Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
II—
Mérito
Que é mérito em
geral?
E
o direito a uma recompensa merecida por uma obra boa. Assim o operário tem
direito ao salário que a recompensa do seu trabalho. Para
inteligência desta doutrina advertimos que as obras são vivas, mortas,
mortíferas, e mortificadas.
1.º
Chamam-se vivas as obras que se fazem em estado de graça, excitando e
auxiliando a graça atual, já porque procedem de um princípio espiritual vivo,
já porque merecem a vida eterna.
2.º
Chamam-se mortas às obras que não obstante serem moralmente boas e
sobrenaturais, como a oração, a comunhão, são feitas em estado de pecado e não
são, por isso, meritórias da vida eterna.
3.º
Chamam-se mortíferas as obras que privam o homem da vida da graça, como são os
pecados mortais.
4.º
Chamam-se mortificadas todas aquelas obras que, sendo feitas em estado de
graça, ficam impedidas de produzir o seu efeito, em razão do pecado mortal
subsequente, quando já não têm mais valor para nos merecerem a vida eterna.
Todavia, remetido o pecado pela Penitência, as obras que antes foram feitas na
graça de Deus e mortificadas pelo pecado subsequente, revivem, e readquirimos o
seu mérito. O pecado roubou-o, a graça restituiu-o.
Que é mérito
sobrenatural?
E
o direito a uma recompensa sobrenatural que resulta de uma obra
sobrenaturalmente bem feita livremente para Deus, e de uma promessa divina que
afiança essa recompensa. Expliquemos esta definição.
1.°
O Mérito é um direito a uma recompensa sobrenatural que consiste no aumento da
graça santificante na nossa alma, na glória e felicidade do Céu e no aumento
desta glória e felicidade.
2.°
Recompensa merecida por um até interior ou exterior de virtude sobrenatural,
feito para Deus, feito em estado de graça e com o auxílio da graça.
I — Certeza do
mérito
As
recompensas do mérito são certas.
1.º
Aumento da graça santificante na alma.
São
João Evangelista diz que «Aquele que é justo justifique-se mais, e aquele que
é santo santifique-se mais ainda.»
São
Paulo exorta-nos a que pratiquemos o Evangelho na caridade a fim de crescermos
em todas as coisas n'Aquele que é a cabeça, Jesus Cristo. (Efes. IV, 13). O
Concílio de Trento afirma que o homem justificado, isto é, na graça de Deus,
merece um aumento de graça pelas boas obras que faz.
2.º
Glória e felicidade do Céu.
São
Tiago diz: «Bem-aventurado o homem que sofre provações de toda a espécie porque
receberá a coroa da vida que Deus promete àqueles que o amam. São
Paulo compara a nossa vida a uma carreira no fim da qual se recebe uma coroa
imortal. (I Cor. IX, 24).
O
Concílio de Trento afirma ainda que o homem justificado merece a vida eterna.
3.º
Aumento da glória e felicidade no Céu.
Nosso
Senhor Jesus Cristo promete dar aos justos uma recompensa proporcionada às suas
obras. « Dará a cada um, diz são João, segundo as suas obras.» (Apoc. XX, 12).
O servo, que negociou com os talentos recebidos do seu Senhor, recebeu o duplo
como recompensa. (Mat. XXV).
O
Concílio de Trento assegura, finalmente, que aquele que morre em estado de
graça merece o Céu e um aumento de glória.
II — Condições
geral do mérito
Vejamos
as condições gerais do mérito:
1.º
Por parte do homem.
Estado
de graça. — Tratando-se do mérito propriamente dito, a obra deve ser praticada
em estado de graça.
Façamos
uma comparação. Uma árvore é brava, selvagem; os seus frutos são acres, não se
podem tragar. Que há a fazer? Cortá-la e lançá-la ao fogo? Não. Enxerte-se. E,
na primavera, cobre-se de folhas, recama-se de flores e na estação própria dá
frutos. Mas que frutos tão saborosos, dignos de ser apresentados na mesa dos
grandes!
Coisa
admirável! A árvore é a mesma, o tronco é o mesmo, os ramos são os mesmos! Mas
devido à ação do enxerto a seiva foi transformada. Verdadeira imagem da
transformação das almas pela graça. Pela graça somos enxertados em Cristo,
tornamo-nos participantes dos Seus méritos.
Se
uma pessoa estiver em pecado mortal, poderá, é certo, fazer boas ações, mas
estas são frutos amargos rejeitados por Deus, como indignos de recompensa
eterna.
Ouçamos
a propósito, o Apóstolo são Paulo: Ainda que tenha uma fé capaz de transpor
montanhas, ainda que eu fale a linguagem dos anjos e dos homens, ainda que dê
todos os meus bens aos pobres e entregue o meu corpo aos rigores da
mortificação, se não estiver nas graças de Deus, nada sou nem de nada me
aproveita. Se a mesma pessoa passar ao estado de graça, a mínima ação, um copo
de água fria que ela dê, não ficará sem recompensa.
A
pessoa é naturalmente a mesma, mas sobrenaturalmente foi transformada pela
seiva da graça que torna todas as ações agradáveis a Deus e meritórias.
Quanto
é útil andar na graça de Deus, e prejudicial andar em pecado mortal!
A
alma deve ser:
1.° Moralmente boa. Pois que em vez de prêmio, o que se dará a
uma obra má, é o castigo.
2.° Sobrenatural. Todo o bem que fazemos fora do
influxo da graça, com as únicas forças da natureza, só nos poderá valer outro
bem na mesma ordem: constitui merecimento natural e só dá direito a uma
recompensa desta mesma ordem.
3.º
Por parte de Deus. O
merecimento de justiça supõe a vontade de Deus manifestada por promessa: «cada
um, diz são Paulo, há de receber o salário, conforme o trabalho». A mim resta-me
a coroa de justiça que me está reservada. «Eu mesmo, diz nosso Senhor, serei a
vossa recompensa».
Estas
condições deduzem-se das diversas causas que concorrem para a realização de atos
meritórios, por consequência, de Deus e de nós mesmos. Deus não nos falta.
Devemos, portanto, atender a nós mesmos e aos nossos atos.
III — Condições para o aumento do mérito
1 — Condições exigidas no sujeito em si mesmo.
As
principais condições que contribuem para o aumento do nosso mérito são:
1.º
O grau de graça santificante. — Na verdade, quanto mais graça santificante
possuirmos, tanto mais agradáveis somos a Deus, e tanto mais lhe agradam os
nossos atos e, por isso, maior recompensa têm. Como
esta doutrina é consoladora para cada um de nós! Aumentando cada dia o capital
da graça, aumento o valor dos meus atos e torno os cada vez mais meritórios.
Façamos por corresponder ao convite de nosso Senhor: «Aquele que é justo
justifique-se mais».
2.º
O grau de união com Cristo. —Jesus Cristo é a fonte do nosso mérito e a causa
meritória principal de todos os bens sobrenaturais. «Não sou eu quem opera, diz
são Paulo, é a graça de Deus comigo.» (I Cor. XV, 10).
Ora
quanto mais perto estamos da fonte mais recebemos da sua plenitude; quanto mais
unidos estamos à cabeça mais recebemos dela o movimento e a vida. É isto mesmo
que nos diz Jesus Cristo nesta bela comparação: Eu sou a videira e vós os
ramos; aquele que permanece em mim eu nele, esse produz muito fruto. (Jo. XV,
1-16). Unidos a Jesus Cristo, como os ramos à cepa, recebemos tanto mais seiva
divina quanto mais habitualmente, atualmente e estreitamente estamos unidos à
cepa divina.
Por
isso a santa Igreja nos pede que façamos as nossas ações por Ele e n'Ele.
Por
Ele. — Ninguém vai ao Pai sem passar por Ele. Ele diz, falando de si mesmo: «eu
sou o caminho.»
Com
Ele. — No caminho da vida devemos dar-lhes a mão como uma criança a seu pai,
devemos operar com Ele, Sem mim, diz Ele, nada podeis fazer.
N'Ele.
— Devemos entrar n'Ele, fazer organicamente parte d'Ele como os ramos de uma
árvore, e tê-lo por cabeça dos membros de um corpo. Então podemos dizer com são
Paulo: Eu vivo, mas verdadeiramente não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que
vive em mim, é Jesus Cristo que pensa, fala e opera em mim.
Assim
toda a nossa atividade torna-se autenticamente cristã, atividade por Cristo,
com Cristo e em Cristo.
Fora
disto não há senão falsificação.
3.º
A intensidade ou fervor com que se opera. — Podemos fazer as nossas ações com
fervor, com ardor, utilizando toda a graça atual posta à nossa disposição, ou
ao contrário, com desleixo e frouxidão. É evidente que os resultados nestes
dois casos são bem diferentes.
Se
operamos com indolência, se fazemos pouco e mal, nada adquirimos, ou só poucos
méritos; se operamos com todas as forças, de modo a fazermos muito e bem,
alcançamos muitos merecimentos.
Façamos
sempre cada vez mais e cada vez melhor.
4.º
A pureza de intenção ou perfeição do motivo que nos leva a operar. — A intenção
é o que há de principal nos nossos atos.
Ora
há três elementos que dão à nossa intenção valor especial.
1.º
A caridade isto é, o amor de Deus e do próximo. Assim as nossas ações mais
vulgares, sem perderem o seu valor próprio, participando do valor da virtude da
caridade, convertem-se em atos de caridade. Por exemplo: comer para refazer as
forças é um até honesto, que num cristão que vive em graça, se torna um até
meritório; mas reparar as forças para melhor poder trabalhar para glória de
Deus e bem das almas, é um motivo de caridade bem superior e que nobilita esse até
e lhe confere grande valor meritório.
2.º
Várias intenções. — Uma ação boa, feita por diversas intenções, torna-se mais
meritória. Assim um até de obediência aos superiores, feito por um duplo
motivo: respeito à autoridade e amor a Deus, que se vê na pessoa do superior,
terá o duplo mérito — da obediência e da caridade.
E,
pois, útil propormo-nos várias intenções sobrenaturais.
3.º
Tornar explicitas e atualizar as intenções sobrenaturais. — Assim como o
pedreiro, à medida que vai fazendo parede, se vai servindo do prumo para que
toda fique em linha vertical, assim também à medida que vamos fazendo boas
ações sobrenaturais, devemos renovar a intenção de fazer tudo para glória de
Deus, porque as paixões humanas, sobretudo o amor próprio, as desviam da linha
reta. — Tudo, pois, para maior glória de Deus!
2
— Condições exigidas no até em si mesmo
Não
são unicamente as disposições do sujeito que aumentam o mérito, mas também as
circunstâncias que contribuem para tornar a ação mais perfeita.
1.º
Excelência do até que se pratica. — Há uma hierarquia nas virtudes: assim os atos
das virtudes teologais são mais perfeitos que os atos das virtudes morais, e,
por este motivo, os atos de fé, esperança e caridade são meritórios que os atos
de prudência, justiça, fortaleza e temperança.
2.º
A quantidade, em certas ações, pode influir no mérito. — Assim, em igualdade de
circunstâncias, uma esmola de cem escudos é mais meritória que a de dez
centavos.
3.º
A duração torna também a ação mais meritória. — Orar ou sofrer durante uma hora
vale mais do que fazê-lo durante cinco minutos.
4.º
Dificuldade do até. — O mérito está em proporção com o esforço moral ou físico despedido
na realização do até. Resistir a uma tentação violenta é mais meritório do que
resistir a uma leve tentação; praticar a doçura, quem tem um temperamento irascível
é mais meritório do que quem tem um temperamento meigo.
Devemos,
pois, não só santificar todas as nossas ações, mas também fazê-las com a máxima
perfeição para que sejam muito meritórias.
III
— Bem-aventurança eterna
Os
frutos da terra têm cada um seu sabor especial; assim também os frutos do
Espírito Santo ou as obras sobrenaturais tem cada uma o seu sabor.
Ora,
do mesmo modo que o sabor não nos delicia se o fruto não se põe em contacto com
o paladar, órgão do gosto, assim também é preciso que o sabor dado pela graça
santificante às obras sobrenaturais entre em contacto com o paladar espiritual
para que haja deleitação espiritual — beatitude ou felicidade suprema.
A
graça, dá pois, a felicidade eterna.
Diógenes,
o cínico, mandara construir no mercado de Atenas, um belo estabelecimento, no
frontispício do qual se liam estas palavras: aqui, vende-se a sabedoria. Um
homem rico da cidade mandou um dos seus criados comprar sabedoria no valor de
três moedas. Diógenes tomou o dinheiro e escreveu esta sentença: «Em todas as
coisas considera o fim»: A máxima parece tão sensata ao rico Ateniense que a
mandou gravar na fachada da sua casa.
Nada
custa a gravar esta sentença nas nossas almas.
Consideremos
o fim de nossa vida natural: é a morte. O fim de nossa vida sobrenatural: esta
não tem fim. Se estamos na graça de Deus a morte será uma grande alegria,
porque, da vida da graça passamos à vida da glória. Entre a graça e a glória há
a espessura de um véu, a morte descortina esse véu.
A
graça e só ela, dá a felicidade eterna.
«Que
a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco». (Tess. V, 28).
Continuará com o capítulo: Graça atual...
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