CONSELHOS SOBRE A VOCAÇÃO
CAPITULO I - ORIGEM DA VOCAÇÃO
Padre J. Guibert
(Superior do Seminário do Instituto Católico de Paris)
edição de 1937
A vocação vem de Deus
3.
— A palavra vocação significa apelo, chamado. Indicar a fonte da vocação é
indicar quem chama. Mas quem poderá chamar um homem a um destino especial, quem
poderá, de modo soberano, decidir das vidas humanas, senão o próprio Deus,
senhor absoluto do universo? Ele só tem o direito de decretar o caminho que devemos
seguir. Devemos
ter uma convicção profunda desta verdade. Porque se ignorarmos até que ponto
Deus gosta de levar os homens como pela mão, teremos menos zelo em procurar e
segurar esta mão paternal que se estende para nós.
Em
consequência de uma fé muito superficial, Deus nos parece ser muitas vezes como
um mestre inacessível, colocado longe de nós, em um trono elevado, donde nos
enxerga apenas e nos abandona no meio das dificuldades da vida, sempre armado
para castigar uma criatura mais frágil do que um vaso de cristal, qual tirano
terrível diante de quem os súbditos devem estar sempre a tremer.
Não,
felizmente, Deus não é tal, para nós. Relações mais filiais nos unem a Ele. Sem
dúvida, é um Rei, mas um Rei que se dá com Seus súbditos e Se interessa pelos
negócios deles: melhor ainda, quer que o chamemos de Pai Nosso. Está tão perto
de nós que se encontra em cada um de nossos pensamentos, em cada um de nossos
desejos, é o autor de todos nossos bons movimentos e concorre para todas nossas
boas ações. Foi até dizer-nos: “Todos os cabelos de vossa cabeça estão contados
e nem um só há de cair sem a licença de vosso Pai celestial”.
Santa
Gertrudes, depois de violenta tentação, se queixava um dia a Deus de que a
abandonara durante o combate: “Ora, Senhor! onde estáveis enquanto Vossa serva
lutava tão penosamente contra a tempestade? — Estava no meio de teu coração,
lhe respondeu Jesus, e sou Eu mesmo que te ajudava a triunfar”.
Unido
a nosso ser de modo tão íntimo, partilhando todos nossos atos, Deus não pode
permanecer indiferente à orientação que tomará nossa vida. Nunca há de
largar-nos no mais importante ato de nossa existência, na escolha de uma
carreira.
Não
somente não nos abandona a nós mesmos, mas traça um caminho para cada um de
nós. Tem um desígnio para cada um de nós; para cada um de nós formou um plano
de vida. Este plano, delineado pelo próprio Deus, é a vocação.
4—Mas
como há de revelar-nos seu plano? No íntimo da nossa alma, muitas vezes
inclina-nos suavemente por meio do atrativo, de certo gosto para a carreira que
fixou par nós; cria em nossas almas as aptidões e as inclinações que hão de
tornar-nos aptos para o cumprimento de nossos futuros deveres. No exterior,
governa os acontecimentos de modo tal que o caminho esteja desimpedido para
nós; arreda os obstáculos, prepara os auxílios; está presente em cada parte da
estrada a fim de assegurar-nos a marcha até o termo fixado.
Para
aquele que toma e conserva a via providencial da vocação, Deus prodigaliza as
graças que asseguram o bom êxito neste mundo e a salvação na eternidade. Para
os que fogem da direção divina da vocação, as graças de estado fazem muita falta;
como os comboios descarrilados, estão expostos às mais perigosas colisões;
mesmo nesta vida, a desgraça os segue por toda a parte.
Portanto,
jovem e bom amigo, Deus pensa em vós, tem vistas sobre vós; com Suas mãos
divinas, traçou-vos um caminho. Qual será este caminho? Descobri-lo para o
seguir com ânimo, é, com evidência, para vós, o grande e único negócio.
Nesta
pesquisa aplicai vossa alma toda, tanto o espírito como o coração. Mas como
Deus não se revela senão aos que invocam, rogai ao divino Espírito Santo para
que vos ilumine a inteligência e incline o coração pelos suaves atrativos de Sua
graça.
Dois
caminhos
5.
— Na vossa idade, dois caminhos estão abertos para vós: o caminho da vida
comum, para o qual se dirige a maior parte dos homens; e o da vida religiosa,
reservado a um pequeno número de almas escolhidas. O primeiro ato de vossa
liberdade há de ser a escolha entre estes dois caminhos. Conforme tomardes um
ou outro, o resto de vossa vida terá uma direção muito diferente.
Estais
portanto numa espécie de bifurcação, de encruzilhada. Tomareis uma carreira no
mundo? Tomareis a carreira da vida religiosa? Sei que estais respondendo:
«Minha carreira há de ser o que Deus quiser para mim.» Mas onde quer Deus que
estejais? No mundo ou na vida religiosa? A pergunta fica portanto a mesma.
Entretanto
precisais de pronta resposta. Os ricos, sem dúvida, podem esperar e refletir por
muito tempo. Enquanto estão estudando, vão-se preparando para entrar tanto no
mundo como na Igreja: aos dezoito anos, podem ainda escolher uma carreira. Mas
para o maior número dos meninos e jovens, a escolha precisa ser feita antes dos
quatorze anos. Com efeito, uma vez que um moço entrou no comércio ou na
indústria, desde que passou pela oficina, não pode mais mudar de caminho. Sem
dúvida, encontram-se negociantes e operários que entram no estado religioso;
mas são exceções. A regra mais segura é tomar o mais cedo possível o caminho
que se deve seguir sempre. A quantos perigos não estaria exposta uma vida
religiosa no meio de sociedades licenciosas e corruptas?
Pois
que é preciso escolher, examinai com atenção os dois caminhos que vos são
oferecidos para toda a vida.
A vida comum
6.
— Falemos primeiro da vida ou via comum e examinai vossas inclinações
interiores e os acontecimentos exteriores para ver si Deus vos quer neste
caminho.
A
vida comum é a vocação dos que Deus destina ao estado do matrimônio. Vivem no
mundo e têm que arranjar uma situação no meio dos negócios do século. Quando
alcançam a primeira maturidade, depois que completam a aprendizagem de um
ofício, fundam uma casa, educam uma família, trabalham para ganhar o pão
quotidiano e preparar-se, para o tempo da velhice, um honesto rendimento.
Na
vida comum, penosos trabalhos, de ordinário, são necessários para assegurar a subsistência;
a alma fica absorta pela preocupação dos negócios e pelo pensamento do
dinheiro, o coração está exposto diariamente a mil perigos quase que
inevitáveis, as práticas religiosas ocupam apenas alguns instantes da vida.
Contudo
é um estado que Deus quer para a maior parte dos homens. Antes da vinda de
Jesus Cristo, todos os homens deviam fundar uma família. Agora que o Salvador
veio ao mundo, agora que Sua palavra e Sua graça fizeram desabrochar sobre a
terra a flor da virgindade outrora desconhecida, o celibato religioso é ainda a
exceção; o estado do matrimônio permanece a condição regular da imensa maioria
dos homens.
Por
isso é que lavraria em grande erro quem visse nesta via comum, uma condição
destituída de nobreza, digna mesmo de algum desprezo. Comentem grave abuso os
que para exaltar o estado religioso, se esforçam por aviltar o casamento e a
família. O trabalho do operário não será sempre muito honroso? A bênção de Deus
não será especialmente para os pais e as mães de famílias numerosas e não
visitará as casas onde se agita um bando de alegres meninos?
7.
— Persuadi-vos bem que a vida da família é um estado santo e que vossos pais
são dignos de todos os elogios. Quem poderá contar os santos que
'"ganharam o céu e mereceram o culto da Igreja por meio desta via? Santa
Felicidade, santa Perpétua, santa Mônica, santa Isabel, são Luiz, santo
Isidoro, são Joaquim e tantos outros, acharam neste estado meios e não
obstáculos para alcançar eminente santidade.
Para
este estado, abençoado por Deus, são chamadas todas as almas que não
experimentam um atrativo particular para a vida religiosa. Para entrar nesta
via, não é preciso ouvir um apelo do céu; pelo contrário, deve-se esperar o
sinal de Deus para se arredar deste caminho.
No
meado do século precedente, vivia em Tours um homem, o Sr. Dupont, a quem todos
tratavam de santo por causa de sua grande virtude. Vários amigos aconselhavam
um dia ao Sr. Dupont para que se fizesse religioso. «Pedirei a Deus, respondeu
ele, para que me dê a conhecer Sua santa vontade.» Rezou, com efeito, mas sem
experimentar nenhum atrativo para a vida religiosa. «Embora eu reze bastante,
respondeu ele, não sinto nenhum atrativo para o sacerdócio: ficarei portanto no
mundo, onde tratarei de servir a Deus e ser útil às almas.» Permaneceu no
mundo, simples leigo: seus exemplos e suas boas obras deixaram na Igreja
vestígios que hão de durar sempre.
Portanto,
persuadi-vos bem, jovem amigo, que a vida comum, embora muito perigosa, não é
um estado de perdição, que as almas piedosas e virtuosas não são todas chamadas
para sair do mundo; que, pelo contrário, a fim de fundar famílias cristãs, são
necessários moços profundamente honestos e religiosos. Por conseguinte, se
levardes uma vida santa e exemplar, não haveis de cair fatalmente na vida
religiosa: preparareis apenas vossa alma para conhecer e seguir perfeitamente a
vontade de Deus.
Segundo
estes princípios fica assente que permanecereis no mundo, se não ouvirdes um
chamado particular de Deus. Mas, por acaso, já não tereis ouvido este chamado
especial de Deus?
O
tal atrativo ou convite do Espírito Santo, é frequentíssimo, na prática, como
sinal de vocação; entretanto não é prova indubitável; há casos de ótimas
vocações sem este atrativo. Mais adiante (números 58 e 59) vão às condições
necessárias e suficientes para se reconhecer se alguém tem ou não tem vocação
para o sacerdócio ou a vida religiosa (Ver página 48).
A
vida religiosa
8.
— Existe, com efeito, outro caminho, estreito, frequentado pelo menor número,
no qual Deus faz entrar os privilegiados de Seu coração.
É
caracterizado pela separação do mundo, pela renúncia às honras e aos bens da
terra e, sobretudo pelo sacrifício do casamento. A castidade perfeita ilumina
esta vereda de um esplendor celestial. Esta vida se reparte entre a oração e as
obras de zelo: as almas se esquecem de si próprias para se dar inteiramente a
Deus pela religião, e aos homens pela dedicação desinteressada.
Se
a oração predomina, como entre os Cartuxos e os Carmelitas, a vida se chama
contemplativa. Pelo contrário, se for o trabalho apostólico que predomina, como
entre os vigários das paróquias, os missionários, os professores religiosos, a
vida se chama ativa. Contudo, em nenhuma parte a contemplação é preguiçosa e estéril;
sempre a ação mais generosa se renova nas fontes sagradas da oração.
Este
estado religioso, com suas formas múltiplas, é um estado que Deus quer. Estas
almas castas e despegadas são o sal da terra: que seria do mundo se este sal
preservador viesse a desaparecer ou perder a força? Que seria da sociedade se o
sacerdote não publicasse mais as leis da verdadeira moral, se os educadores
católicos não formassem mais as jovens gerações para a virtude?
Deus
quer, no seio de Sua Igreja, a perpetuidade da oração e das boas obras. Ora, a
oração e as boas obras são alimentadas e sustentadas pelas almas que a vocação religiosa
desprende de todas as coisas terrenas. Eis a razão porque Deus tem obrigação
perante o mundo, perante a Igreja, perante si mesmo de não estancar a fonte das
vocações religiosas. Por isso é que, até o fim do mundo, haverá almas que a
graça divina há de solicitar para a oração, a penitência, o zelo apostólico.
Felizes
as almas sobre as quais Deus lança olhares de predileção, que Sua mão paterna
arranca da vida comum dos mortais para as transformar em agentes fiéis a Seus desígnios!
Felizes estas almas, não segundo as idéias do mundo, que não lhes entende a
felicidade, mas felizes segundo as verdades da fé, que nos revela as grandezas
da vocação religiosa.