Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
2- Motivos do amor de Deus
1 - Devemos amar a Deus porque o próprio
Deus o ordena
“Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, e com todas as tuas forças.”
Este mandamento é o primeiro e o maior. É
o primeiro na sua ordem, como o mais essencial. O único essencial. - É o maior
pela majestade do seu objeto: Deus; pela sua extensão: compreende todos os
nossos deveres “o amor é a plenitude da lei” pelo seu fim: a glória de Deus e a
felicidade das criaturas as quais se alcançam sobretudo pelo amor; pelo rigor
da sua obrigação: ninguém está dispensado dele.
2 - Devemos amar a Deus porque a nossa
natureza o exige
Há em nós uma inclinação para tudo o que
é belo e bom. Esta inclinação é tão violenta que nos apegamos algumas vezes, de
maneira desordenada, às criaturas que nos manifestam alguma beleza ou bondade.
Ora Deus e só Ele, possui todas as perfeições que a imaginação pode conceber.
Por isso, somos irresistivelmente atraídos para Deus.
E logo que o amor dá entrada no coração faz
guerra de extermínio a todos os vícios.
Basta dizer que o Espírito Santo
compara-o à morte - fortis est ut mors
dilectio, o amor é forte como a morte.
Não há força que resista à morte, diz São
Leonardo, arranca o filho ao pai, o ambicioso às suas dignidades, o avarento
aos seus tesouros, ataca mesmo os exércitos no campo da batalha.
Omnia
separat amara mors. - A morte separa de tudo. Eis
precisamente o que faz o amor; aquele que ama a Deus de todo o seu coração,
está desapegado de todos os bens do mundo; está morto para o mundo, a sua
divisa é a do Apóstolo: Mihi vivere Christus est. A minha vida é Jesus Cristo.
Há em nós uma inclinação para sermos
reconhecidos e, por consequência, para amarmos aqueles que nos fazem bem. Ora
quem nos terá feito mais bem do que Deus?
Deus é nosso Criador e foi por amor que nos criou.
Deus é nosso Conservador, é a Ele que recebemos a vida, o movimento.
Deus é nosso Redentor, deu-nos o Seu Filho que, por amor, quis morrer por nós.
Deus é nosso Santificador, pelas Suas graças contidas nos sacramentos,
purifica-nos e edifica-nos, em certo modo.
Deus é nosso Remunerador, é por amor que dá o Céu aos Seus servos fiéis.
3- Prática do amor de Deus
Para termos uma caridade perfeita para
com Deus, São Lourenço Justiniano propõe-nos três meios muito eficazes: libenter de Deo cogitare, libenter pro Deo
dare, libenter pro Deo pati; isto é, pensar de boa vontade em Deus, dar de
boa vontade por amor de Deus e sofrer de boa vontade por Deus.
1 - Pensar muito em Deus
O primeiro meio de inflamar o nosso
coração no amor de Deus é: pensar muito em Deus. Na verdade quanto mais aprofundamos
o conhecimento de Deus, mais aprendemos quanto é digno de ser amado. E, então,
a nossa ocupação mais agradável é fazer atos de amor, de complacência para com
Deus, regozijando-nos de Deus ser Deus; de amor de benevolência desejando que
seja conhecido, amado e servido de amor de preferência, pondo Deus acima de
todas as criaturas.
Para este fim devemos amar a oração, a
meditação, o retiro. O retiro, segundo São Luiz de Gonzaga, é como a casca das
árvores que as preserva do frio e do calor, despojada da casca, a árvore seca.
Assim o recolhimento serve para conservar em nós a lembrança de Deus e com a
lembrança de Deus o Seu santo amor.
2- Dar de boa vontade a Deus
O segundo meio de nos abrasarmos no amor
de Deus é: dar de boa vontade a Deus. - De muitas coisas nos podemos privar
para dar a Deus um testemunho do nosso amor: 1.° Devemos privar-nos de todos os
excessos do amor próprio que é o único veneno da verdadeira caridade para com
Deus. Por amor próprio entende-se aqui a inclinação perversa do coração humano
para com a sua própria satisfação em todas as coisas.
Compenetremo-nos, pois desta verdade,
que, para sermos amigos de Deus devemos ser inimigos de nós mesmos, praticando
generosamente a mortificação e aplicando-a, sobretudo às partes mais sensíveis.
Não agradamos a Deus se fizermos consistir a nossa virtude num exterior
composto, numa atitude devota, numa aparência que é, muitas vezes, mais o
resultado da educação do que da graça. Agradeçamos-Lhe sim, se fizermos
consistir a nossa virtude em triunfar continuamente do amor próprio, aproveitando
todas as ocasiões, que se nos apresentam no decurso do dia, para mortificá-lo.
- Santa Teresa, interrogada por uma
enfermeira porque não comia de um alimento que parecia bem preparado,
respondeu: É precisamente porque é bom que eu não como.
Eis como procede aquele que ama a Deus.
Abstém-se de tal alimento porque é agradável ao paladar; retém uma palavra que
lhe vem à língua porque é picante; serve gostosamente tal pessoa porque é
ingrata; gosta de se entreter com tal outra porque é desagradável.
Se procedermos assim sentiremos que, em
pouco tempo, o nosso coração arde na mais bela chama da caridade.
Examinemo-nos bem e tomemos as nossas resoluções.
O amor de Deus obriga-nos a evitar tudo
o que possa ofendê-lO por ser infinitamente santo e infinitamente justo.
Porque Deus é infinitamente santo,
devemos temer ofendê-lO, de maneira a não Lhe desagradarmos em coisa alguma;
porque é infinitamente, justo, devemos temer ofendê-lO, de maneira a não
atrairmos justos castigos sobre nós.
O temor de Deus não nos leva a fugir de
Deus, mas a fugir de tudo o que Lhe pode ser desagradável, isto é, do pecado e
das ocasiões do pecado. Assim, se estamos na graça de Deus, devemos fugir da ocasião
do pecado com medo de a perder; se caímos em pecado, devemos logo pedir
sinceramente perdão com medo da justiça divina ofendida.
- Estamos dispostos a não ofender a Deus
gravemente pelo pecado mortal? Se a nossa generosidade se limita simplesmente a
isto, diz São Leonardo, a nossa generosidade é como a dos facínoras, est
beneficium latronum, que julgam que lhes deveríamos ficar muito obrigados
porque, apesar de nos tirarem a bolsa, nos deixaram a vida.
Estamos dispostos a nem sequer ofender a
Deus levemente por pecados veniais? É um grau mais elevado, mas é ainda muito
pouco. - Estamos dispostos a fazer a vontade e gosto de Deus, tanto quanto é
possível fazê-lo sobe a terra? Eis o amor verdadeiro, eis uma disposição digna
para introduzir a caridade nos nossos corações.
Probatio
amoris exhibitio est o peris - O amor manifesta-se
por obras.
3 - Sofrer de boa vontade por Deus
O terceiro meio de acender em nossas
almas fogo do amor divino é sofrer de boa vontade por Deus. Tudo o que não é mortificação
não é senão devoção aparente. Os nossos exercícios de piedade, oração,
meditação, senão produzem o espírito de mortificação e o desejo de sofrer de
boa vontade por amor de Deus, são como belas árvores ornadas de folhas e flores
sem fruto.
“Desenganai-vos,
diz São Francisco de Sales, a lenha mais própria para queimar e despertar as chamas
da caridade é a lenha da cruz; uni o vosso coração com a santa mortificação e
assim estareis dispostos para um grande amor.”
Gravemos, pois, profundamente no nosso
coração esta máxima de santa Teresa: ou sofrer ou morrer, ou então a de santa
Madalena de Pazzi; sofrer e não morrer; ou antes, depois destas preciosas
máximas formulemos uma terceira, que nos será bem mais apropriada e mais proveitosa:
sofrer e amar; sofrer e amar para tornarmos Deus propício durante a vida e na
hora da morte; sofrer e amar para assegurarmos o gozo de Deus por toda a
eternidade.
- O amor de Deus pode aumentar:
1.° Pela
meditação das perfeições e benefícios de Deus. “Alimenta-se o fogo juntando-lhe
lenha ou carvão; alimenta-se o amor de Deus, diz São Lourenço Justiniano, pela
meditação das verdades divinas.” E pela meditação, sobretudo da Paixão e Morte
de Jesus. “A montanha do Calvário, diz São Francisco de Sales, é a melhor escola
do amor.” - 2.° Pelo desprendimento das coisas
da terra. O desprendimento das coisas da terra contribui também para o
aumento da caridade. A lenha arde tanto melhor quanto mais seca e menos úmida;
assim a chama do amor divino abrasará tanto mais as nossas almas, quanto mais
desprendidas elas estiverem das inclinações viciosas. - 3.° Por frequentes atos de caridade. Toda a
faculdade se desenvolve pelo exercício, assim a faculdade de amar a Deus aperfeiçoar-se-á
pela repetição de atos de caridade.
O amor de Deus perde-se pelo pecado mortal.
Um jato de água apaga instantaneamente o fogo físico e o pecado mortal o fogo
do amor divino.
4 - Vantagens do amor de Deus
O amor de Deus é proveitosíssimo para
nós - tanto neste mundo como no outro.
Neste mundo.
- 1.º O amor de Deus ilumina a nossa
razão. - A nossa alma assemelha-se a um espelho que reflete os objetos que lhe
apresentam. Se voltarmos, portanto, a nossa alma para o amor de Deus, nela
resplandecerá a divindade, quer dizer, compreenderá melhor as coisas divinas,
será iluminada.
O ferro em brasa deixa-se facilmente
trabalhar, a alma abrasada no amor de Deus, é mais sensível às inspirações do
Espírito Santo. Aquele que tem maior caridade, atinge um conhecimento mais
perfeito de Deus. É o que sucede com o fogo; quanto mais ardente mais viva é a
sua luz.
2.° O
amor de Deus robustece a nossa vontade. - Não há nada que dê mais força e
coragem que o amor. “O amor suporta tudo, diz o Apóstolo São Paulo, e tudo
sofre.” (I Cor. XIII, 7).
3.° O
amor de Deus obtém-nos o perdão dos pecados. - Jesus Cristo disse de
Madalena pecadora; “Perdoados lhe são muitos pecados porque amou muito.” (Luc.
VII, 47). “O amor, diz São Pedro, cobre a multidão das faltas.” (I Ped. IV, 8).
No
outro mundo. 1.º
Pelo amor de Deus obtemos os gozos do Céu. “Nunca os olhos viram, nem os
ouvidos ouviram, nem jamais o entendimento do homem compreendeu o que Deus tem
preparado para aqueles que o amam.” (I Cor. II, 9).
1.º O
amor de Deus valoriza as nossas boas obras- Às nossas boas obras terão
valor tanto maior, diz São Francisco de Sales, quanto maior for a caridade com
que as praticarmos. “O amor é o tempero das boas obras, diz São Boaventura;
quanto mais temperos desses possuímos, mais as nossas obras são agradáveis ao
paladar de Deus.” A comida sem sal não tem sabor nenhum, assim as nossas obras se
lhes falta o amor, não são ao gosto de Deus.
2.º O
amor de Deus aumenta a nossa felicidade no Céu. - A nossa felicidade será
tanto maior quanto maior for, ao morrermos, o grau do nosso amor.
Quanto mais tivermos amado, diz São Francisco
de Sales mais seremos glorificados no Céu. Um pai também dá mais àquele dos seus
filhos que lhe mostrou mais afeição. O amor é o peso do homem; quer dizer que
quanto mais ele ama, maior é o valor que tem diante de Deus.