TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
FONTE E CAUSA DAS IMPRESSÕES QUE
O DESÂNIMO PRODUZ
NUMA ALMA CRISTÃ.
Por que é que o desânimo produz tão fortes e tão
funestas impressões numa alma cristã? Ei-lo aqui. A alma está bem convencida
da sua fraqueza, que amiudadas vezes ela experimenta: sente vivamente a
dificuldade que tem em se vencer, coisa que lhe sucede raramente. Todo ocupada
dessas idéias tristes e desalentadoras, de que tem pouca coragem, de que não
faz nada para agradar a Deus, ela considera como coisa inútil recorrer ao
Senhor, que, nesse estado, não deve escutá-la. Estranho efeito do orgulho do
homem, que quereria dever a si mesmo o bem que faz e a felicidade a que aspira,
contra esta palavra do Espírito Santo: Que tendes que não tenhais recebido?[1]
Essa alma, pois, não reflete, nem parece contar
senão com as suas obras e com as suas próprias forças; de sorte que o seu
desânimo diminui, cessa, volta ou aumenta, conforme ela age bem ou mal. Ela não
pensa em que só e exclusivamente da misericórdia de Deus é que deve esperar
socorro, e não dos seus próprios méritos; que, quando ela faz o bem, é pela
graça de Deus que o faz, graça que ela não pôde merecer; e que, em qualquer
estado, essa misericórdia lhe está aberta para obter essa graça.
Quando fazemos sentir a essas almas desanimadas que,
a exemplo dos Santos, devem pôr toda a sua confiança em Deus, sem hesitar elas
respondem não ser surpreendente que os Santos tivessem confiança em Deus, visto
serem Santos, e servirem a Deus com fidelidade; mas que elas não têm as mesmas
razões que os Santos para ter essa confiança perfeita. Não vêem que esse
raciocínio é contra os princípios da Religião.
A Esperança é uma virtude teologal; o motivo dela só
em Deus pode achar-se: essas almas fazem dela uma virtude humana, cujo motivo
se acha no homem e nos seus costumes. Não; os Santos nunca esperaram em Deus
porque eram fiéis a Deus; foram fiéis a Deus por haverem esperado n’Ele. Do
contrário, o pecador jamais poderia formular um ato de Esperança: e, no
entanto, é esse ato de esperança que o dispõe a voltar a Deus.
Notai bem que S. Paulo não diz: Obtive misericórdia
porque fui fiel; mas diz: Obtive misericórdia a fim de ser fiel.[2] A misericórdia
precede sempre o bem que fazemos: é ela que nos dá as graças que no-lo fazem
praticar. Os santos nunca contaram com as suas obras para apoiarem a sua
confiança em Deus: estavam por demais compenetrados desta lição que Jesus
Cristo nos dá: Quando tiverdes feito tudo o que vos é mandado, dizei: Somos
servos inúteis.[3] Quanto mais Santos eles eram, tanto mais humildes eram. A sua
humildade não lhes deixava enxergar senão a perfeição a que ainda não haviam
chegado. Bem distanciados dos sentimentos do Fariseu do Evangelho, eles não
achavam nada em si que pudesse assegurar a sua confiança; mas procuravam e
achavam no seio de Deus os fundamentos inabaláveis dela. Tais são os motivos
que os sustentaram; tais devem ser os que vos animarão e que reanimarão a vossa
fraqueza abatida. É importante que sejais instruídos sobre este ponto, para que
não caiais novamente na armadilha que o demônio vos tem tantas vezes lançado.
Notas:
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[1] Quid autem habes quod non accepisti? (I Cor 4,7)
[2] Quanquam misericórdiam consecutus a Domino, ut sim
fidelis (1 Cor 7, 15).
[3] Servi inutiles sumus: quod debuimus fácere, fecimus
(Lc 17, 10).