A Vida Espiritual explicada e comentada
Adolph Tanquerey
ART.
II. Dos pecados anexos à sensualidade
§
I. Da gula
A gula não é senão o abuso do prazer
legítimo que Deus quis acompanhasse o comer e o beber, tão necessários à
conservação do indivíduo. Exponhamos:
1.
° a sua natureza;
2.
° a sua malícia;
3.
° os seus remédios.
1.º Natureza. A gula é o amor desordenado
dos prazeres da mesa, da bebida ou da comida. A desordem consiste em procurar o prazer
do alimento, por si mesmo, considerando explícita ou implicitamente como um
fim, a exemplo daqueles que fazem do seu ventre um deus, «quorum Deus venter
est»(Fl 3,19) ou em o procurar com excesso, sem respeitar as regras que dita a
sobriedade, algumas vezes até com prejuízo da saúde.
Os teólogos assinalam quatro
maneiras diversas de faltar a essas regras:
- Praepropere: isto é, comer antes de sentir necessidade, fora das horas marcadas para as refeições, e isto sem motivo legítimo, só para satisfazer a gula.
- Laute et studiose: buscar iguarias esquisitas ou preparadas com demasiado apuro, para gozar delas mais; é o pecado dos gulosos ou gastrônomos.
- Nimis: é ultrapassar os limites do apetite ou da necessidade, enfartar-se de comida ou bebida, com risco de arruinar a saúde; é evidente que só o prazer desordenado pode explicar este excesso, que no mundo se chama glutonaria.
- Ardenter: comer com avidez, com sofreguidão, como fazem certos animais; e esta maneira de proceder é considerada no mundo como grosseria.
2. ° A malícia da gula vem de
escravizar a alma ao corpo, materializar o homem, enfraquecer a vida
intelectual e moral, preparando-o, por um pendor insensível, ao prazer da
volúpia, que, em substância, é do mesmo gênero. Para lhe determinarmos com
precisão a culpabilidade, importa fazer esta distinção.
A) A gula é falta grave:
a) quando chega a excessos tais que
nos torne incapazes, por tempo notável, de cumprir os nossos deveres de estado
ou obedecer às leis divinas ou eclesiásticas; por exemplo, quando prejudica a
saúde, quando dá origem a despesas loucas que põem em risco os interesses da
família, quando leva a faltar às leis da abstinência ou do jejum.
b) O mesmo se diga, quando se torna causa
de faltas graves.
Demos alguns exemplos. «Os excessos
da mesa, diz o P Janvier dispõem à incontinência, que é filha da gula.
Incontinência dos olhos e dos ouvidos, que vão buscar pasto doentio aos espetáculos
e canções licenciosas; incontinência da imaginação, que se perturba;
incontinência da memória que busca no passado recordações capazes de excitar a
concupiscência; incontinência do pensamento que, extraviando-se, se derrama
sobre os objetos ilícitos; incontinência do coração, que aspira às afeições
carnais; incontinência da vontade, que abdica para se escravizar aos sentidos...
A intemperança da mesa à intemperança da língua. Que de faltas não comete a
língua no decurso de banquetes pomposos e prolongados! Faltas contra a gravidade!...
Faltas contra a discrição! Atraiçoam-se os segredos que havia promessa de
guardar, segredos profissionais que são sagrados, e entrega-se à malignidade a
reputação dum marido, duma esposa, duma mãe, a honra duma família, quando não
é o futuro duma nação. Faltas contra a justiça e caridade! A maledicência, a
calúnia, a detração, sob as suas formas mais inescusáveis, exprimem-se com uma
liberdade desconcertante... Faltas contra a prudência! Tomam-se compromissos
que não será possível guardar, sem ofender todas as leis da moral...».
B) A gula não passa de falta venial,
quando alguém cede aos prazeres da mesa imoderadamente, mas sem cair em excessos
graves, sem se expor a infringir qualquer preceito importante. Assim, por exemplo seria pecado venial comer ou beber mais de costume, por prazer, para fazer
honra a um lauto banquete ou agradar a um amigo, sem cometer excesso notável.
C) Sob o aspecto da perfeição, é a
gula um obstáculo sério:
1) alimento a imortificação, que
enfraquece a vontade e desenvolve o amor do prazer sensual que prepara a alma
para capitulações perigosas;
2) é fonte de muitas faltas,
produzindo uma alegria excessiva, que leva à dissipação, à loquacidade, aos
gracejos de gosto duvidoso, à falta de recato e modéstia, e abre assim a alma
aos assaltos do demônio. Importa, pois, combatê-la.
3.º Remédio.
O princípio que nos deve dirigir na luta contra a gula, é que o prazer não é
fim, senão meio, e que por conseguinte, deve ser subordinado à reta razão
iluminada pela fé (n.° 193). Ora, a fé diz- nos que é necessário santificar os
prazeres da mesa com pureza de intenção, sobriedade e mortificação.
1) Antes de tudo, é preciso tomar as
refeições com intenção reta e sobrenatural, não como o animal que não busca
mais que o prazer, não como o filósofo que se limita a uma intenção honesta,
senão como cristão, para melhor trabalhar na glória de Deus: com espírito de reconhecimento
para com a bondade de Deus que se digna conceder-nos o pão de cada dia; com
espírito de humildade, dizendo-nos a nós mesmos, com São Vicente de Paulo, que
não merecemos o pão que comemos; com espírito de amor, empregando as forças,
que recuperamos, no serviço de Deus e das almas. Assim cumprimos a recomendação
feita por São Paulo aos primeiros cristãos, que em muitas comunidades se
recorda ao princípio das refeições: «Quer comais, quer bebais, fazei tudo para
glória de Deus: sive ergo manducatis, sive bibitis... omnia in gloriam Dei
facite» (I Cor. 10,31)
2) Esta pureza de intenção nos fará
guardar a sobriedade ou justa medida: e na verdade, se queremos comer para
adquirir as forças necessárias ao cumprimento dos nossos deveres de estado,
evitaremos todos os excessos que poderiam comprometer-nos a saúde. Ora,
dizem-nos os higienistas, a «sobriedade (ou frugalidade) é a condição
essencial do vigor físico e moral». Já que comemos para viver, devemos comer
sadiamente para sadiamente viver. Fujamos, pois, de comer ou beber demais...
Devemos levantar-nos da mesa com uma sensação de leveza e vigor, ficar um pouco
aquém do apetite, e evitar ficar entorpecidos com os excessos da lauta mesa.
É bom, contudo, observar que a
medida não é a mesma para todos. Há temperamentos que, para se preservarem da
tuberculose, têm necessidade de mais copiosa alimentação; outros há, pelo
contrário, que, para combaterem o artritismo, precisam de moderar o apetite.
Sigam-se, pois, neste ponto os conselhos dum médico experimentado.
À sobriedade junta o cristão a
prática de algumas mortificações.
A) Como é fácil escorregar por esta
ladeira e conceder demais à sensualidade, convém privar-nos, de vez em quando,
de alguns acepipes de que gostamos, úteis até, mas não necessário. Desse modo
se adquire domínio sobre a sensualidade, privando-a de algumas satisfações
legítimas; desembaraça-se o espírito da servidão dos sentidos, dá-se-lhe mais
liberdade para a oração e para o estudo e evitam-se muitas tentações perigosas.
B) E uma excelente prática
habituar-se a não tomar refeição alguma, sem nela fazer qualquer mortificação.
Essas pequenas mortificações tem a vantagem de fortificar a vontade sem dano
para a saúde, e é por Isso que são geralmente preferíveis às mortificações mais
importantes que só raramente se praticam. As almas boas animam essas mortificações
com um motivo de caridade; deixam um bocadinho para os pobres- e, como faz notar
São Vicente Ferrer o que se deixa não deve ser o pior senão o mais escolhido,
por poucochinho que seja. É também excelente prática habituar-se a comer um
pouco de que não agrada.
C) Entre as mortificações mais
úteis, contamos as que se referem a bebidas alcoólicas.
Recordemos a este propósito os
princípios:
a) Em si, o uso moderado do álcool
ou dos licores espirituosos não é mal: não se podem, pois, censurar os
seculares ou os sacerdotes que usam deles com moderação.
b) Abster-se, porém, dessas bebidas
por espírito de mortificação ou para dar bom exemplo, é indubitavelmente
digníssimo de elogio. É por isso que há sacerdotes e seculares consagrados a
obras de zelo, que se privam de qualquer licor, para mais facilmente levarem
outros a imitá-los.
c) Há casos em que esta abstinência
é moralmente necessária para evitar excessos:
1) quando, por atavismo, se herdou
uma certa propensão para as bebidas alcoólicas, neste caso o simples uso pode
criar uma inclinação quase irresistível, do mesmo modo que basta uma faísca
para atear um incêndio em matérias inflamáveis;
2) se se teve a infelicidade de
contrair hábitos inveterados de alcoolismo: então, o único remédio eficaz será
muitas vezes a abstenção completa.