TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
MOTIVO DE CONFIANÇA, BEM PODEROSO, NO VALOR
INFINITO
DOS SOFRIMENTOS E DOS MERECIMENTOS DE JESUS CRISTO.
Uma alma atacada pelo desânimo acha-se dominada por
um temor excessivo, que a impede de refletir sobre os fundamentos inabaláveis
da confiança em Deus. Não se lhe poderiam, pois, dar motivos demasiados para
dissipar esse temor que a perturba incessantemente. Esses motivos, ela os
achará, poderosos, nos sofrimentos de Jesus Cristo, que são de um valor
infinito pela dignidade da Pessoa divina.
Morrendo por todos os homens, rogando por todos,
oferecendo Seus sofrimentos e Sua morte, Jesus Cristo mereceu-lhes a todos as
graças que devem sustentá-los nos combates da salvação e conduzi-los à felicidade
da eternidade. Esses merecimentos, de que não tinha necessidade para Si mesmo,
Jesus Cristo cedeu-os aos homens; de sorte, diz S. Bernardo, que eles se tornam
os próprios merecimentos dos homens. É apresentando-os a Seu Pai que nós
obtemos esses socorros que nos tornam tão fortes contra os inimigos da
salvação. É baseada neste princípio que a Igreja, em todas as orações que faz
a Deus, roga pelos merecimentos de Jesus Cristo Nosso Senhor.
Mas, dirá uma alma assustada com a vida que tem
levado, com que olhos pode Jesus Cristo olhar-me, depois de tantos ultrajes que
Lhe tenho feito? Quererá Ele ainda interessar-se por um inimigo que por tanto
tempo e tão indignamente O desprezou? E uma alma cristã e instruída pode
duvidar disto? Jesus Cristo não nos assegura que foi especialmente pelos pecadores
que Ele veio sofrer e morrer? que especialmente os pecadores é que Ele veio
procurar? Apesar desta segurança, julgar-se-á ainda que a qualidade de pecador
é um título para ser recusado, quando se pedem socorros para voltar a Deus?
Não, o céu e a terra passarão, mas a palavra de Jesus Cristo não passará sem
se cumprir. As Suas promessas dizem respeito aos pecadores; e, se não houvesse
pecadores, Jesus Cristo teria sofrido? teria suportado uma morte tão cruel?
Quanto mais pecadores são os homens, tanto mais a misericórdia de Deus e o
poder dos merecimentos do Salvador se exercem com brilho. Haverá crime mais
negro do que a perfídia de Judas? Sim, responde S. Jerônimo, há um ainda mais
enorme, e é o desespero: Judas tornou-se mais culpado dando-se a morte do que
traindo o seu bom, o seu divino Mestre.
Não receemos, pois, recorrer aos merecimentos de
Jesus Cristo. É honrar esses merecimentos e pô-los em obra para obtermos os
socorros de que havemos mister, visto ter sido por isso que Jesus Cristo Se
dignou de adquiri-los e de no-los ceder. É aplicando-no-los pela oração e pelas
boas obras que nós operamos o bem para o qual eles foram adquiridos.
Estranha maneira de honrá-los seria não ousarmos
fazer uso deles: isto seria ir diretamente contra o fim que esse divino
Salvador se propôs. Deixar inúteis os Seus dons, não é testemunhar que os
estimamos, é considerá-los como indiferentes. Já que nos reconhecemos pobres,
cheios de misérias e de fraquezas, devemos procurar enriquecer-nos, curar-nos
dos nossos males, fortalecer-nos. Jesus Cristo oferece-se a nós para operar
este prodígio, oferecendo-nos os Seus méritos infinitos: Vinde a mim, diz-nos
Ele com bondade, e Eu vos aliviarei[1]. Não é contra todos os princípios,
contra todos os sentimentos, e igualmente contra a intenção do Salvador,
recearmos recorrer a eles?
A tentação serve-se de tudo para desanimar as almas:
faz-lhes achar nos sentimentos de uma humildade mal entendida razões de temor
que as lançam no abatimento. A humildade cristã, de acordo com a razão, pede
que nos reconheçamos indignos dos benefícios do Céu, mas não exige que
recusemos os que nos são oferecidos, não exige que não peçamos aqueles que
nos foi prometido seriam concedidos às nossas preces. Bem mais: a gratidão
que devemos a Jesus Cristo exige que nos conformemos com a Sua vontade,
aproveitando-nos daquilo que Ele sofreu para nos proporcionarmos os socorros
que Ele nos mereceu. Nunca O honraremos melhor do que nos conformando com os
objetivos de misericórdia que Ele teve em Se imolando por nós.
Com que poderíamos contar para aplacar a Justiça de
Deus, ultrajado pelo pecado, e para atrair sobre nós a Sua Misericórdia, se
não contássemos com os méritos do nosso Salvador? É apresentando-os a Deus que
conseguiremos dobrar essa misericórdia. Se em nós Ele só vê objetos que
provocam a Sua justiça, em Seu Filho só vê objetos que solicitam a Sua
misericórdia. Essa divina misericórdia exerce-se para conosco, desde que, com
sentimentos de pesar, nos apresentamos a Ele, à sombra da cruz do Deus Salvador,
e cobertos do Seu sangue adorável derramado por nós. E assim os direitos da Sua
Justiça são salvos. A misericórdia e a verdade, a justiça e a paz fazem entre
si uma aliança a mais humilde em nosso favor (Sl 84, 11).
[1] Venite ad me, ego reficiam vos (Mt 2, 28).