A Vida Espiritual explicada e comentada
Adolph Tanquerey
A avareza está em conexão com a concupiscência
dos olhos, de que já falamos (n.° 199).
Exporemos:
1. ° a sua natureza;
2. ° a sua malícia,
3. ° os seus remédios.
1. ° Natureza. A avareza é o amor desordenado dos bens da terra. Para
mostrar onde se encontra a desordem da avareza, importa recordar, primeiro, o
fim para que Deus deu ao homem os bens temporais.
A) O fim, que Deus se propôs, é
duplo: a nossa utilidade pessoal e a dos nossos irmãos.
a) Os bens da terra são nos
concedidos para ocorrerem às necessidades temporais do homem, tanto da alma
como do corpo, para conservarem a nossa vida e a dos que dependem de nós, e
para nos darem meios de cultivarmos a inteligência e demais faculdades.
Entre esses bens:
1) uns são necessários para o
presente ou para o futuro: é um dever adquiri-los por meio do trabalho honesto;
2) os outros são úteis para aumentar
gradualmente os nossos recursos, assegurar o nosso bem-estar ou o dos outros,
contribuir para o bem público, favorecendo as ciências ou as artes. Não é
proibido desejá-los para um fim honesto, contanto que se reserve uma parte para
os pobres e para as boas obras.
b) São-nos também dados estes bens
para socorrermos os nossos irmãos que estão na indigência. Somos, pois, em
certa medida, tesoureiros da Providência, e devemos dispor do supérfluo para
assistir aos pobres.
B) Agora já nos é mais fácil mostrar
onde se encontra a desordem no amor dos bens da terra.
a) Está muitas vezes na intenção:
desejam-se as riquezas, por si mesmas, como fim, ou por fins intermédios que
se erigem em fim último, por exemplo, para alcançar prazeres ou honras. Parar ali,
não encarar a riqueza como meio de agenciar bens superiores, é uma espécie de idolatria,
o culto do bezerro de ouro; não se vive mais que para o dinheiro.
b) Manifesta-se ainda na maneira de
as adquirir: procuram-se com avidez, por toda a espécie de meios, com prejuízo
dos direitos doutrem, com dano da saúde própria ou dos empregados, por meio de
especulações temerárias, com risco de perder o fruto das próprias economias.
c) Aparece também na maneira de usar
deles:
1) Só se despendem de má vontade,
com mesquinhez; o que se quer é acumular, para maior segurança, ou para gozar
da influência que dá a riqueza;
2) não se dá nada ou quase nada aos
pobres e às boas obras: capitalizar, eis o fim supremo que se procura a todo o
transe.
3) Alguns chegam deste modo a amar o
dinheiro como um ídolo, a aferrolhá-lo no cofre, a apalpá-lo com amor: é o tipo
clássico do avarento.
C)
Este defeito não é geralmente o dos jovens, que, ainda levianos e
imprevidentes, não pensam em capitalizar; há contudo exceções entre os
caracteres sombrios, inquietos, calculadores. Na idade madura ou na velhice é
que ele se manifesta: então é que se desenvolve o temor de vir a passar míngua,
fundado por vezes no receio das doenças ou dos acidentes que podem produzir a
impotência ou a incapacidade de trabalhar. Os solteirões e solteironas estão
particularmente expostos a este vício, por não terem filhos que os socorram na
velhice.
D) A civilização moderna desenvolveu
outra forma do amor insaciável das riquezas, a plutocracia, a sede de chegar a
ser milionário ou até bilionário, não para assegurar o seu futuro ou o de seus
filhos, senão para adquirir esse poder dominador que o dinheiro conquista. Quem
tem à sua disposição somas enormes, goza de grandíssima influência, exerce um
poder muitas vezes mais eficaz que os governantes, é o rei do ferro, do aço,
do petróleo, da finança e manda aos soberanos como aos povos. Esta dominação
do ouro degenera muitas vezes em tirania intolerável.
2.
° Sua malícia. A) A avareza é um
sinal de desconfiança de Deus, que prometeu velar sobre nós com paternal
solicitude, não nos deixando jamais passar falta do necessário, contando que
tenhamos confiança n’Ele. Convida-nos a olhar para as aves do céu, que não
trabalham nem fiam, não certamente para nos incitar à preguiça, senão para acalmar
as nossas preocupações e nos estimular à confiança em nosso Pai celestial. Ora
o avarento, em lugar de pôr a sua confiança em Deus, coloca-a na multidão das
suas riquezas e faz injúrias a Deus, desconfiando d”Ele: «Ecce homo qui non posuit Deum adiutorem suum, sed speravit in
multitudine divitiarum suarum et praevaluit in vanitate sua[1]
Esta desconfiança é acompanhada de excessiva confiança em si mesmo, na sua
atividade pessoal: quer o homem ser a sua providência, e assim cai numa espécie
de idolatria, fazendo do dinheiro o seu Deus. Ora, ninguém pode servir ao
mesmo tempo a dois senhores, a Deus e à riqueza: non potestis Deo servire et mammonae[2]».
É, pois, grave de sua natureza este
pecado, pelas razões que acabamos de indicar, é o também, sempre que leva a
faltar aos deveres graves da justiça, pelos meios fraudulentos que porventura
se empreguem, para adquirir e reter a riqueza; da caridade, quando se não dão
as esmolas necessárias; da religião, quando alguém se deixa de tal modo
absorver pelos negócios que menospreza os deveres religiosos. - Não passa, porém,
de pecado venial, quando nos não leva a faltar a qualquer das grandes virtudes
cristãs, nem muito menos aos deveres para com Deus.
B) Sob o aspecto da perfeição, é
gravíssimo obstáculo o amor desordenado das riquezas.
a) E paixão que tende a suplantar a
Deus em nosso coração: este coração, que é templo de Deus, é invadido por toda
a sorte de desejos inflamados das coisas da terra, de inquietações, de
preocupações absorventes. Ora, para nos unirmos a Deus, é mister desprender o
coração de qualquer criatura ou preocupação terrena; porque Deus que «todo o espírito,
todo o coração, todo o tempo e todas as forças de suas pobres criaturas». - É
sobretudo necessário esvaziá-lo do orgulho; ora o apego às riquezas desenvolve
esse orgulho, porque o homem tem mais confiança nos bens terrenos que em Deus.
Deixar prender o coração ao dinheiro
é, pois, levantar um obstáculo ao amor de Deus; porque onde está o nosso
tesouro lá está também o nosso coração: «ubi
thesaurus vester, ibi et cor vestrum erit». Desprendê-lo é abrir a Deus a
porta do coração: uma alma despojada dos bens da terra é rica do próprio Deus: toto Deo dives est.
b) A avareza conduz igualmente à
imortificação e à sensualidade: quem tem dinheiro e o ama, quer gozar dele e
comprar com ele muitos prazeres; ou então, se se priva desses prazeres, é para
apegar o coração ao dinheiro. Em ambos os casos, é sempre um ídolo que nos afasta
de Deus. Importa, pois, combater esta triste inclinação.
3. ° Remédios. A) O melhor remédio é a convicção profunda, fundada na
razão e na fé, que as riquezas não são fim, senão meios que nos dá a
Providência, para acudirmos às nossas necessidades e às de nossos irmãos; que
Deus nunca deixa de ser o soberano Senhor delas; que nós, a bem dizer, não
passamos de meros administradores, e que um dia havemos de dar conta delas ao
Juiz Supremo. - E depois, são bens que passam, que não levaremos conosco para a
outra vida, onde não corre essa moeda; se somos prudentes, para o céu e não
para a terra é que trataremos de capitalizar: «Não queirais entesourar para
vós tesouros na terra, onde a ferrugem nem a traça os destroem e os ladrões os
desenterram e furtam. Entesourai antes para vós tesouros no céu, onde nem a ferrugem
nem a traça os destroem e onde os ladrões não os desenterram, nem furtam».
B) Para melhor desapegar o coração,
não há meio mais eficaz que depositar os seus bens no banco do céu,
consagrando uma parte generosa aos pobres e às obras. Dar aos pobres é
emprestar a Deus, é receber o cêntuplo, ainda mesmo neste mundo, tendo a
consolação de fazer ditosos à roda de si, mas sobretudo no céu, onde Jesus, que
considera como dado a Si mesmo o que foi dado ao menor dos seus, se encarregará
de restituir em riquezas imperecedouras os bens temporais que houvermos
sacrificado por Ele. Pendentes são, pois, aqueles que cambiam os tesouros da
terra pelos do céu. Procurar a Deus, tender à santidade, eis aqui em que
consiste a prudência cristã: «Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça,
e tudo isto vos será dado por acréscimo: Quaerite
primum regnum Dei et iustitiam eius; et haec omnia adiicientur vobis[3]»
C) Os perfeitos vão mais longe:
vendem tudo, para darem aos pobres, ou para o porem em comum, entrando numa
congregação. - Pode também algum, sem abdicar o domínio, despojar-se dos
rendimentos não fazendo uso deles senão conforme o parecer dum prudente diretor
Desse modo, sem sairmos do estado em que a Providência nos colocou, podemos
praticar o desprendimento de espírito e do coração.
Conclusão
E assim, a luta contra os sete
pecados capitais acaba de desarraigar em nós as tendências más que resultam da
concupiscência. Ficarão sempre em nós, sem dúvida, algumas dessas tendências,
para nos exercitarem na paciência e despertarem o sentimento da desconfiança
em nós mesmos; serão, porém, muito menos perigosas e apoiados na graça de
Deus, mais facilmente delas triunfaremos. Apesar de todos os nossos esforços,
elevar-se-ão ainda com certeza tentações em nossa alma, que a Providência
divina permitirá, para nos dar ocasião de novas vitórias.
[1] Sl 51,9.
[2] Mt 6,24.
[3] Mt 33.