Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
II— Pecados do coração contra o
próximo
1 — Antipatia
Antipatias são sentimentos de
repugnância, irrefletidos, persistentes, que se experimentam para com certas
pessoas por causa de certos defeitos: a voz, a linguagem, as maneiras, o porte,
vaidades.
Qual é a verdadeira causa disto?
Outras pessoas, mesmo nossas amigas, podem ter os mesmos e mais graves defeitos
e não temos por elas antipatia.
Não é aos defeitos interiores ou
exteriores do próximo que se deve atribuir a causa das nossas antipatias. A
antipatia vem de um defeito nosso. Isso contende-nos com os nervos. Correntes
nervosas atravessam a nossa alma.
Não é pecado sentir a força destas
correntes; é, porém, pouco cristão, e mesmo pecado, deixar-se arrastar pela
sua violência e regular, por tais indisposições, a nossa opinião, estima e
relações com o próximo. Excluir essas pessoas da nossa benevolência, da nossa
caridade, é sinal de que o nosso coração não é mortificado nem humilde, nem
bom.
Façamos, pois, violência a nós
mesmos, para nos corrigirmos das nossas antipatias e más disposições, e haja, em
nós, sobretudo caridade. «A caridade, diz São Paulo, é paciente e benigna».
Esta é a torrente que deve inundar o nosso coração para o purificar, como
recomenda São Tiago. Purifiquemos os nossos corações. E então a aversão se
transformará em simpatia.
2— Desejo de vingança
«Não vos deixeis dominar pelo mal,
diz o Apóstolo São Paulo, não façais mal a quem vos faz mal.» (Rom. XII, 21).
O melhor homem e o melhor cristão
podem ter inimigos, como o próprio Jesus Cristo teve os Seus. Não está em nosso
poder não ter inimigos, todavia, depende de nós não ser inimigos de ninguém e
de preservar a nossa alma do ódio.
Quando nos tratam de uma maneira
hostil, a primeira impressão é que somos esmagados pelo peso de uma grande
injúria e vêm-nos logo sentimentos de aversão, ódio e desejos de vingança. Deixemos
passar, e parece que, dia a dia, vai diminuindo até tomar as proporções de uma
bagatela, uma ninharia, um nada, que não merece sequer que se fale nisso.
Desejamos que seja humilhado,
castigado aquele que, de algum modo, nos ofendeu, não por um sentimento de
justiça, mas de egoísmos e de vingança; porque se os outros são ofendidos
ficamos indiferentes.
«Aquele que procura vingar-se,
experimentará a vingança divina e o senhor conservará cuidadosamente na
lembrança os seus pecados.» (Ecles. XXVIII, I).
Para acabar rapidamente com esses
assaltos de pensamentos e desejos de vingança não há senão um meio: fazer algum
bem. Por isso, diz ainda o Apóstolo: «Triunfemos do mal pelo bem.» (Rom. XII,
21).
Esta transformação do mal pelo bem
não se produz somente na alma que perdoa, vai mais longe ainda. Arranca não
somente da sua própria alma, mas também de uma família, de uma comunidade, de
um povo, um dardo envenenado cuja permanência causaria grande mal. Introduz no
mundo um pouco de amor e este pouco de amor fará muito bem.
Será talvez, o inimigo a quem se
perdoou, o primeiro a sentir a influência benéfica deste amor. Os carvões
ardentes do amor que perdoa, amontoados na sua cabeça, fazem derreter o gelo no
espírito e no coração, inspira a vergonha, a confissão, o arrependimento, e
assim transforma em amigo fiel o inimigo fidagal, o ódio furioso, em amor
profundo, e dá-se uma transformação divina, miraculosa que o ódio e a vingança
nunca teriam produzido.
3—
Rancor
O rancor é uma lembrança, um
sentimento que se conserva no coração por causa da ofensa. O rancor é
verdadeiramente inimigo do amor. Sem dúvida não cuida, como a ira ou desejo de
vingança, de ferir o próximo ou fazer-lhe mal, mas impede o amor de se
manifestar em palavras agradáveis e em boas ações.
Devemos esquecer e apagar a ofensa o
mais breve possível. Deus não quer que as feridas sangrem sempre e, por isso,
diz: Que o sol se não ponha sobre o vosso rancor. Encarregou a noite de curar
as feridas que o dia fez, A noite assemelha-se à infinita misericórdia de Deus;
cobre, esconde toda a fealdade; devemos também encobrir, esquecer mesmo, tudo
o que desagrada a Deus.
«Não deixeis pôr o sol sobre o vosso
rancor». Pode ser que o sol que se põe não seja mais o sol da vida do nosso
ofensor, pode morrer nessa noite e comparecer na presença de Deus com o peso do
nosso ressentimento. O que será bastante grave para ele e, certamente,
desagradável para nós.
«Não deixeis pôr o sol sobre o vosso
rancor.» O sol, que se põe, talvez o vejamos pela última vez; podemos morrer
nessa noite e assim partiremos para a eternidade com o sentimento no coração
contra aqueles que nos amortalham, juntam as nossas mãos, colocam no caixão e
sepultam piedosamente.
Acreditaremos que assim Deus nos
receberá sem ressentimento, que a ferida que abrimos em Seu coração está
fechada, e que apagou da Sua lembrança os pecados que tivéssemos cometido
contra Ele?
4— Ódio
A antipatia é a falta de amor, a ira
e o desejo de vingança são agravos do amor, o ódio é antítese absoluta do amor.
Vejamos.
São João diz que «aquele que odeia o
seu irmão é um homicida.» (Jo. III, 15). Certamente um homem odiento não
manchará as suas mãos com sangue, mas a sua alma é como manchada de sangue, e,
se lhe fosse possível, substituiria o fiat
divino que deu a existência a um homem por um pereat destruidor. Mas, a onipotência não pertence senão ao amor.
«Aquele que odeia seu irmão, diz
ainda São João, permanece nas trevas, isto é, no estado de condenação eterna, e
o seu lugar próprio é o inferno.» Isto é evidente. «Aquele que odeia seu irmão é um assassino; e vós sabeis que a vida
eterna não tem morada em nenhum homicida.» (I Jo. III, 15).
III—
Pecados da língua contra o próximo
1—
Calúnia
A calúnia consiste em atribuir ao
próximo faltas que ele não tem cometido ou defeitos que não tem.
A calúnia é, de sua natureza, um
pecado mortal contra a caridade, a justiça e a verdade.
2— Murmuração
A murmuração consiste em descobrir,
sem necessidade, falhas ou defeitos ocultos do próximo.
A murmuração é: — Uma covardia: ataca
uma pessoa ausente que não pode defender-se. — Uma crueldade: a língua do
caluniador é uma espada que fere o próprio caluniador, o caluniado e aquele
que escuta a calúnia. — Uma injustiça: rouba a honra que é um bem mais precioso
do que o ouro. (Prov. XXII, I).
3— Mexerico
O mexerico semeia a discórdia nas
famílias, e entre as pessoas amigas. Converte a amizade em ódio; a alegria em
aflição; a paz em guerra. Por isso diz o Eclesiástico: Maldito o mexeriqueiro
e o homem de duas línguas porque perturba a paz de muitos.
4— Palavras ásperas
As palavras ásperas esfriam os afetos
a ponto de causarem a indiferença e a inimizade.
5— Troça
A troça consiste em escarnecer dos
defeitos naturais de alguém.
Há pessoas que têm «muito espírito».
Mas este espírito, diz o Padre Faber, tem alguma coisa que se assemelha ao
aguilhão: a sua ponta, a sua rapidez, a sua finura, a sua malícia, a sua dor,
o seu veneno. Muitos consideram a troça como um vexame e não perdoam
facilmente.
Convém notar que escarnecer de um
superior com intenção de o deprimir e desprestigiar é pecado grave; e
escarnecer da religião e seus ministros é pecado gravíssimo.
6— Sarcasmo
É uma ironia mordaz, uma zombaria insultante.
Há no sarcasmo «espírito» mas «espírito diabólico». Vós sereis como deuses,
disse sarcasticamente a serpente infernal aos nossos primeiros pais. A seu
exemplo há muita gente que, por perversidade, inveja, ódio, vingança, crava o
dardo agudo e envenenado do sarcasmo no coração de seu irmão, derramando assim o
seu espírito e baba infernais.
Não escarneçais de ninguém, diz o
Espírito Santo, porque isto faz sofrer muito, causa uma dor tão amarga que
Jesus para completar a Sua Paixão também a experimenta: «Eu te saúdo, rei dos
Judeus!... Desce da Cruz!»