TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
NÃO SE PODE VENCER SEM COMBATE;
E NÃO HÁ COMBATE SEM ESFORÇO.
Facilmente convimos sobre a força dos motivos da
Esperança cristã; mas por quantos pretextos não procura o demônio
enfraquecê-los na aplicação que a alma desanimada faz deles a si mesma! Naturalmente
preguiçoso, o homem teme o esforço. Desde que ele se dá a Deus, quereria fruir
dá felicidade do seu estado sem que isso lhe custasse muito. Esquece-se de tudo
o que Jesus Cristo disse: Só os que se fazem violência é que arrebatam o céu[1].
Não presta atenção a que Jesus Cristo não quis entrar na Sua glória senão pelos
Seus sofrimentos (Lc 24, 26); que só conduziu ao céu os Santos pelas cruzes,
pelos combates, pelos sacrificios, pela renúncia às suas paixões, à sua
vontade.
O Céu é uma recompensa: cumpre merecê-la pela
preferência que damos a Deus, à sua vontade santa, sobre aquilo que temos de
mais caro, desde que exige o sacrifício disso. É, pois, um princípio certo: e
S. Paulo no-lo declara alto e bom som da parte do Senhor: Ninguém será coroado
se não houver legitimamente combatido até o fim! Pretender a coroa da Justiça
sem combate é raciocinar contra os princípios da Fé; esperar por combates sem
penas é ir contra as luzes da razão.
Não ignoramos o que Deus exige; e é disto que o
demônio tira pretexto para desanimar uma alma cristã, servindo-se da preguiça,
tão natural ao homem, para desviá-lo do trabalho necessário à salvação. Não
custa nada seguir os próprios pendores naturais: o que custa é reprimi- los. O
inimigo do homem não tem dificuldade em fazer degustar e seguir o primeiro
partido.
Para isso, faz-lhe um quadro impressionante das
dificuldades que ele achará no serviço de Deus, desse constrangimento contínuo
em que será obrigado a viver, e sobretudo desses combates que incessantemente
terá de sustentar contra si mesmo. Ocultar-lhe-á com cuidado a paz do coração
de que se goza quando se obedece a Deus, as sólidas consolações que ele achará
nas suas penas pela esperança das recompensas: mostrar-lhe-á em toda a sua
extensão a sua fraqueza, lembrar-lhe-á as suas quedas a despeito das suas resoluções,
e não lhe deixará perceber a misericórdia de Deus e o braço todo-poderoso por
cujo socorro ela sempre triunfou.
Eis aqui os progressos dessa disposição da alma.
Compenetrada da sua fraqueza e das dificuldades da empresa, em vez de dizer com
o santo rei David: Quando mesmo acampamentos inimigos se elevassem contra mim,
eu não temeria, ó meu Deus, porque estais comigo, ela cai no abatimento. Este
sentimento não lhe deixa ver senão fracamente o socorro do Céu; ela conta
pouco com ele; quase não ousa pedi-lo; talvez mesmo receie obtê-lo, para não
renunciar às suas inclinações, que ama. Nesse estado, não acreditando poder
constranger-se constantemente pela oposição que encontra, ela nada ou quase
nada ousa empreender para se vencer. A primeira queda confirma-a no seu modo
de pensar, de que não poderá conseguir constranger-se, e de que é preciso
aguardar um tempo em que as suas paixões já não sejam tão vivas.
Dessarte, tudo se lhe torna difícil: o aborrecimento,
e o espírito de independência com relação aos seus deveres, apoderam-se-lhe da
mente e do coração, e lhe tornam esses deveres extremamente penosos. Os
exercícios de piedade, ela os omite, ou se desobriga deles com tanta
negligência, que eles não podem tornar-lhe favorável o seu Deus, a quem ela esquece.
A dissipação de espírito e de coração sucede ao espírito interior que a fazia
agir; ela abandona o bem que praticava; resiste às graças, aos remorsos:
desvia-se dos bons pensamentos; já não segue senão as suas inclinações, os seus
caprichos, o seu temperamento, nos quais não acha obstáculo. Apesar das
inquietações que, por misericórdia, Deus lhe proporciona nesse estado de
preguiça e de tibieza produzido pelo desânimo, ela ainda gosta mais dele do
que de se constranger por amor de Deus. É o ponto a que o inimigo da salvação
queria conduziria: queria impedi-la de pensar, de trabalhar na sua salvação:
consegue-o por essa via.
Estes detalhes, quiçá um pouco longos, far-vos-ão
conhecer melhor o plano de ataque do inimigo, e colocar-vos-ão melhor em
estado de lhe opor um plano de defesa que lhe inutilize os esforços.
Compreendo que uma alma que encara todas as penas
que podem encontrar-se no serviço de Deus, e que as encara todas ao mesmo
tempo, e por uma longa vida, possa ficar assustada com elas. Mas é assim que se
tem de suportar as penas da vida cristã? Não; suportamo-las, combatemo-las a
retalho; ora uma, ora outra, conforme as ocasiões. Se há umas que voltam com
frequência à carga, outras há que só raramente se apresentam. Devemo-nos firmar
contra as primeiras em particular, e premunir-nos contra as outras pelo
exercício frequente do amor de Deus. Seria mister incidir na pusilanimidade
mais estranha, para não ousar resistir a um inimigo que ataca sozinho, e que
muitas vezes só tem de força aquela que ele tira da nossa fraqueza. Acaso o
temeis? então ele vos esmaga. Sob a proteção de Deus, a quem invocais, lhe
resistis? então ele não se aguenta muito tempo, foge, desaparece por longo
tempo.
Nunca encareis como reunidos objetas que só
separadamente se apresentam. Uma alma, em cada momento, só tem que responder
pela ação que então pratica. Ocupar-se, nesse instante, com as penas que ela pode
ter pelo tempo adiante, é atormentar-se com um futuro muito incerto; é ir ao
encontro da tentação, e da tentação mais desarrazoada; é armar ciladas a si
mesma; não é ser tentada, é tentar-se a si mesma. É sempre contra a razão
proporcionar-se antecipadamente, na sua imaginação, males que talvez nunca se
tenha ocasião de experimentar. A cada dia basta a sua pena; é contra a Religião
e contra a Prudência cristã expor-se a si mesmo à tentação.
Portanto, se uma alma se faz violência para agradar
a Deus, na esperança da recompensa; se, a cada pena que experimenta, só presta
atenção a essa, para fazer dela um santo uso, suportá-las-á todas
sucessivamente, e mais facilmente, e com maior mérito, pelo socorro do Senhor.
Uma alma religiosa acha repugnância no incômodo, no
constrangimento que a obediência e a regularidade pedem. Se, neste sentimento,
cuja força experimenta, ela encara esse constrangimento por toda a sua vida,
ficará perturbada, desconcertada, desanimada. Se o encarar só por um dia, por
um meio dia, ou mesmo para cada ação, à medida que esta se apresentar, já não
o achará tão difícil de praticar. Muitas vezes, é questão apenas de um
momento, e toda a pena passa desde que a determinação é tomada.
Outra reflexão que deveis fazer é a de que muito nos
enganamos se pensamos que a pena que achamos em nos constrangermos, para
cumprirmos os nossos deveres e agradarmos a Deus, durará sempre com a mesma
vivacidade e com a mesma impressão que sentimos no começo. A experiência,
fundada mesmo em razões físicas, ensina-nos que, à medida que praticamos
amiúde uma ação, ou que pelo socorro da graça nos acostumamos a agir por bons
motivos, contraímos o hábito de assim fazer, e achamos nisso sempre mais
facilidade. A pena diminui sempre mais, e afinal cessa quase inteiramente.
Constranjamo-nos durante algum tempo a fazer uma ação com fidelidade e com
exatidão quanto ao tempo e ao lugar, e em breve fá-la-emos quase sem o
percebermos, e o motivo de religião apresentar-se-á por si mesmo; de modo que
essa facilidade se torna às vezes um motivo de aflição para certas almas que,
sem propósito, imaginam não ter merecimento onde não têm dificuldade e onde já
não acham motivo algum de sacrifício. Elas não prestam atenção a que ê o
motivo sobrenatural, sob a influência da graça, que dá o mérito às nassas
ações, e não simplesmente a pena que nelas achamos.
Aliás, a Religião nos ensina que o Senhor
recompensa a fidelidade que pomos em nos constrangermos por Ele, e recompensa-a
por graças que nos tornam não somente fáceis, porém doces, as penas que
suportamos; ensina-nos que, ainda quando essas penas se fizessem sentir por
mais tempo, Ele jamais permitirá que a provação seja acima das nossas forças,
auxiliadas pela Sua graça, que Ele nos prometeu, e que sempre podemos obter
pela oração. Contai com essa promessa, visto que não pode ela ser falsa.
Nunca encareis a incerteza da perseverança sem
pensardes nas promessas que Deus nos fez, quer quanto aos socorros, quer quanto
às recompensas, e esta reflexão bastará para vos tranquilizar e vos reanimar.