A paixão de Santa Bernadette
"Sou mais feliz com meu crucifixo no leito
do que uma rainha em seu trono."
(Santa Bernadette)
Sofrimento
Em 1877, ei-la novamente na enfermaria por motivo de uma série de novas hemoptises que dão rebate acerca de seu estado pulmonar. Não mais será vista na sacristia. Entrou na sua paixão, a paixão da Irmã Bernarda oferecida a Deus pelos pobres pecadores.
Não sabemos tudo, nem as inspirações que lhe foram dadas nos momentos de êxtase, nem a compreensão com que ela pôde ser iluminada ante a tristeza infinita de Maria que pensava nos pecadores do Mundo.
Mas estamos seguros de que o sentido da sua vida não foi outra coisa senão um oferecimento perpétuo de si mesma a Deus em favor desses homens desconhecidos e cegos.
... Toda a sua vida vibra desse mesmo tom de penitência, de compaixão para com aqueles que, com expressão de ternura, ela chama de pobres pecadores. Foi essa a sua maternidade, fraca imagem feminina de pureza absoluta, o resgate desse bando manchado de homens e mulheres chafurdando no pecado, e que ela adotava a cada instante nas suas dores. Foi por eles que se deitou sobre o leito da enfermaria, como sobre uma cruz da qual quase nunca mais se desencravará.
No inverno de 1877 sobreveio-lhe no joelho direito um abcesso tuberculoso. Não se conhecia ainda nenhuma medicação eficaz contra essas manifestações ósseas. Sofreu sem alívio, intoleravelmente, a tal ponto que se lhe via no rosto o desfiguramento.
Cresceu-lhe no joelho um tumor enorme, que lhe foi deformando totalmente a perna, e que permanece ainda hoje muito visível no ataúde, debaixo das dobras inumeráveis do vestido monacal, que essa protuberância do joelho levanta à direita.
Nunca se queixou; ou se lhe escapava um grito, pedia perdão."Sou mais feliz com meu crucifixo no leito do que uma rainha em seu trono", dizia ela um dia.
Mais ainda. As devastações da doença contrinuiam para estabilizar nela o que se poderia chamar de "serenidade tuberculosa", esse predomínio da alma sobre os movimentos da natureza, que o físico mostra, como se essa doença fosse uma espiritualização.
... Guarda-se em Lourdes, no Museu Bernadette, uma carta por ela escrita da enfermaria a seu irmão João Maria:
"... Em seguida um grande escarro de sangue, que não me permitia fazer um movimento sem se repetir. Acreditarás sem esforço que o fato de estar assim pregada não se combina facilmente com a minha natureza ardente. Eis que as forças voltam. Nosso Senhor é muito bom. Tive a felicidade de recebê-lO durante todo o tempo da doença três vezes por semana no meu pobre e indigno coração. A cruz ficava leve e os sofrimentos suaves ao pensar que receberia a visita de Jesus."
A carta está toda amarelada, de letra filiforme, deitada mas de firmeza e regularidade significativas.
Nunca deixou de ser como criança, dirão. Sem dúvida, sob alguns aspectos. Mas, por momentos, certos rasgos confirmam o caráter forte anunciado pela letra. Como crer, que, tão tímida e tão humilhada quanto foi em seu convento, ela obtivesse com sua franca maneira de falar, a reforma de uns pequenos abusos, que o hábito deixa às vezes implantarem-se numa Comunidade?
Agora ei-la reduzida a completa inatividade: aqueles trabalhos de bordado, em que se tornara tão hábil, aqueles coraçõezinhos que pintava nas imagens, aquele processo de decoração em ovos, que consistia em raspar certos lugares a casca pintada, - (tanto faz, dizia ela, caçoando de seu trabalho ingênuo, ganhar o Céu raspando ovos quanto fazendo qualquer outra coisa!).
Está entregue inteiramente a seu martírio e à vida Eucarística; a comunhão torna-se sua única alegria.
"Quando pedia a comunhão, escreve Madre Imbert, eu já não aconhecia."
Ia subindo. sua união com Deus tornava-se constante. Aquela que, vinte anos antes, lograra um antegozo da vida beatífica não falava senão do Céu.
... Todos os que viviam em torno dela notaram isto, que à medida que seu pobre rosto emagrecia e sua feições se desfaziam, os olhos conservavam essa magnífica flama, próprio dos tuberculosos, e que se avivava ainda mais quando ela os levantava para o Crucifixo. Na intensidade do colóquio com Deus seu olhar tomava uma expressão que o confessor qualifica de "empolgante".
... A tuberculose óssea generalizava-se. A Irmã Maria Bernarda emagrecia, e seu corpo, gasto pelo leito, cobria-se de chagas. E para que sua paixão fosse completa e conforme ao seu Modelo, Deus a "abandonou".
Perdeu a confiança; perdeu a paz; perdeu a certeza do Céu; julgou-se indigna de ser salva. Dir-se-ia que só naquele momento compreendeu intimamente o enorme cabeçal de graças que lhe foram concedidas. Sentiu o terror de não tê-las aproveitado.
Já não é senão uma pobre coisa que sofre. "O autor da Imitação, diz ela, tem muita razão de ensinar que para servir a Deus não se deve esperar o último momento. Então quão reduzida é a nossa capacidade!"
O espetáculo é dilacerante, e para que a nossa sensiblidade não se desvie dele num excesso demasiado doloroso de compaixão, é preciso lembrar o Dogma essencial do Cristianismo, a Comunhão dos Santos, e ver a pobre Bernadette da luz de Cristo, que disse: "Eu sou a Videira e meu Pai o Vinhateiro. Todo sarmento que está em mim e dá fruto Ele o poda para que dê mais fruto. Eu sou a Videira, vós sois os sarmentos."
Naquele tempo em que humilde religiosa oferecia-se para o maior pecador, que a SSMa. Virgem conhecia bem, seus terríveis sofrimentos morais e físicos, na Videira mística palpitavam sarmentos malditos, os que dão maus frutos, e que o Vinhateiro arranca.
Quantos, lavados e alagados pela seiva divina, refloriram em virtude da própria superabundância do pobre sarmento podado: aquela jovem religiosa mártir, que tinha visto a Mãe de Deus! Admirável circulação secreta! fraternidade inumerável dos filhos de Deus, que haurem seu leite do mesmo seio!
Nos mesmos, ainda hoje, debruçados sobre aquela vida tõ comovente quanta fonte de graça não recebemos em nós!
Uma das religiosas lhe dizia que ia orar para obter-lhe consolações:
- Não, não! Nada de consolações: somente força e paciência!
Viram-lhe abrir os braços em cruz, murmurando: - Oh! quanto lhe quero bem!
Distribuiu aos pobres objetos que lhe haviam pertencido a todas as religiosas, e pediu que enviassem seu véu de estamenha à Irmã Isabel Vidal, que lhe ensinara a ler e escrever. só guardou o crucifixo, dizendo:
- Fica-me este. De nada mais preciso.
... No momento de receber a comunhão, naquele dia, exclamou com voz, cuja força surpreendeu:
"Minha querida Madre, peço-vos perdão de todos os desgostos que vos causei pelas minhas infidelidades na vida religiosa. Peço perdão às companheiras dos maus exemplos que lhes dei, sobretudo com meu orgulho."
Morte da Irmã M. Bernarda
(clicar na imagem para ampliá-la)
Durante toda a semana santa vai sofrendo o seu martírio. "A minha paixão durará até que eu morra!". Assim fala e luta contra o demônio, cujo ataque sente nitidamente. Tem medo e grita. É mister dar-lhe segurança acerca da vida tão santa que levou e que ela julga indigna das graças recebidas.
Por causa das sufocações, não pode ficar deitada. Sentam-na numa poltrona, com a perna doente colocada sobre um tamborete, frente à chaminé, de modo que veja a estátua da SSma. Virgem.
Na quarta-feira de Páscoa, 16 de abril, às duas horas da tarde, o Pe. Febvre é chamado precipitadamente, porque ela quer confessar-se. Em seguida reclama o rescrito da benção especial, in articulo mortis, que Pio IX, a quem escrevera um dia intitulando-se seu "pequeno Zuavo", lhe enviara. Como não tinha mais força para segurar o crucifixo, pediu que lho prendessem ao peito.
Às duas horas e meia, seus belos olhos cheios de luz e de vida no rosto extenuado elevaram-se para o céu. Sua fisionomia respirava sossego, serenidade e não sei que gravidade melancólica; depois, com expressão indefinível, que manifestava antes surpresa do que dor, exclamou:
"Oh!Oh!Oh!" Juntamente estremeceu-lhe todo corpo; depois, com voz bem acentuada:
"Meu Deus, eu vos amo de todo o meu coração, de toda a minha amla, com todas as minhas forças!"
Estas linhas são de uma religiosa testemunha daqueles derradeiros instantes tão solenes. Em seguida, a Irmã Bernarda pede ainda perdão de todas as faltas. Diz:
"Tenho sede!" Apresentam-lhe um copo de água. Antes de molhar nele os lábios, faz o seu último sinal de cruz, um daqueles sinais de cruz que aprendera de Maria e que sempre foram causa de admiração para os que a rodeavam.
Alguns minutos mais tarde, murmurou:
- Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por mim pobre pecadora...pobre pecadora...
E deu suavemente o último suspiro.
Era o dia 16 de abriu de 1879, às 3 horas e 1/4 da tarde.
Seu corpo incorrupto
(clicar na imagem para ampliá-la)
Seu corpo ficou exposto na capela, onde, durante três dias, uma multidão inumerável desfilou. Depois, foi sepultada numa capelinha gótica, edificada no centro do jardim do convento e dedicada a São José.
Sua lagea tumular recebeu esta inscrição:
"Aqui repousa- Na paz do Senhor - Bernadette Soubirous - Favorecida em Lourdes no ano 1858 com várias Aparições - Da Santíssima Virgem - Em religião Irmã Maria Bernarda - Falecida em Nevers - Na casa Mãe das Irmãs de Caridade em 16 de Abril de 1879 - no 36º ano de sua idade - e 12º de sua Profissão religiosa."
Em 22 de setembro de 1909, trinta anos mais tarde, por motivos de processo de Beatificação exumou-se aquele corpo precioso; e na presença de dois médicos, do bispo e dos membros do Tribunal, procedeu-se a abertura do ataúde.
A jovem santa apareceu vestida, do hábito religioso, em estado de perfeita conservação. O rosto coberto assim como as mãos e os antebraços, eram de um branco baço, a boca entre-aberta deixava ver os dentes, os olhos dechados afundavam um pouco na órbita. Podia-se ver nos braços o relevo das veias.
A Superiora Geral despiu-a, ajudada pelas Irmãs. O corpo em grande parte esta ressequido, mas em estado de perfeita conservação. Depois de o terem lavado, colocaram-no de novo no ataúde.
A 25 de Abril de 1925, nova exumação. O colorido moreno do corpo acentuaram-se devido ao erro que houve em 1909, lavando-o. Mas nenhum vestígio de corrupção. Os tecidos permaneceram até aqui e ali, elásticos. Extrai-se, para Roma, uma relíquia, retirada da última costela direita. O cirúrgião encarregado da operação não pode evitar que venha aderente a esse fragmento de costela uma parcela do fígado.
Tudo foi depositado num linho branco, antes de ser piedosamente encerrado no relicário preparado. No momento de levantar a relíquia, percebeu-se que deixara no linha uma mancha úmida, avermelhada. Assim as próprias vísceras não estavam resequidas, preservadas portanto, de toda corrupção.
É este corpo abençoado que reencontramos hoje no Ataúde da Capelo do Covento, em Nevers, com o rosto e as mãos recobertas de uma delgada camada de cera. O corpo conservou a posição que tinha em 1909 inclinado sobre o lado, como as Virgens dos primeiros séculos cristãos, encontradas nas catacumbas.
É ali, ó Santa Bernadette, que voltamos para vos dizer adeus, depois que, em São Pedro de Roma, se patenteou, na música e no incenso, a Glória que vossos irmãos da terra oferecem à vossa humildade, modesta Santinha francesa, que ninguém pode conhecer sem amar-vos.
Perdoai à autora indigna que tentou seguir vossas pegadas terrestres, se não vos viu na vossa Verdade. E supri a sua impotência, mostrando-vos através destas linhas como fostes, isto é, muito reta, muito pura e muito bela, ó Preferida da Mãe de Jesus!
(Excertos do livro: A humilde Santa Bernadette - Colette Yver)
PS: Grifos meus
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