A Vida Espiritual explicada e comentada
Adolph Tanquerey
A ira é uma aberração daquele
sentimento instintivo que nos leva a defender-nos, quando somos atacados,
repelindo com força. Diremos:
1. ° a sua natureza;
2. ° a sua malícia,
3. ° os seus remédios.
I. Natureza da ira.
Há ira paixão e ira sentimento.
1.º A ira, considerada como paixão,
é uma necessidade violenta de reação, determinada por um sofrimento ou
contrariedade física ou moral. Esta contrariedade desencadeia uma emoção
violenta que distende as forças no intuito de vencer a dificuldade: sentem-se então
impulsos de descarregar a cólera sobre pessoas, animais ou coisas.
Distinguem-se duas formas
principais: a cólera rubra ou expansiva nos fortes, e a cólera branca ou pálida,
ou espasmódica nos fracos. Na primeira, bate o coração com violência e impele o
sangue para a periferia: acelera-se a respiração, purpureia-se o rosto, incha
o pescoço, desenham-se as veias sob a pele; eriçam-se os cabelos, faísca o
olhar, saltam das órbitas as pupilas, dilatam-se as narinas, enrouquece a voz,
entrecortada, exuberante. Aumenta a força muscular, todo o corpo se distende
para a luta, e o gesto irresistível fere, quebranta ou afasta violentamente o
obstáculo. - Na cólera branca, contrai-se o coração, torna-se a respiração
difícil, cobre-se a face de palidez extrema, goteja a fronte suor frio,
cerram-se as maxilas, guarda-se um silêncio impressionante; mas a agitação,
contida no interior, acaba por estalar brutalmente, descarregando-se por meio
de golpes violentos.
2.º A ira, considerada como sentimento,
é um desejo ardente de repelir e castigar um agressor.
A) Há uma cólera legítima, uma santa
indignação, que não é senão o desejo ardente, mas radical, de infligir aos
criminosos o justo castigo. Foi assim que Cristo Senhor Nosso entrou em justa
cólera contra os vendilhões que com o seu tráfico contaminavam a casa de Seu
Pai; o sumo sacerdote Heli, pelo contrário, foi severamente censurado por não
ter reprimido o mau procedimento de seus filhos.
Para ser legítima, a cólera tem que
ser:
a) justa no seu objeto, não tendo em
vista senão castigar a quem o merece e na medida em que o merece;
b) moderada no seu exercício, não
indo mais longe do que reclama a ofensa cometida e seguindo a ordem que demanda
a justiça;
c) caritativa na sua intenção, não
se deixando arrastar a sentimentos de ódio, não procurando senão a restauração
da ordem e a emenda do culpado. Qualquer destas condições que falte, haverá
excesso repreensível. - É sobretudo nos superiores e pais que a cólera é
legítima; mas os simples cidadãos têm por vezes direito e dever de se deixarem
inflamar de cólera santa, para defenderem os interesses da cidade e impedirem
o triunfo dos maus; é que, efetivamente, há homens que a doçura deixa
insensíveis, e nada temem senão o castigo.
B) Mas a cólera, que é vício
capital, é um desejo violento e imoderado de castigar o próximo, sem atender às
três condições indicadas. Muitas vezes é a cólera acompanhada de ódio, que
procura não somente repelir a agressão, mas ainda tirar dela vingança; é um
sentimento mais refletido, mais duradouro, e que por isso mesmo tem mais
graves conseqüências.
3. ° A cólera tem graus:
a) ao princípio, é apenas um
movimento de impaciência: mostra-se mau humor à primeira contrariedade, ao
primeiro revés;
b) depois, é arrebatamento, que faz
que um se irrite desmedidamente e manifeste o descontentamento com gestos
desordenados;
c) às vezes, vai até à violência e
traduz-se somente por palavras, mas até por golpes;
d) pode chegar ao furor, que é uma
loucura passageira; o colérico nesse caso já não é senhor de si mesmo, mas
deixa-se arrebatar a palavras incoerentes, a gestos tão desordenados que antes
se diriam um verdadeiro acesso de loucura;
e) enfim, degenera por vezes em ódio
implacável que não respira mais que vingança e vai até desejar a morte do
adversário. Importa discernir estes graus, para apreciar a sua malícia.
II. Malícia da ira
Podemo-la considerar em si mesma e
nos seus efeitos.
1. ° Em si mesma, pode sugerir ainda
várias distinções:
A) Quando a cólera é simplesmente um
movimento transitório de paixão, é de sua natureza pecado venial: porque então
há excesso na maneira por que ela se exerce, neste sentido que ultrapassa a
medida, mas não há, assim o supomos, violação das grandes virtudes da justiça
ou da caridade. - Há casos contudo em que é tal o excesso, que o colérico
perde o domínio de si mesmo e se deixa arrastar a graves insultos contra o
próximo. Se estes movimentos, posto que passionais, são deliberados e
voluntários, constituem falta grave; muitas vezes, porém, não passam de
semi-voluntários.
B) A cólera, que chega a ódio e
rancor, quando é deliberada e voluntária, é pecado moral de sua natureza,
porque viola gravemente a caridade e muitas vezes a justiça. E neste sentido
que Nosso Senhor Jesus Cristo disse: «Todo aquele que se irar contra seu irmão,
será réu no juízo. E o que disser a seu irmão: raça, será réu no conselho. cE o
que lhe chama insensato, será réu do fogo do inferno» Mas, se o movimento de
ódio não é deliberado, ou se não se lhe dá senão consentimento imperfeito não
passará de leve a falta.
2. ° Os efeitos da cólera, quando
não são reprimidos, são às vezes terríveis.
A) Sêneca descreveu-os em termos
expressivos: atribui-lhes traições, assassínios, envenenamentos, divisões intestinais
nas famílias, dissensões e lutas civis, guerras com as suas funestas conseqüências.
Ainda quando não chega a tais excessos, é fonte dum sem-número de faltas,
porque nos faz perder o senhorio de nós mesmos, e em particular perturba a paz
das famílias e cria inimizades tremendas.
B) Sob o aspecto da perfeição, é a ira,
diz São Gregório, um grande obstáculo ao progresso espiritual. É que, de fato,
se a não reprimimos, faz-nos perder:
- a sabedoria ou a ponderação;
- a amabilidade, que faz o encanto das relações sociais;
- a preocupação da justiça, porque a paixão impede de reconhecer os direitos do próximo;
- o recolhimento interior, tão necessário à união íntima com Deus, à paz da alma, à docilidade, às inspirações da graça. Importa, pois, encontrar-lhe o remédio.
III. Remédios contra a ira
Estes remédios devem combater a paixão
da cólera e o sentimento do ódio que às vezes dela resulta.
1. ° Para triunfar da paixão, não se
deve descurar meio nenhum.
A) Há meios higiênicos, que
contribuem para prevenir ou moderar a cólera: tais são um regime alimentício emoliente,
banhos tépidos, duchas, abstenção de bebidas excitantes, e em particular das
alcoólicas: por causa da união íntima entre o corpo e a alma, é mister saber
moderar o mesmo corpo. Mas, como nesta matéria, é preciso ter em conta o
temperamento e o estado de saúde, requer a prudência que se consulte um médico
B) Mas os remédios morais são ainda
melhores.
a) Para
prevenir a cólera, é bom acostumar-nos a refletir, antes de fazer qualquer
coisa, para nos não deixarmos dominar pelos primeiros ímpetos da paixão:
trabalho de longa duração, mas eficacíssimo.
b)
Quando
esta paixão, a despeito de todas as cautelas, nos sobressaltou o coração, «melhor
é sacudi-la com presteza que querer negociar com ela; porque, por pouco lugar
que lhe demos, se faz senhora de toda a praça, havendo-se como a serpente que
introduz facilmente todo o corpo, por onde pode meter a cabeça... E mister,
logo que a sentirdes, convocar prontamente vossas forças, não áspera nem impetuosamente,
mas suave e ainda assim seriamente». Aliás, se quisermos reprimir a cólera com
ímpeto, mais nos perturbaremos.
c)
Para
melhor sofrear a ira, é útil divertir a atenção, isto é, pensar em qualquer
coisa diversa do que a possa excitar; é necessário, pois, desterrar a lembrança
das injúrias recebidas, afastar as suspeitas, etc.
d) «Devemos
invocar o auxílio de Deus, quando nos vemos agitados pela cólera, à imitação
dos Apóstolos, combatidos pelo vento e tempestade no meio do mar, porque Deus
mandará às nossas paixões que sosseguem e sobrevirá grande tranquilidade.
2. ° Quando a cólera excita em nós
sentimentos de ódio, rancor ou vingança, é impossível curá-los radicalmente
com outro remédio que não seja a caridade fundada no amor de Deus. É caso,
então, de nos lembrarmos que somos todos filhos do mesmo Pai celestial,
incorporados no mesmo Cristo, chamados à mesma felicidade eterna, e que estas
grandes verdades são incompatíveis com qualquer sentimento de ódio. Assim pois:
a) Recordaremos as palavras do Pai-Nosso:
perdoai-nos as nossas (dívidas), assim como nós perdoamos (aos nossos devedores);
e como desejamos vivamente receber o perdão divino, de mais bom grado perdoaremos
aos nossos inimigos.
b) Não esqueceremos os exemplos de
Cristo Senhor Nosso, chamando a Judas Seu amigo, ainda no momento da traição,
e orando do alto da cruz pelos próprios verdugos; e pedir-lhe-emos ânimo para
esquecer e perdoar.
c) Evitaremos pensar nas injúrias
recebidas e em tudo que a elas se refira. Os perfeitos orarão pela conversão de
quem os ofendeu, e encontrarão nesta prece bálsamo suavíssimo para as feridas
da sua alma.
Tais são os principais meios para
triunfar dos três primeiros pecados capitais, o orgulho, a inveja, e a ira;
vamos agora tratar dos defeitos que derivam da sensualidade ou da concupiscência
da carne: gula, luxúria e preguiça.