TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
O
EFEITO MAIS FUNESTO DO DESÂNIMO É QUE A ALMA QUE NELE CAI NÃO O CONSIDERA UMA
TENTAÇÃO. A ESPERANÇA E A CONFIANÇA EM DEUS É TÃO MANDADA QUANTO A FÉ E AS OUTRAS
VIRTUDES.
O
que faz o grande mal de uma alma desanimada é que, iludida por um temor
excessivo que lhe disfarça os verdadeiros princípios, abatida pela vista das
dificuldades contra as quais não acha em si mesma recurso algum, ela não
considera esse estado como uma tentação. Se o encarasse sob este ponto de
vista, desconfiaria das razões que o alimentam: e, assim, sairia dele bem mais
cedo e mais facilmente.
Bem
certo é, entretanto, que se trata de uma tentação bem definida; porquanto todo
sentimento que é oposto à lei de Deus, ou em si mesmo ou pelas consequências que
pode ter, evidentemente é uma tentação. É assim que julgamos de todas as que
podemos experimentar. Se nos vem um pensamento contra a Fé, um sentimento
contra a Caridade, ou contra alguma outra virtude, consideramo-lo como uma
tentação, desviamo-nos dele, e aplicamo-nos a produzir atos opostos a esse
pensamento, a esse sentimento, que nos põe em perigo de ofender a Deus.
Ora,
a Esperança e a confiança em Deus é tão mandada quanto a Fé e as outras
virtudes. O sentimento que vai contra a Esperança é, pois, tão proibido quanto
o que vai contra a Fé, e contra qualquer outra virtude: é, pois, uma tentação
bem caracterizada. A lei prescreve-nos fazer amiúde Atos de Fé, de Esperança e
de Caridade: proibe-nos, por isso mesmo, todo ato, todo sentimento refletido
contrário a essas virtudes tão preciosas e tão salutares. Deve-se, pois,
considerar o desânimo como uma tentação, e mesmo como uma tentação das mais
perigosas, visto que expõe a alma cristã a abandonar toda obra de piedade.
Para
tornardes sensível a vós mesmos esse perigo, examinai a conduta ordinária dos
homens. A esperança de ser bem sucedido, de se proporcionar um bem, de evitar
um mal, numa palavra, de satisfazer algum desejo ou alguma paixão, é que os
faz agir, é que os sustenta nas penas que eles têm de suportar, é que os anima
nos obstáculos que eles têm a vencer. Tirai-lhes toda esperança, e logo eles
cairão na inação. Só um homem no delírio pode dar-se movimentos por um objeto que
ele desespera de poder adquirir. O mesmo efeito o desânimo produz na prática
das virtudes; funda-se no mesmo princípio, a falta dos meios para chegar ao fim
que nos propomos.
A
alma cristã que não espera vencer-se na prática de alguma virtude, nada ou quase
nada empreende para se fortificar. Os esforços insuficientes que ela faz
aumentam-lhe a fraqueza; e, mais do que meio vencida pelo seu desânimo, ela se deixa
facilmente arrastar à paixão que a domina. A vista da sua fraqueza lança-a primeiramente
na irresolução, na perturbação. Neste estado, todo ocupada da dificuldade que
sente em combater, ela já não vê os princípios que devem guiá-la. O temor de
não ser bem sucedida impede-a de enxergar os meios que deve adotar para vencer,
e que Deus lhe apresenta: ela se entrega, pois, ao inimigo sem defesa. É como
uma criança a quem a vista de um gigante que avança contra ela faz tremer, e
que não pensa em que uma pedra basta para derrubá-lo, se ela se servir dessa
pedra em nome do Senhor. Essa alma, assim, desanimada, esquece-se de que tem um
socorro poderoso na bondade do Pai mais terno; e que é só reclamar esse
socorro, para sair vitoriosa do combate.