Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
3
— Seus efeitos nas potências
1.º
A natureza de um ser é a raiz das propriedades diversas aptas para produzir
efeitos em harmonia com o fim desse ser. — A adaptação das propriedades a tal
fim determinado forma a potência ou faculdade. Esta adaptação é obra d'Aquele
que, com toda a sabedoria, criou a nossa natureza. — Enfim, o sujeito que aplica
a potência à produção do seu ato é a pessoa.
2.º
Daqui se conclui que na execução de um ato entram três elementos em ação: —A natureza
como princípio remoto de operações — principium quo remotum, — as potências ou
faculdades como princípio próximo — principium quo proximum, e a pessoa como
princípio operador — principium quod.
Na
ordem sobrenatural a graça dá origem a três elementos necessários à vida
sobrenatural.
Pela
participação na natureza divina recebemos um princípio inteiramente novo de
operações — o de poder conhecer e amar a Deus como Ele se conhece e ama a Si
mesmo. É a nossa nova natureza, a nossa natureza sobrenatural.
Pela
justificação revestimo-nos de uma nova personalidade, uma personalidade
sobrenatural, denominada pelo Espírito Santo, o justo.
Vejamos
agora como a graça dá origem às potências sobrenaturais.
Potências
sobrenaturais
Que
potências sobrenaturais nos dá a graça santificante?—Propriamente falando, a
graça não nos dá novas potências distintas das que possuímos naturalmente.
A
nossa alma é dotada de duas faculdades: a inteligência e a vontade; a graça não
lhes acrescenta uma terceira faculdade. — O nosso corpo animado é dotado de
quatro sentidos ou faculdades internas — imaginação, memória sensitiva,
instinto, senso comum; — e de cinco sentidos ou faculdades externas — vista,
ouvido, olfato, gosto e tato; a graça não acrescenta uma quinta ou sexta
faculdade.
Que
faz a graça? — Sobrenaturaliza as faculdades já existentes a saber: a inteligência
e a vontade de maneira que se tornem aptas para produzir atos sobrenaturais.
Estas duas faculdades, com efeito, de sua natureza «natural» são-nos dadas
para nos pormos em contato e apreendermos a verdade e o bem existentes nas
criaturas. Ora, na ordem sobrenatural, a operação destas duas faculdades é para
nos pormos em contato e apreendermos a verdade e o bem em Deus, isto é, Deus
mesmo revelando-se e comunicando-se a nós. É preciso, pois, que estas
faculdades naturais recebam um acréscimo de potência, uma sobrenaturalização
que lhes permita produzir os atos já mencionados. É precisamente o efeito que
produz a graça santificante nas faculdades espirituais, dá-lhes virtudes
especiais em harmonia com o fim a atingir; a saber: as virtudes teologais, as
virtudes morais infusas e os dons do Espírito Santo.
Como
é que as virtudes sobrenaturalizam as faculdades? — Vejamos como as virtudes
sobrenaturalizam as faculdades.
1.
— Virtudes teologais
A
fé une-nos a Deus, suprema verdade, e ajuda-nos a ver é apreciar tudo à sua luz
divina. — A esperança une-nos Aquele que é a fonte dá nossa felicidade — a
caridade eleva-nos até Deus sumamente bom em si mesmo.
2.
— Virtudes morais
As
virtudes morais que têm por objeto um bem honesto distinto de Deus e por motivo
a própria honestidade desse objeto, favorecem e perpetuam essa união com Deus,
regulando tão bem as nossas ações que, não obstante os obstáculos que se
encontram dentro e fora de nós, tendem sem cessar para Deus. — Assim é que a Prudência
nos leva a escolher os melhores meios para o nosso fim sobrenatural.
A
justiça fazendo-nos dar ao próximo o que é devido, santifica as nossas relações
com os nossos irmãos de tal forma que nos aproxima de Deus. — A fortaleza
arma-nos contra a provação e a luta, faz-nos levar com paciência os sofrimentos
e empreender, com santo arrojo, os mais árduos trabalhos para promover a glória
de Deus. E como o prazer ilícito nos afastaria disso, a temperança modera em
nós a ânsia de prazer e subordina-o à lei do dever.
3.
— Dons do Espírito Santo
Os
dons do Espírito Santo são sete energias ou propriedades sobrenaturais que se
acrescentam a cada uma das sete virtudes — três teologais e quatro morais —
para tornar o justo dócil à inspiração e à moção do Espírito Santo.
4.
— Necessidade dos dons
O
homem justo, diz Leão XIII, que vive da vida da graça e opera por meio das virtudes
que nele desempenham o papel de faculdades, necessita igualmente dos sete dons
do Espírito Santo.
Deus
criou-nos para o conhecermos, amarmos e servirmos. Por isso, temos necessidade dos
dons do Espírito Santo:
1.º
Para conhecer a Deus perfeitamente.
Que
pensaríamos de um filho que soubesse simplesmente o nome de seu pai, mas que ignorasse
quem ele era, o que fazia, as suas ordens e os seus desejos? Seria uma coisa
bem triste! Não conhecer o pai seria como se o não tivesse.
No
mundo divino não somos também desgraçados? Que sabemos do nosso Pai do Céu? Quase
nada. Por nós mesmos pouco o poderemos conhecer.
Para
apreciar o que Ele é, precisamos de ter a Sua sabedoria. Para adivinhar o Seu
verdadeiro pensamento precisamos de ter a Sua inteligência. Para compreender o
que Ele faz, precisamos de ter a Sua ciência e o Seu próprio conselho para
adivinhar os Seus desejos.
Em
suma, para bem conhecermos Deus precisamos de ter o Seu espírito.
2.º
Para amar a Deus perfeitamente.
— Não basta que um filho conheça seu pai; deve amá-lo
de todo o coração. Muitos
prometeram com juramento amar a Deus durante toda a sua vida e, todavia, têm faltado
à sua promessa, insultam o Rei do Céu, crucificam em si mesmos Jesus Cristo,
desonram a Igreja e renegam a sua fé. Nem oração, nem missa, nem comunhão.
É preciso que o Espírito Santo encha esses corações de temor, de maneira que
estejam antes dispostos a morrer do que a pecar. É preciso receber o dom da piedade
para terem sempre pelo Pai celeste um afeto filial, indo ao templo e
frequentando os sacramentos.
Devido
ao dom de piedade amamos a Deus de todo o nosso coração, de toda a nossa alma e
com todas as nossas forças. E assim podemos repetir com o Apóstolo: «Nada
poderá separar-me da caridade do meu Deus que está em Cristo Jesus; porque na
verdade não sou eu que vivo é Jesus Cristo que vive em mim.»
3.º
Para servir a Deus perfeitamente.
— Quem conhece e ama a Deus de todo o
coração, procura cumprir a sua Lei; Ele mesmo diz: «Se alguém me ama observa os meus mandamentos.» Porém, para cumprir a Lei de
Deus, temos necessidade do dom da fortaleza para vencermos os inimigos: o
mundo, demônio e carne, que nos desviam do serviço de Deus.
E
assim tudo podemos n'Aquele que nos conforta.
5.
— Sapiência
O
dom da sapiência aperfeiçoa a virtude da caridade fazendo-nos saborear a Deus e
as coisas divinas por um conhecimento experimental.
Pela
concupiscência o homem só tem gosto pelas coisas da terra e acha tudo amargo na
religião. O Espírito Santo dá-nos pois um paladar espiritual para saborearmos
todas as coisas divinas.
Este
dom dá-nos um conhecimento experimental. Não é melhor diz são Boaventura, experimentar
a doença do mal do que saber que ele é doce? Assim a Sabedoria que nos dá um
conhecimento saboroso de Deus é superior a todos os outros dons que no-lo fazem
simplesmente conhecer. Os filhos dos reis acostumados, nos seus palácios, a alimentar-se
de manjares delicados não invejam aos pobres a sua comida grosseira; como nós
mesmos não invejamos aos animais a alimentação que lhe é própria. Assim as
almas que possuem o dom da Sabedoria experimentam tanta doçura e gosto no
serviço de Deus, que vivem inteiramente desapegados das vaidades do mundo.
«
Afeiçoai-vos às coisas que são lá de cima e não às que estão sobre a terra». (Colos.
III, 2).
6.
— Entendimento
O
Entendimento é um dom que, sob a ação dominadora do Espírito Santo, aperfeiçoa
a virtude da fé, dando-nos uma intuição penetrante das verdades reveladas sem
contudo nos descobrir o seu mistério.
Fé
viva. A fé faz-nos acreditar firmemente por causa da autoridade divina. O dom
do entendimento dá-nos uma certa percepção dessas verdades, com este dom a alma
devota descobre em Deus belezas admiráveis, nos mistérios encantos maravilhosos
e na religião atrativos inefáveis e na Providência divina desígnios sublimes.
Por isso, diz são Paulo; «Deus nos tem revelado estas coisas, pelo seu Espírito
que penetra tudo até às profundezas de Deus.»
Afetos
piedosos. — Eu creio que Jesus Cristo morreu por mim; todavia a Sua paixão e morte
são, para mim, um drama como que saído da imaginação de um romancista. Pelo
contrário, um são Francisco de Assis experimentava uma tal ternura por Jesus
Crucificado que não podia olhar para o Crucifixo sem derramar abundantes
lágrimas.
Eu
daria a minha vida para confirmar a presença real de Jesus na Eucaristia, mas,
a minha atitude diante de Jesus Sacramentado dá testemunho da minha fé? Estou
distraído, enfadado e numa atitude exterior pouco respeitosa; ao passo que
muitos cristãos adoram Jesus Sacramentado com os sentimentos do mais profundo respeito.
Nós,
numa palavra, pertencemos à mesma Igreja que os santos, temos a mesma crença e a
mesma educação que eles tiveram, ouvimos muitas pregações, lemos muito e
ficamos sempre na mesma ignorância ou indiferença a respeito do que ouvimos ou-
lemos, as passo que a fé, as verdades da religião arrebatavam os santos. Como
explicar isto? É que as verdades da religião depositadas em nós pela graça e
pela educação, só nos esclarecem e comovem, segundo o grau de claridade do dom
do Entendimento.
Horror
ao pecado. - Nós pecamos e tornamos o pecar e, todavia, ficamos tranquilos, sem
repugnância pela ofensa feita a Deus e o estrago causado às nossas almas. Se
tivéssemos o dom do Entendimento conheceríamos a majestade, a bondade de Deus,
a importância da salvação e não consentiríamos, sequer, um pecado venial.
Esclarecida
pelo dom de Entendimento, dizia santa Maria Madalena de Pazzi: Eu morro sem poder
compreender que se possa cometer um pecado mortal. E santa Tereza de Jesus
dizia que achava impossível que se pudesse cometer um pecado venial.
7.
— Conselho
O
dom do conselho aperfeiçoa a virtude da prudência fazendo-nos julgar pronta e
seguramente, por uma espécie de intuição sobrenatural, o que convém fazer,
sobretudo nos casos difíceis em ordem à salvação, isto é, o que se deve dizer e
calar, fazer e evitar.
Os
que não têm o dom do conselho são cegos nos seus projetos, inconsiderados nas
suas palavras, precipitados nas suas ações e imprudentes na sua conduta. Os
principais obstáculos a este dom são: A presunção. O presunçoso confia em si e
crê que não tem necessidade da direção de outrem. — A precipitação que não dá
tempo de examinar os prós e os contras e invocar as luzes do Espírito Santo. —
Enfim, a lentidão. Desde que uma resolução é tomada, segundo as luzes do
Espírito Santo, é preciso dar lhe cumprimento porque as circunstâncias mudam e
as ocasiões perdem-se.
Peçamos
ao Espírito Santo que nos preserve destes três defeitos.
8.
— Fortaleza
A
fortaleza é um dom que dá à vontade uma energia que lhe permite fazer ou sofrer
alegre e intrepidamente grandes coisas. Este dom torna-nos aptos para operar e
sofrer.
1.º
Operar, isto é, empreender sem hesitação as coisas mais árduas: por exemplo,
permanecer humilde nos meio das honras como são Luiz; guardar castidade no meio
dos encontros mais escabrosos, como são Tomás de Aquino; calcar aos pés o
respeito humano como são João Crisóstomo. 2.º Sofrer. Não se requer menos
fortaleza para suportar longos e dolorosas enfermidades ou martírio.
9.
— Ciência
A.
ciência é um dom que, sob a ação iluminadora do Espírito Santo, aperfeiçoa a
virtude da fé, fazendo-nos conhecer as coisas criadas nas suas relações com
Deus.
As
criaturas na sua origem vêm de Deus que as criou e conserva; na sua natureza são
imagens ou reflexos de Deus. A natureza inteira é um espelho onde se refletem as
perfeições divinas, um grande livro onde lemos os prodígios do poder, sabedoria
e bondade de Deus; no seu fim, o dom da ciência diz-nos que as criaturas são
como degraus para subirmos ao Criador.
Há
três graus no dom da ciência. O primeiro é necessário para nos salvarmos e
consiste em reconhecer que não podem ser o nosso último fim; devemos apenas
utilizá-las para nos aproximarmos de Deus. O segundo grau é próprio das almas que
caminham para a perfeição, e consiste em um grande desapego e moderação relativamente
ao uso das criaturas. O terceiro grau é próprio das almas perfeitas e consiste no
espírito de abnegação levado até à prática heróica. Por isso, dizia são Paulo:
«Eu avalio todas as coisas como lixo quando penso em Jesus Cristo que pretendo
ganhar.» (Filip. III, 8).
10.
— Piedade
O
dom da piedade aperfeiçoa a virtude da religião, anexa da justiça, produzindo,
em nossos corações, um afeto filial para com Deus e uma terna devoção para com
as pessoas ou coisas divinas, para nos fazer cumprir com fervor os nossos
deveres religiosos.
1.º
Para com Deus. — Este dom cultiva em nós um tríplice sentimento para com Deus: 1.
° Respeito filial que nos leva a adorá-lo como Pai muito amado; então os
exercícios de piedade são-nos sempre agradáveis; — 2.° Um amor terno e
generoso, que nos leva a sacrificar-nos por Deus e pela sua glória, não é pois uma
piedade sentimental que só procura emoções consoladoras, uma piedade egoísta
que só leva a cuidar de si, quando era necessário trabalhar pela salvação dos
outros; — 3.° Uma obediência afetuosa, porque vemos nos mandamentos e conselhos
a expressão paternal da vontade de Deus sobre nós.
2.º
Para com as pessoas e coisas divinas. Estes
mesmos sentimentos levam-nos a amar as pessoas e coisas divinas que participam
do ser divino e das suas perfeições.
Assim
servimos a Igreja Militante com o nosso zelo e dedicação; aliviamos a Igreja
Purgante com os nossos sufrágios e sacrifícios e honramos a Igreja Triunfante
com os nossos louvores.
11.
— Temor de Deus
O
temor é um dom que, em conexão com a esperança, inclina a vontade ao respeito
filial para com Deus. Afasta-nos do pecado, enquanto lhe desagrada e nos faz
esperar no poder do seu auxílio.
Compreende
três atos: 1.° Um vivo sentimento da grandeza de Deus, e, por conseguinte, um
extremo horror pelos mais leves pecados que ofendem a sua infinita
majestade;—2.° Uma viva contrição das menores faltas cometidas por haverem
ofendido um Deus infinitamente bom; — 3.° Um cuidado vigilante de evitar todas
as ocasiões de pecado.