CONSELHOS SOBRE A VOCAÇÃO
CAPITULO I - ORIGEM DA VOCAÇÃO
Padre J. Guibert
(Superior do Seminário do Instituto Católico de Paris)
edição de 1937
Como
Deus semeia as vocações
19.
— Por acaso nunca vistes como procede o lavrador no tempo da sementeira? Depois
de escolher o campo onde quer obter rica messe, vai jogando a semente à mão
cheia pela terra revolvida. Sabe que muitos germens serão estéreis, que vários
outros serão devorados pelas aves do céu ou pelas larvas ocultas debaixo do
chão; sabe que de todas as plantas que hão de brotar da terra, muitas hão de
secar antes do tempo da flor e do fruto. Mas sabe também que, graças a uma
cultura atenta, bastantes sementes hão de germinar para assegurar uma boa
colheita no tempo da messe.
Deus
procede da mesma maneira. Para falar de modo humano, pode-se dizer que
prodigaliza sem medida a graça das vocações; em grande número de almas, depõe,
no momento da criação, o gérmen benéfico da vocação religiosa. Aqui a semente
não poderá germinar, mais adiante há de ser devorada, em outro lugar há de
secar ainda verde antes do tempo da seara apostólica. Deus conhece tudo isto, e
precisamente porque conhece tudo isto, arroja as vocações às mãos cheias, de
sorte que muitos gérmens caem em todas as escolas, em todos os colégios,
pode-se dizer até em todas as famílias.
20.
— É um ponto de honra para Deus velar pelo recrutamento de Seu exército.
Ninguém pode alistar-se a não ser que Deus o chame; e Deus chama bastantes
soldados para que as fileiras nunca tenham vagas. Por isso considerai o que
está se passando: é debalde que os inimigos da Igreja acumulam obstáculos sobre
obstáculos contra as vocações religiosas: as fileiras de nossas falanges
católicas não rareiam. Imaginais que os formidáveis exércitos europeus teriam
um recrutamento suficiente se recebessem apenas voluntários? Se não houvesse a
polícia, quantos não corresponderiam ao chamado do Estado? Entretanto, o
exército de Deus recruta, cada ano, milhares de jovens voluntários, sem que
haja nenhum constrangimento, muito melhor ainda, apesar de todas as barreiras
que se elevam para lhes estorvar o caminho.
É
que Deus exerce uma espécie de fascinação sobre as almas que escolhe, a
fascinação do devotamente. Não as constrange exteriormente: inclina-as suave e
fortemente pelo interior. Tal inclinação, porém, não é irresistível a ponto de
aniquilar a liberdade do homem: Deus atrai sem violentar. Por isso é que na
prática muitos resistem aos atrativos da Sua misericórdia. Daí a profusão com a
qual espalha as vocações.
Razões
das vocações
21.
— Por mais numerosas que sejam, as vocações não caem ao acaso. Nenhum ato
divino é desprovido de sabedoria; toda a vocação, portanto, tem sua razão de
ser. Embora seja difícil, para cada vocação em particular, discernir o motivo
do apelo divino, pode-se afirmar entretanto que a escolha de Deus não se faz
sem motivo.
Muitas
vezes Deus tem por fim recompensar a fé e a dedicação de uma família cristã.
Debaixo das vistas atentas de pais zelosos, quando os filhos crescem, quais
flores mimosas num jardim cultivado com esmero, Deus gosta de colher, para
ornamento do santuário, a flor mais delicada e mais perfumada.
Quando
se estuda a história de uma vocação, encontra-se quase sempre uma alma de
oração e de sacrifício para a qual esta vocação é uma digna recompensa. Ao lado
do menino que vai chamar, Deus coloca, de ordinário, uma alma santa que reza,
trabalha, faz penitência; tais atos de santidade são como que o alimento que
sustenta o gérmen da vocação.
Na
vida de S. Francisco de Sales, vê-se que a vocação dele foi o prêmio merecido
desde muito pela eminente piedade da família. S. Agostinho foi concedido às
orações prolongadas de S. Mônica, sua mãe. Quantas vezes depois da revolução
francesa, não se reparou que as vocações eram numerosíssimas nas famílias que
tiveram a coragem, durante os dias de perseguição, de dar asilo aos padres fiéis!
Não se disse que São João Vianney, o santo vigário de Ars, foi dado à Igreja da
França depois das orações e das bênçãos de S. Bento Labre, o peregrino mendigo,
quando achou, na casa da família Vianney, tão suave e tão amável hospitalidade?
22.
— Outras vezes, a escolha de Deus é motivada pelas necessidades da Igreja. A
Igreja é a obra prima de Deus, mas está nas mãos dos homens; o valor humano dos
que a povoam e a dirigem lhe dá brilho e aumenta o prestígio. Sem dúvida,
muitas vezes Deus gosta de operar grandes prodígios, por meio de instrumentos
ínfimos; muitas vezes também tem prazer em chamar as almas mais distintas, mais
ilustradas, a fim de patentear a todo o mundo que a religião é tão sublime que
seduz os espíritos mais poderosos e os corações mais generosos. Os espíritos
poderosos vêm a ser os apologistas da Igreja; os corações generosos se tornam
os denodados criadores de obras de caridade.
Foi
esta razão que motivou a escolha de S. Paulo, espírito tão culto, coração tão
ardente, que veio trazer o concurso de suas belas qualidades aos apóstolos de
Jesus Cristo. Pela mesma razão, no quinto século, Deus suscitou aqueles homens
especiais, tão instruídos nas ciências humanas, que a Igreja honra debaixo do
glorioso nome de Padres: S. Basílio, S. Gregório Nazianzeno, S. João
Crisóstomo, S. Jerônimo, S. Ambrósio, S. Agostinho, depois S. Leão Magno, S.
Gregório Magno, etc... Ainda hoje a milícia sagrada recruta intrépidos soldados
na mocidade mais culta; moços generosos, para os quais estavam abertas as
carreiras mais brilhantes segundo o mundo, vêm trazer aos pés do Cristo Jesus
os tesouros intelectuais e morais que os exornam.
Contudo,
como a vocação não é devida a ninguém, ela permanece, da parte de Deus, um ato
de pura benevolência. Deus vos chama porque vos ama. E tal amor não é o
pagamento de uma dívida; é inteiramente gratuito. «Amo-vos, diz Ele na Santa
Escritura, de um amor que começou na eternidade; é por misericórdia e bondade
que vos chamei e atraí.»
Como
se revela o apelo de Deus
23.
— No momento em que Deus forma as almas, depõe nelas o gérmen de seu destino.
Para cada berço, Deus exprime um apelo. Mas este gérmen, quando e como há de
desenvolver-se de modo que a criança tenha consciência dele? Mas este apelo
quando e como há de ser percebido, de modo que o menino saiba qual caminho deve
seguir?
Toda
a vocação tem sua história. As manifestações divinas são variadíssimas; assim
como não há duas vidas que sejam semelhantes, do mesmo modo não há duas
vocações que se repitam. Mas a história de uma alma, seja qual for, é sempre
interessante.
Certos
meninos experimentam aspirações religiosas desde a mais tenra idade; outros
notam só muito tarde o atrativo da vocação. Alguns mesmo entram no sacerdócio
ou na vida religiosa sem atrativo, embora com retas intenções, e vem a ser
muito virtuosos, apesar da ausência de atrativo.
Os
primeiros, educados nos joelhos de uma mãe cristã, aprenderam, desde
criancinhas, a colocar a religião acima de tudo, a considerar a vida sacerdotal
e religiosa como a mais nobre, a mais invejável das existências: não são
capazes de precisar a época em que lhes apareceu sua inclinação; antes mesmo do
uso da razão, já começavam a declarar que sua vida havia de ser consagrada a
Deus. Na história da Igreja, deparamos grande número de almas santas que
pronunciaram, desde a idade de sete anos, o voto de virgindade perpétua.
Com
os segundos, em que a vocação é mais ou menos tardia, a educação, em geral, foi
menos cristã; Deus não lhes apareceu tão cedo no caminho da vida. Quer por
leviandade de espírito, quer por vivacidade de gênio, quer por ambição mundana,
tinham em mira uma carreira brilhante, que lisonjeira a vaidade. Recolhiam-se
muito pouco no interior de sua alma para ali ouvir a voz de Deus, levaram uma
vida por demais mundana e pouco cristã para que o gérmen da vocação pudesse
desenvolver-se logo. Mas um dia, numa hora de profundo recolhimento, debaixo da
impressão de tédio e de vácuo que o mundo produz muitas vezes, em seguida a
alguma forte prova talvez, escutaram enfim a Deus e ouviram a mesma palavra que
determinou a vocação de Abraão: «Sai de tua terra e de tua família e vai para o
país que eu te indicar.» Este país novo, Deus o dá a conhecer pelos meios mais
variados.
24.
— Eis, por exemplo, como nasce uma vocação sacerdotal. No menino, a primeira
impressão é causada pelas belas cerimônias do culto sagrado. O altar, cercado
de mil luzes brilhantes, onde o sacerdote, vestido com paramentos de ouro e de
prata, desempenha os augustos mistérios, tem o poder de fascinar uma alma
juvenil. Esta visão celeste continua a brilhar na sua imaginação; os cânticos
litúrgicos permanecem gravados na sua memória e lhe voltam espontaneamente aos
lábios. Na casa paterna, o menino arranja um santuariozinho, ergue um
altarzinho e repete as cerimônias sagradas. Não considera isto como simples divertimento:
tem um vago pressentimento que está se exercitando para o futuro. — À medida
que vai crescendo, suas idéias se tornam mais precisas; debaixo do quadro
encantador que lhe atraiu a atenção, o jovem distingue a Deus que o sacrifício
do altar honra, o jovem distingue as almas a cujo serviço a vida sacerdotal é
consagrada. Não é somente para gozar do culto que este menino deseja ser sacerdote;
é para imolar a vida a Deus e aos homens que há de encetar resoluto o longo e
austero preparo que leva ao sacerdócio.
25.
— Quando a vocação vem depois dos doze ou quatorze anos, não é o atrativo das
belas cerimônias que a faz desabrochar. Aos doze anos, um menino já sabe refletir;
começa a entender a rara beleza moral dos que gastam a vida em favor dos outros;
sente elevadas aspirações de virtude e de dedicação que nenhuma carreira do
mundo pode satisfazer. Raciocina do modo seguinte: «Não me importo com a
riqueza e as honras; os prazeres do mundo me dão asco; quero que minha vida
sirva para alguma coisa e não se perca no vil egoísmo; portanto entregar-me-ei
inteiro a Deus e ao serviço de Sua santa causa.» Estas reflexões sérias são
muitas vezes provocadas por algum acontecimento grave: às vezes por uma leitura
que deixou profunda impressão no espírito; outras vezes por alguma desgraça que
abalou vivamente o coração; ou ainda por uma circunstância providencial que de
repente abriu as vistas.
Francisco
de Borja, duque de Gândia, era um dos primeiros gentis homens da corte de
Espanha. Como a rainha, cujos encantos humanos fizeram as delícias da corte,
viesse a falecer, Francisco foi encarregado de transportar ao longe seus restos
mortais. No momento da sepultura abriu-se o féretro para que Borja contemplasse
uma última vez aquele rosto augusto que arrebatara tantos olhares. Oh! espetáculo
de horror! ficava apenas um montão abjeto de podridão. «Será para chegar a
isto, disse Francisco, que somos escravos do mundo e dos bajuladores?» Debaixo
do toque da graça que atuava nele, Francisco de Borja disse adeus ao mundo,
renunciou à fortuna e às honras e foi consagrar sua grande alma ao serviço de
Deus na companhia de Jesus.
Os
grandes golpes da graça não determinam senão raras vocações. Sobretudo quando
se trata da vocação de educador, de professor ou de professora, é por meio de
suaves influências e progressos insensíveis que a graça leva pouco a pouco as
almas para o lado da montanha santa.
26.
— Tomemos um menino que frequenta, desde os seis anos, a escola dos Irmãos.
Logo nos primeiros dias, o Irmão lhe aparece como um ser misterioso, superior
aos outros homens, de certa maneira separado do resto da humanidade. Tudo se
destaca, com efeito, neste religioso: o hábito, as funções, a vida retirada. A
primeira impressão que a criança nota, é a da felicidade: o Irmão lhe parece
feliz, honrado, digno de ser imitado. Porque, ele também, não poderia viver do
mesmo modo?
Tal
vista é inteiramente humana, sem dúvida; mas dura pouco, purifica-se e cede
lugar a sentimentos mais nobres. Este Irmão, cuja sorte é tão suave, está com a
fronte nimbada pela auréola da virtude; sobre as almas singelas, que o vício
ainda não contaminou, esta irradiação da santidade exerce grande império. O
menino pensa em si mesmo: «Esta vida santa, feita de piedade, de religião, de
renúncia aos falsos prazeres do mundo, por que razão não seria também a minha vida?»
Com
o tempo, os pensamentos tornam-se mais sérios ainda. O papel social do
professor religioso se revela aos poucos. Há tanta glória para um homem de
coração em dedicar a vida ao serviço dos outros! A sociedade sofre tão grande
penúria de bons mestres que saibam ensinar a religião católica aos meninos! Tão
bela vocação atrai, fascina, seduz: «Porque, diz o generoso moço, não daria eu
também minha vida para tão grande causa? Durante os poucos anos que dura a
existência humana, será possível que eu tenha alguma hesitação em sacrificar os
gozos grosseiros que o mundo apresenta e preferir-lhes as puras alegrias que se
originam na imolação e na dedicação?»
Tal
trabalho interior não se faz, de ordinário, senão em pequeno número de almas
privilegiadas, nas almas que Deus marcou do caráter da vocação, nas almas em
que o gérmen divino brota debaixo do ardente sopro da graça. Numa escola ou um
colégio, enquanto a maior parte das almas estão entregues a pensamentos
vulgares ou a loucos desejos de ambição, encontram-se algumas almas tímidas,
discretas, muitas vezes ignoradas de todos e ocultas debaixo de aparências
insignificativas, em que a graça opera esta ação misteriosa e profunda que foi
descrita nas linhas precedentes.
Além
disto, este trabalho se faz aos poucos. No começo, os sentimentos estão
confusos, as idéias estão envolvidas em nuvens quase que impenetráveis; é um
pressentimento que Deus vai pedir alguma coisa; nada mais. Pouco tempo depois,
o divino chamamento se torna mais preciso, a visão se esclarece. Uma palavra,
uma boa leitura, uma comunhão bem feita, uma fervorosa oração, uma coisa
insignificante chega muitas vezes para que a alma do menino venha a conhecer às
claras o que Deus deseja.
27.
— Em numerosos casos, não há nenhum atrativo sensível ou ele é tão fraco que
merece pouca consideração e tem mínimo efeito; a determinação para a vocação é
provocada por raciocínios, pensamentos mais ou menos como o seguinte: «Na vida
religiosa, no sacerdócio, hei de salvar mais facilmente minha alma; amarei
melhor a Deus; serei mais dedicado a Nossa Senhora; poderei obter a salvação de
bastantes almas, que sem mim iriam dificilmente para o céu. Logo, quero ser
sacerdote, quero abraçar a vida religiosa.»
Tal
raciocínio é um caso do que se chama hoje reta intenção; antigamente era
designado pela expressão de atrativo de razão, a fim de o distinguir do atrativo
de sentimento ou atrativo sensível.
A
este menino que a graça solicita, que se sente o coração norteado para a vida
religiosa, de qualquer natureza que ela seja, quero dizer agora o que ele tem
de fazer para conhecer e sustentar sua vocação.
Continuará com a II. Parte: Estudo da Vocação...