Nota do blogue: Agradeço ao amigo Fabrício pelo envio da providencial transcrição, fique à vontade para me enviar quantas transcrições quiser desse ótimo santo (ou de outros textos), sendo que seus escritos são raros. Deus lhe pague.
Indigna escrava do Crucificado e da SS. Virgem,
Letícia de Paula
A VIDA PERFEITA
O verdadeiro conhecimento de si
mesmo
(São Boaventura)
1. A
esposa de Cristo que deseja elevar-se até o cimo da perfeição, há de principiar
por si mesma, isto é, esquecida de todas as coisas exteriores, deve penetrar no
íntimo de sua consciência e ali discutir, examinar e ver, com diligente
cuidado, todos os defeitos, todos os hábitos, todas as inclinações, todas as
obras, todos os pecados passados e presentes. Se achar em si alguma coisa menos
reta, chore-a sem demora na amargura de seu coração. E para melhor chegares,
reverenda madre, a este conhecimento, sabe que todos os nossos pecados e males
cometemo-los ou por negligência, ou por malícia.
Acerca
destas três coisas, pois, deve versar o exame de todos os teus males; de outra
forma jamais poderás chegar ao perfeito conhecimento de ti mesma.
2. Portanto,
se desejas conhecer-te a ti mesma e chorar os males cometidos, deves primeiro
refletir se há ou houve em ti alguma negligência. Examina-te sobre
a negligência com que vigias o teu coração, sobre a negligência com
que passas o tempo, e examina-te também se n’alguma obra não tens intenção
pecaminosa.
Estas três
coisas cumpre observar com o maior cuidado: vigiar bem o coração,
empregar utilmente o tempo, e prefixar a toda obra um fim bom
e conveniente.
Igualmente deves refletir sobre a negligência que tivestes
na oração, na leitura e na execução da obra;
porque nestas três coisas te deves exercer e aperfeiçoar com afinco, se queres
produzir e dar bom fruto a seu tempo. Tão intimamente estas três coisas estão
unidas, que de forma alguma é suficiente uma sem a outra. Outrossim, cumpre
refletires sobre quanto és ou foste negligente em fazer penitência,
em lutar e em progredir; porque é mister chorar,
com suma diligência, os males cometidos, repelir as tentações diabólicas, e
progredir de uma virtude para outra para que possas chegar à terra prometida.
Desta
forma, pois, o exame se ocupa com a negligência.
3. Se,
porém, desejas conhecer-te melhor, deves, em segundo lugar, refletir se em ti
dominou ou domina a concupiscência da voluptuosidade, da curiosidade ou da
vaidade. Certamente então reina no homem religioso a concupiscência da
voluptuosidade quando deseja coisas doces, isto é, manjares saborosos; quando
deseja coisas moles; isto é, vestidos deliciosos; quando deseja coisas carnais,
isto é, prazeres luxuriosos.
A
concupiscência da curiosidade existe na serva de Deus, quando deseja saber
coisas secretas, quando deseja ver coisas belas, quando deseja possuir coisas
raras.
A
concupiscência da vaidade, porém, impera na esposa de Cristo, quando deseja o
favor dos homens, quando busca o louvor humano, quando almeja honra diante dos
homens. Como veneno deve a serva de Cristo fugir a tudo isso, porque é tudo
isso a raiz de todo o mal.
4. Em
terceiro lugar, se queres ter conhecimento certo de ti mesma, deves
diligentemente refletir se há ou houve em ti a malícia da iracúndia, da inveja
e da preguiça. Ouve, caríssima irmã, o que digo solicitamente.
No homem
religioso existe a iracúndia quando no espírito, no coração, no afeto, nos
sinais, no semblante, na palavra ou no clamor mostra a seu próximo indignação
do coração, por mais leve que seja, ou rancor.
A inveja
reina no homem quando se alegra com a desgraça do próximo e se entristece com a
sua prosperidade, quando sente prazer com os males do próximo e desfalece com a
sua felicidade.
A preguiça
reina no religioso, quando é tíbio, sonolento, ocioso, lerdo, negligente,
frouxo, dissoluto, indevoto, triste e tedioso. Tudo isto a esposa de Cristo
deve detestar e fugir-lhe como veneno mortífero, porque nestas coisas consiste
a perdição do corpo e da alma.
5. Se, portanto, caríssima serva de Deus, queres chegar ao
perfeito conhecimento de ti mesma, “torna a ti mesma, entra no teu
coração, aprende a conhecer o teu espírito. Vê o que és, o que foste, o que
devias ser, o que podias ser: o que foste pela natureza, o que agora és pela
culpa, o que devias ser por teu trabalho, o que ainda podes ser pela graça.”
Ouve,
ainda caríssima madre, ouve o profeta Davi, como ele se faz o teu
exemplo: “Meditei, diz ele, de noite no meu coração, exercitei-me e
espanei o meu espírito. (Salmos 76. 7) Meditava ele no seu coração;
medita também tu no teu coração. Espanava
ele o seu espírito; espana também tu o teu espírito. Trabalha nesse campo,
presta atenção a ti mesma.
Se com
insistência fazes este exercício, sem dúvida acharás um precioso tesouro
escondido. Pois em virtude deste exercício cresce a plenitude do ouro, a
ciência é multiplicada e aumentada a sabedoria.
Com este
exercício purificam-se os olhos do coração, aguça-se o engenho, dilata-se a
inteligência. De nada faz um reto juízo quem não se conhece a si mesmo, quem
não pensa na sua dignidade. Desconhece por completo que opinião deva fazer do espírito
angélico e do divino quem não reflete antes sobre o seu próprio espírito. Se
ainda não és capaz de entrar em ti mesma, como serás capaz de elevares-te a
coisas que são acima de ti? Se ainda não és digna de entrar no primeiro
tabernáculo, com que cara presumes entrar no segundo tabernáculo? (1)
6. Se desejas elevar-te, como São Paulo, ao segundo e terceiro
céu, hás de passar pelo primeiro, isto é, pelo teu coração. O modo como possas
devas fazê-lo, suficientemente t’o ensinei acima. Mas também São Bernardo
otimamente te informa quando diz: “Se queres conhecer o estado de tua
perfeição, examina, em discussão constante, a tua vida, e reflete
diligentemente, quanto te adiantas e quanto te atrasas, quais são os teus
costumes, quais as tuas inclinações, quão semelhante ou dessemelhante és a
Deus, quão perto, ou quão longe.”
Oh! Como é
grande o perigo do religioso que quer saber muitas coisas, mas não tem
verdadeiro e sincero desejo de conhecer-se a si mesmo! Oh! Como está prestes a
perder-se o religioso que é curioso em conhecer as coisas, solicito em julgar
as consciências dos outros, mas ignora e desconhece a própria!
Ó meu Deus,
donde tanta cegueira num religioso? Eis, a causa é patente, ouve-a. Porque a
mente do homem é distraída pelos cuidados, não entra em si pela memória; porque
é anuviada por fantasias, não torna a si pela inteligência; porque é arrastada
por concupiscências ilícitas, jamais se restaura pelo desejo da suavidade
intima e da alegria espiritual.
Por isto
jaz totalmente submerso nessas coisas sensíveis, é incapaz de entrar em si
mesmo e penetrar até à imagem de Deus no seu íntimo. Desta forma o espírito se
lhe reduz à miséria; ignora e desconhece-se a si mesmo.
Procura,
pois, lembrares-te de ti e conheceres-te a ti mesma, deixando de lado tudo o
mais. Isto pedia também São Bernardo, dizendo: “Deus me dê a graça de
não saber outra coisa senão que me conheça a mim mesmo.”
***
(1) A passagem citada de São Vitor entende-se melhor pelo que
São Boaventura diz no seu itinerário da mente de Deus (c.5 n.1), onde distingue
um tríplice modo de contemplar a Deus, isto é, fora de nós pelos vestígios que
ali encontramos de Deus; dentro de nós, isto é, pela imagem de Deus que é a
alma com suas potências e faculdades; acima de nós, isto é, pela luz que
resplandece sobre nós; e depois acrescenta o Santo: "os que se exerceram
no primeiro modo já entraram no adro do tabernáculo; os que no segundo,
entraram no santo; mas os que no terceiro, entram com o Sumo Pontífice no Santo
dos Santos.” (Veja-se o livro do Êxodo 25-28 onde se descreve o tabernáculo).