Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
III — Qualidades do amor do próximo
O amor para com o próximo deve ser:
1—
Amor sobrenatural
Deve ser sobrenatural em razão do
motivo, isto é, devemos ver Deus no nosso próximo e fazer-lhe todo o bem como
se fosse feito a Deus. Ele mesmo diz: «O que fizerdes ao mais pequeno e
miserável é o mesmo que fazê-lo a mim.» Devemos amar-nos em Deus. Deve ser
sobrenatural em razão do fim, isto é, devemos dar ao nosso próximo os auxílios
espirituais e os bens materiais que ajudam a alcançar os bens espirituais.
Devemos, pois, transmitir pela palavra e pelo exemplo, a virtude e a piedade.
Dois discípulos iam para Emaús e,
entre os dois, Jesus segue viagem, toma parte nas suas conversas e as suas
palavras iluminavam os seus espíritos e inflamavam os seus corações. Ora são
Francisco de Sales observa a propósito: É preciso ligar os nossos afetos com a
cadeia do puro e santo amor de Jesus.
A amizade, exclamava outrora Santo
Agostinho, não é verdadeira amizade, ó meu Deus, senão quando nos estreitais
nos Vossos laços. Esta amizade vem de Deus e encaminha para Deus, é, como o
próprio Deus, profunda, íntima e eterna.
Contra este amor sobrenatural há o
amor diabólico. Na verdade, quando as pessoas que se amam fazem o que é ofensa
a Deus, essa amizade vem do demônio e conduz ao inferno onde se converte em
eterno ódio.
Portanto, se nos pedissem que
fizéssemos uma ação má, um pecado, por afeto a uma pessoa, deveríamos responder
como aquele jovem grego a quem pediram que fizesse um falso juramento a favor
de um amigo: Não sou seu amigo senão enquanto conservar a amizade de Deus.
A verdadeira amizade só pode existir
entre pessoas que a têm a Deus.
«A amizade não pode ser sincera,
dizia Cícero, senão entre os bons.»
2
— Amor universal
Só poderia deixar de amar o meu
irmão quando ele deixasse de ser Cristo para mim. Ora esta identidade é
permanente. Só os condenados do inferno não têm nada de Cristo. Só esses é que
não podem ser objeto do meu amor. De resto, todos, ainda os maiores pecadores, têm
direito ao benefício do Mihi fecistis.
3—
Amor generoso
O meu irmão é outro Jesus Cristo,
ora esta identidade coloca-o acima de mim, deve prevalecer a mim. Portanto,
devo sacrificar-me por ele. Eis a razão de ser, necessária e suficiente, da
minha dedicação e da minha humilhação prática diante do meu irmão.
4—
Amor afetivo
A caridade deve ter as suas raízes
no coração. Falando da caridade diz o Apóstolo São Paulo: «Ainda que eu
distribuísse todos os meus bens no sustento dos pobres, se não tiver caridade
nada disto me aproveita.» (I Cor. XIII, 3). Estas palavras mostram que há um
amor sem obras de amor, e também obras de amor sem amor, muitos cobrem-se com o
manto da caridade sem a terem no coração.
O orgulhoso cobre-se com este manto.
E não admira. O demônio como príncipe de todos os soberbos e príncipe deste
mundo quer oferecer os seus bens a um pobre, a Jesus, contanto que ele se
prostre por terra e o adore.
Para conseguirmos que se inclinem
diante de nós, que nos honrem e que nos venerem não há melhor meio do que
revestirmo-nos com o manto da caridade.
O voluptuoso, na variedade das suas
diversões, organiza um baile. E eis um manto de baile convertido num manto de
caridade.
Criam-se obras de assistência.
Apesar de tantos donativos, de
tantas festas e obras de beneficência, o exército da pobreza está sempre
descontente. É que os pobres conhecem perfeitamente que não é o verdadeiro
amor, mas o egoísmo disfarçado que vai até eles. Recebem a esmola, mas odeiam o
doador porque ele não cumpre como deve o dever social cuja fórmula não é: «tu
darás ao teu próximo, mas sim: tu amarás o teu próximo.» Como Deus, o homem diz
ao homem: «Não é a tua esmola que eu quero, quero a ti mesmo».
A questão social não pode ser
resolvida pelo manto do amor, mas somente pela mão e coração do amor.
Sigamos, pois, a recomendação de São
Paulo: «Quem der esmola, dê-a com toda a simplicidade do seu coração.» (Rom.
XII, 8).
5—
Amor eletivo
É São João que recomenda esta
qualidade do amor do próximo. «Não amemos simplesmente em palavras, mas com ações.»
(1 Jo. III, 48).
1. ° Falar do próximo a Deus. — É
esta uma importante ação caritativa que podemos prestar ao nosso próximo.
Antes de falar ao homem, mesmo em
nome de Deus, antes de operar no homem para fins divinos, é conveniente, é
necessário falar do homem a Deus, agir sobre Deus em proveito do homem. É o que
se faz — orando. Devemos pedir a Deus que, por caridade nos faça ministros do Seu
poder, a fim de fazermos bem às almas, como recomenda São Paulo: — «Recomendo-te,
pois, antes de tudo que se façam súplicas, orações, petições, ações de graças
por todos os homens.» (I Tim. II, I).
Eu oro sempre pelas pessoas que me
rodeiam, dizia o General Gordon, e isto dá-me uma força e influência
maravilhosas.
2. ° Falar ao próximo de Deus. —
Entre as várias missões que o Pai celeste deu a Seu Filho, deu-Lhe também esta:
«Fala e não te cales.» (At. XVIII, 9). Efetivamente, o Salvador não encontra
nenhum aflito para o qual não tenha uma palavra de consolação, nenhum tímido
para o qual não tenha uma palavra de alento, nenhum perseguido para o qual não
tenha uma palavra de defesa, nenhum suplicante para o qual não tenha uma
palavra de promessa. Já na Cruz, ainda tem para um homem uma palavra
maravilhosa de amor: «Hoje mesmo estarás comigo no paraíso.»
Encontramo-nos, a cada momento, com
pessoas aflitas, irritadas, perseguidas, humilhadas, a quem deveríamos, pois,
dirigir uma palavra bondosa e, não obstante, calamo-nos. Porque somos tão
avaros de palavras? Talvez seja devido à nossa reserva natural, ao nosso
egoísmo e indolência. Convém notar que não há nada no mundo que custe menos e
que possa ter mais valor. Uma palavra bondosa e caritativa desfaz equívocos,
reconcilia pessoas desde há muito desavindas, instrui as crianças, converte os
pecadores, preserva os justos e santifica a todos. Deus deu ao homem a palavra
como um eco do Céu e uma força criadora. — Deus falou e todas as coisas foram
criadas. — O homem fala e, ao império da sua palavra, tudo se ilumina,
transforma e diviniza. É para o discípulo como para o Mestre que foi dito: «
Fala e não guardes silêncio. Fala por amor a Deus e ao próximo.»
3.
° Fazer bem ao próximo. Ouçamos: A voz da humanidade sofredora.— A
humanidade sofredora pode dizer como uma mater dolorosa: «A minha dor é imensa
como o mar.» Há tanta gente sem pão, sem vestuário, sem abrigo e sem saúde. Há
tantas vidas a consumirem-se na miséria. Ora, das profundezas destas misérias
eleva-se uma voz a gritar por socorro, a reclamar atos de amor. — A voz do
nosso coração. A força do amor obriga-nos a fazer bem. «Caritas urget.» O amor
é sempre muito operativo em quem o tem. — A voz de Deus. Além da voz da
miséria, da voz do nosso coração há a voz de Deus que não cessa de nos mostrar,
com ameaça, a obrigação de amar o próximo e amá-lo praticamente.
«Meus filhinhos, amemos não só de
palavra e com a língua, mas com as obras e em verdade.» (Jo III, 18). Só
amando assim é que podeis evitar a minha maldição no juízo final. (Mat. XXV,
41, 43).
Edificação mútua. Que é um cristão? É
uma luz. «Vós sois luz, exclama São Paulo, luz no Senhor.» (Efes. V, 8).
Que é um cristão? É uma força. A
natureza dá-nos potências; a graça cria em nós virtudes, estas virtudes, que
são forças, resumem-se todas numa só que São Paulo chama «a força ou a virtude
de Cristo.» (II Cor. XII, 9).
Que
é o cristão? É uma flor: um Deus em flor, dizem, muitas vezes, os Padres. O
Verbo é a flor do Pai que exala todo o seu perfume. O Verbo vem a nós, entra em
nós; como Ele é Filho de Deus, Ele nos faz filhos de Deus; a unção que O sagra,
sagra-nos também, a fim de exalarmos, como diz São Paulo, o perfume de Cristo.
(II Cor. II, 13). Ora, quem
não sabe que, naturalmente, toda a luz irradia, toda a força exerce a sua ação
e todo o perfume se faz sentir ao longe.
O cristão, em toda a parte, deve
manifestar que é um outro Jesus Cristo.
E uma grande caridade, é um grande
dever edificar o próximo.
O divino Mestre assim o declara
quando diz: «Que a vossa luz brilhe diante dos homens a fim de que vendo as
vossas boas obras glorifiquem o Pai celeste.» (Mat. V, 16). E o Apóstolo São
Paulo recomenda: «Faça-se tudo para edificação comum.» (1 Cor. XIV, 26). A
nossa caridade para com a alma do próximo tem por fim: — excitar a piedade dos
bons para darem mais glória a Deus; —fortalecer os fracos, de maneira que não
se vejam sós; despertar remorsos na alma dos culpados; converter os pecadores.
Ora o bom exemplo é, para atingir estes fins: 1.° O meio mais geral: pode ser
empregado por todos em todas as condições da sua vida; 2.º o meio mais fácil:
nada há a acrescentar às ações para o dar; nada a fazer senão ver, para o receber;
3.° o meio mais seguro: a instrução pode desagradar, o conselho pode exasperar,
a correção pode revoltar, o bom exemplo não pode causar nenhuma impressão
desagradável; 4.º o meio eficaz: o meio mais seguro para conquistar as almas
para Deus, diz São Gregório Magno, é atraí-las pelo exemplo.
Tenhamos, pois, em conta esta
recomendação do Espírito Santo no Eclesiástico: «Cada um, por ordem de Deus,
deve cuidar do seu próximo, deve ter a caridade de o esclarecer, conduzir e
fortificar com o seu exemplo.»
Auxílio mútuo. «Suportai o fardo uns
dos outros», diz nosso Senhor. Este convite é a mais bela vocação! Exorta-nos a
sermos médicos que curam as feridas, aliviam os que sofrem e salvam os que
morrem; exorta-nos a sermos sacerdotes que acalmam as dores da alma, ouvem as
confissões, esclarecem as dúvidas, evitam o pecado; exorta-nos a assemelharmo-nos
com o próprio Deus. Deus é, em primeiro lugar, aquele que atende à humanidade
que em todas as línguas grita por socorro. Sejamos colaboradores de Deus
fazendo o possível para diminuir a miséria no mundo. Pronto socorro é a divisa
e a vocação dos filhos de Deus.
O quadro que vou apresentar foi
pintado por Benouville na sua admirável tela — os jovens cristãos entrando no
anfiteatro. Estão aí, em graça e na força da adolescência. A mão de um pega na
mão de outro. De olhos puros contemplam o Céu. A multidão apinha-se para
presenciar o espetáculo de os ver morrer. Olhai é mais que um quadro, é um
espelho.
O anfiteatro é o mundo; o combate é
a vida;
O martírio é o dever. Os jovens
amigos, que se dão as mãos para irem juntos para o Céu, somos nós.
Feliz aquele que encontrou um
verdadeiro amigo, — encontrou a felicidade suprema.
Correção mútua. Se o vosso irmão
cometer uma falta, diz o Senhor, corrige-o entre ti e ele, e se ele te ouvir,
que felicidade a tua em teres ganho o teu irmão! Quem pode fazer isto melhor do
que nós e quem o fará se nós o não fizermos?
6 — Amor ordenado
Ordem a observar no exercício do
amor do próximo. — Este amor deve ser regulado segundo as pessoas, — a natureza
das suas necessidades,—e os bens que lhes são necessários.
Prática desta ordem:
1.° Regras gerais:— 1.° Relativamente
às pessoas. Depois de Deus, devemos amar-nos a nós mesmos, mais que a todos os
outros, pois que Jesus Cristo dando-nos o amor de nós mesmos como medida do
amor do próximo, mostra-nos que é lícito este amor para conosco mesmos. Em
seguida devemos amar nossos pais, parentes, amigos, superiores e concidadãos
católicos.
2.° Relativamente aos bens. Deve-mos
amar: os bens espirituais: a alma; — os bens do corpo: a vida; — os bens do
espírito: a reputação, a honra; — os bens da fortuna.
3.° Relativamente às necessidades. A
necessidade pode ser: Extrema, quando se está num perigo iminente e inevitável
de perder a alma ou a vida;—grave, quando só dificilmente se pode evitar o
perigo para a alma ou para a vida; comum, quando facilmente se pode escapar ao
perigo.
4.° Regras particulares : — 1.° Em
igualdade de circunstâncias devemos preferir a nossa alma a tudo; mas podemos
preferir a vida do próximo. — 2.° Numa necessidade extrema, devemos preferir o
pai à mãe; a mãe à esposa; a esposa aos filhos; os filhos aos irmãos. Numa
necessidade grave: o esposo ou esposa deve preferir-se a todos, mesmo aos
amigos e superiores, à não ser que destes dependa a salvação da Pátria.