próximo indignação do coração, por mais leve que seja, ou rancor.
            A inveja reina no homem quando se alegra com a desgraça do próximo e se entristece com a sua prosperidade, quando sente prazer com os males do próximo e desfalece com a sua felicidade.
            A preguiça reina no religioso, quando é tíbio, sonolento, ocioso, lerdo, negligente, frouxo, dissoluto, indevoto, triste e tedioso. Tudo isto a esposa de Cristo deve detestar e fugir-lhe como veneno mortífero, porque nestas coisas consiste a perdição do corpo e da alma.

            5.      Se, portanto, caríssima serva de Deus, queres chegar ao perfeito conhecimento de ti mesma, “torna a ti mesma, entra no teu coração, aprende a conhecer o teu espírito. Vê o que és, o que foste, o que devias ser, o que podias ser: o que foste pela natureza, o que agora és pela culpa, o que devias ser por teu trabalho, o que ainda podes ser pela graça.”

            Ouve, ainda caríssima madre, ouve o profeta Davi, como ele se faz o teu exemplo: “Meditei, diz ele, de noite no meu coração, exercitei-me e espanei o meu espírito. (Salmos 76. 7) Meditava ele no seu coração; medita também tu no teu coração. Espanava ele o seu espírito; espana também tu o teu espírito. Trabalha nesse campo, presta atenção a ti mesma.
            Se com insistência fazes este exercício, sem dúvida acharás um precioso tesouro escondido. Pois em virtude deste exercício cresce a plenitude do ouro, a ciência é multiplicada e aumentada a sabedoria.
            Com este exercício purificam-se os olhos do coração, aguça-se o engenho, dilata-se a inteligência. De nada faz um reto juízo quem não se conhece a si mesmo, quem não pensa na sua dignidade. Desconhece por completo que opinião deva fazer do espírito angélico e do divino quem não reflete antes sobre o seu próprio espírito. Se ainda não és capaz de entrar em ti mesma, como serás capaz de elevares-te a coisas que são acima de ti? Se ainda não és digna de entrar no primeiro tabernáculo, com que cara presumes entrar no segundo tabernáculo? (1)

            6.      Se desejas elevar-te, como São Paulo, ao segundo e terceiro céu, hás de passar pelo primeiro, isto é, pelo teu coração. O modo como possas devas fazê-lo, suficientemente t’o ensinei acima. Mas também São Bernardo otimamente te informa quando diz: “Se queres conhecer o estado de tua perfeição, examina, em discussão constante, a tua vida, e reflete diligentemente, quanto te adiantas e quanto te atrasas, quais são os teus costumes, quais as tuas inclinações, quão semelhante ou dessemelhante és a Deus, quão perto, ou quão longe.”
            Oh! Como é grande o perigo do religioso que quer saber muitas coisas, mas não tem verdadeiro e sincero desejo de conhecer-se a si mesmo! Oh! Como está prestes a perder-se o religioso que é curioso em conhecer as coisas, solicito em julgar as consciências dos outros, mas ignora e desconhece a própria!
            Ó meu Deus, donde tanta cegueira num religioso? Eis, a causa é patente, ouve-a. Porque a mente do homem é distraída pelos cuidados, não entra em si pela memória; porque é anuviada por fantasias, não torna a si pela inteligência; porque é arrastada por concupiscências ilícitas, jamais se restaura pelo desejo da suavidade intima e da alegria espiritual.
            Por isto jaz totalmente submerso nessas coisas sensíveis, é incapaz de entrar em si mesmo e penetrar até à imagem de Deus no seu íntimo. Desta forma o espírito se lhe reduz à miséria; ignora e desconhece-se a si mesmo.
            Procura, pois, lembrares-te de ti e conheceres-te a ti mesma, deixando de lado tudo o mais. Isto pedia também São Bernardo, dizendo: “Deus me dê a graça de não saber outra coisa senão que me conheça a mim mesmo.”

            ***

            (1) A passagem citada de São Vitor entende-se melhor pelo que São Boaventura diz no seu itinerário da mente de Deus (c.5 n.1), onde distingue um tríplice modo de contemplar a Deus, isto é, fora de nós pelos vestígios que ali encontramos de Deus; dentro de nós, isto é, pela imagem de Deus que é a alma com suas potências e faculdades; acima de nós, isto é, pela luz que resplandece sobre nós; e depois acrescenta o Santo: "os que se exerceram no primeiro modo já entraram no adro do tabernáculo; os que no  segundo, entraram no santo; mas os que no terceiro, entram com o Sumo Pontífice no Santo dos Santos.” (Veja-se o livro do Êxodo 25-28 onde se descreve o tabernáculo).