CONSELHOS SOBRE A VOCAÇÃO
CAPÍTULO II
ESTUDO DA VOCAÇÃO
Padre J. Guibert
(Superior do Seminário do Instituto Católico de Paris)
edição de 1937
A
aptidão
52.
— Desejais a vida religiosa. Vosso atrativo é nítido, constante, sobrenatural, provado;
numa palavra, tendes intenção reta: é um primeiro sinal de vocação. Para
determinar-vos, um segundo sinal é necessário, a aptidão ou idoneidade. Por
esta palavra de aptidão, entendem-se as disposições indispensáveis para
desempenhar as obrigações da vida religiosa. Com
efeito, entendereis sem custo que as comunidades, assim como o clero, não são
asilos onde vão abrigar-se as pessoas incapazes de criar-se uma posição. São
outras tantas legiões ou falanges, que formam, juntas, o grande exército
católico e nas quais ninguém entra senão para ser valente soldado e ocupar um
posto de honra nos combates. Antes de alistar-se nesta milícia, cada um deve
examinar suas forças e sua coragem e verificar se é capaz de ser um bom soldado
de Jesus Cristo.
A
habilidade dos pretendentes deve ser examinada com grande cuidado. Como Deus
não Se contradiz em Seus atos, não pode chamar os incapazes a Seu serviço.
Embora tivésseis as mais ardentes aspirações para o sacerdócio ou a vida
religiosa, este atrativo não vem de Deus se este bom Pai não vos deu as
qualidades indispensáveis para a missão que ambicionais.
Estas
qualidades são: a saúde física, a inteligência suficiente, a retidão do
espírito, a força da vontade, a pureza do coração.
53.
— Não é evidente que a saúde deve ser boa?
Há
hospitais para recolher os doentes; nos seminários e noviciados só pessoas de
boa saúde podem ter ingresso. Os temperamentos doentios seriam um peso e não um
auxílio para uma comunidade. Em todas as famílias religiosas, prodigalizam-se
os desvelos mais dedicados a todos os membros que estão sofrendo; mas o mesmo
zelo caritativo que faz cuidar dos soldados feridos, há de servir para arredar,
logo no princípio, todos quantos são incapazes de manejar as armas.
Por
exemplo, os meninos atacados de graves enfermidades, de compleição
fraca, notavelmente disformes, deverão resignar-se a nunca seguir seu atrativo
se o experimentarem. Depois de adquirir forças, melhorar o temperamento,
poderão, com toda a segurança, contentar seus desejos.
54.
— A respeito do espírito, duas qualidades são necessárias: a inteligência
suficiente e a retidão do juízo.
A
inteligência é suficiente quando os estudos se podem fazer com facilidade.
Espíritos por demais obtusos, aos quais não se podem inocular os primeiros
elementos do saber, não podem pretender a um lugar em comunidade alguma. Quanto
ao grau maior ou menor de inteligência, tudo depende do gênero de vida que se
deve levar mais tarde.
Por
exemplo, se quiserdes entrar no ensino ou no sacerdócio, precisais de sérias
capacidades intelectuais: tendes que fazer estudos, prestar exames; tereis que
distribuir aos outros a ciência das coisas divinas e das coisas humanas: ao
gosto pelo trabalho, deveis unir os talentos necessários para garantir o bom
êxito.
No
caso em que tiverdes mau êxito nos estudos, e mostrardes mais inclinação para
os trabalhos manuais e as coisas práticas do que para as ciências, não desanimeis:
vossas aspirações religiosas ainda podem realizar-se; porque podeis escolher
uma congregação que se dedique de preferência às obras de caridade; ou mesmo
numa congregação de ensino, podereis desempenhar um ofício em que as ciências e
os títulos acadêmicos não sejam necessários.
55.
— Mas a retidão de juízo é uma qualidade essencial. Espíritos de pouco alcance,
sem brilho, contanto que sejam bem ajuizados, equilibrados, servem por toda a parte;
podem mesmo prestar grandes serviços. Os espíritos falsos, desajuizados, sempre
lançam a perturbação e a confusão por onde passam; razão pela qual os
superiores devem arredá-los com uma severidade intransigente.
Não
vos pertence, de certo, julgar a retidão de vosso espírito; se fosse falso,
haveria muita dificuldade para convencer-vos disto, porque todo o espírito
falso se acredita sempre muito reto. Mas se os superiores deixam de lado vosso
pedido de admissão e julgam que vosso atrativo não vem de Deus, não façais insistência;
porque os superiores nunca hesitam em receber alguém quando lhe conhecem muito juízo:
a maior parte das vezes, recusam apenas afim de não admitir espíritos
perigosos. Os outros defeitos podem ser corrigidos; um espírito falso nunca se
corrige, não há remédio para ele.
56.
— Sois muito mais senhor de vossa vontade do que de vosso espírito. Sois de tal
modo senhor dela que podeis, por meio de esforços constantes, dar-lhe as
qualidades que hão de torná-la digna de vossa vocação. Estas qualidades se
resumem numa só: a força. Pela força de vontade estareis em condições de
combater os defeitos de vosso gênio e praticar as virtudes de vosso estado.
Nenhum
gênio está sem defeitos: os meninos, sobretudo, precisam formar-se o caráter.
Examinai o estado em que se acha o vosso e criai coragem para lutar contra
vossas más tendências. — Sois colérico, insubordinado, independente?
Acostumai-vos cedo à obediência: porque se a docilidade vos faltasse, o jugo de
uma regra religiosa havia de quebrar-vos em lugar de vos sustentar. — Sois
melancólico, triste, cismador, pouco amigo da sociedade de vossos colegas?
Violentai vossa natureza e tornai-vos amável, delicado, bondosíssimo: porque o
humor misantrópico, se permanecesse em vós, vos tornaria o flagelo da comunidade.
— Tendes inclinação para a preguiça, estais com moleza no trabalho, não cumpris
vossas obrigações senão por medo de castigos? Renunciai a um estado cujas
obrigações exigem grande força de ânimo; ou melhor, lutai com vigor contra
estas desgraçadas faltas; levantai-vos ligeiro de manhã, mostrai-vos ativo no
jogo, exato em todos os deveres que vos são impostos. A moleza de vosso gênio
poderá, com algum exercício, transformar-se em grande energia. —Sois fraco de caráter,
deixando-vos dominar pelos colegas, acompanhando-os cegamente para onde
queiram, corando de parecer bom diante deles? Não sois apto para a vida religiosa:
porque Deus quer em seu exército soldados que não se pejem de servir a boa
causa e não passem para o inimigo.
Graças
à energia do caráter, sereis franco, sincero, não estareis com medo de
expandir-vos, não tereis respeito humano, praticareis com denodo todos os
deveres de um bom cristão, não vos deixareis arrastar pelas más companhias, e
tereis sobre vossos companheiros a boa influência de palavras e exemplos
virtuosos.
Sem
dúvida, o gênio não pode ter, logo no começo, tanta perfeição e tanta grandeza
moral. Mas para acreditar que tendes vocação, não é a perfeição que deveis
realizar, é o esforço constante para alcançá-la que deveis mostrar. Se nada
fizerdes para formar vossa vontade, vossos atrativos de vocação não são sérios:
pelo contrário, se lutardes contra vossas tendências más e se vossos primeiros
sucessos pressagiam a vitória, tudo vai bem do lado da vontade.
57.
— Enfim o coração também deve trazer o sinal divino. Não se manchar no lamaçal
do vício, subir até Deus sobre as asas da piedade: tal deve ser o coração que
Deus escolheu.
O
vício da impureza é o mais perigoso de todos para um coração que deve
conservar, na religião, a mais inviolável pureza. Portanto um menino, desde
cedo estragado pela corrupção e já incapaz de praticar a angélica virtude, não
pode aspirar ao estado religioso. Não se deve confundir, é verdade, o vício com
faltas de surpresa, o hábito com fraquezas passageiras: pecados arrependidos e
apagados pelo sacramento da Penitência, não são um obstáculo à vocação em um
coração perfeitamente convertido. E mesmo, em certos casos, um menino pode ter
sido, por muito tempo, a vítima de costumes lastimáveis, e ainda aspirar à vida
religiosa, contanto que tenha vitoriosamente extirpado as raízes do mal, mas
então a prova dos hábitos de virtude deve ser mais comprida e muito mais
rigorosa. A graça gosta de realizar todos os dias tais milagres de
transformação.
Certas
doenças do coração são um grande obstáculo para a vida religiosa: quero falar
das tendências a procurar, nas amizades sensuais, gozos perigosíssimos. Porque,
embora seja possível deter o coração durante alguns anos num terreno tão
escorregadio, é raro que uma alma tenha bastante vigor na vontade para nunca se
deixar cair. Contudo, como tão delicado ponto é de apreciação dificílima, é
unicamente ao confessor que pertence o direito de dar a última decisão. O dever
de um menino consiste em revelar exatamente suas inclinações: seja qual for a
resposta que receba depois, terá, ao menos, assegurado a paz de sua
consciência.
O
mesmo se deve dizer de todos os outros sinais de vocação. Como ninguém é bom
juiz em causa própria, não deveis tomar um partido sem consultar vosso diretor;
abri-lhe totalmente vossa alma de modo tal que possa discernir os últimos
recantos. Contai-lhe todas vossas culpas, todas vossas inclinações, todos os
movimentos de vosso coração. Mas não vos limiteis em descobrir o mal: dai
igualmente a conhecer o bem, vossas aspirações, vossos ímpetos de fervor, as
palavras secretas que Deus vos diz durante as horas de oração, os recursos
intelectuais e morais de que dispondes. No momento em que vossa alma inteira
estiver desdobrada diante de vosso diretor, como uma folha aberta, ele
distinguirá sem custo o caminho que Deus vos traçou para mais tarde: se fordes
chamado, ele o dirá, e seguireis o rumo que vos indicar; se não fordes chamado,
ele o dirá também, e então ficareis na via comum dos cristãos.