TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
É TENTAR A DEUS, E TENTAR-NOS A NÓS MESMOS CONTRA A
ORDEM DE DEUS,
O PREVERMOS OS COMBATES A QUE PODEREMOS ESTAR EXPOSTOS
COM O
CORRER DO TEMPO.
Mas afinal, dizem certas pessoas, é mesmo preciso
que eu esteja na disposição de cumprir as minhas obrigações? Ora, quando eu
mas represento, não sinto na minha vontade força para sustentar esse combate,
tão penoso, durante a minha vida toda. Como então não tremer, não cair no
desânimo?
Primeiramente, já fizemos notar que essa pena não
dura sempre com a mesma força, e nem causa sempre impressões tão sensíveis. Não
deveis, pois, julgar da dificuldade que tereis em perseverar pela pena que
experimentais neste momento. Começai com os socorros presentes, e esperai os
mesmos socorros para o futuro.
Mas, em segundo lugar, Deus proíbe nos pormos temerariamente
na ocasião da tentação. Ele não prometeu o Seu concurso àquele que, prevenindo
por uma previdência insensata as provações a que pode ser submetido, reúne na sua
imaginação tentações que talvez nunca experimente, e que certamente não
experimentará assim reunidas num só momento. Hoje não tendes a força de
encará-las porque, ainda não havendo chegado o tempo de sustentar o combate,
não tendes a graça que só vos é preparada para esse tempo de prova: de admirar
não é, pois, que essas tentações vos assustem de antemão. Mas então por que
vos tentardes assim a vós mesmo contra a vontade de Deus?
Por que procurardes sondar o vosso coração sobre as
cruzes pesadas, sobre as tentações violentas, sobre os combates obstinados que
outros tiveram de sustentar, e que, absolutamente falando, podem vos sobrevir,
para saberdes qual é a vossa disposição a esse respeito? Porquanto Deus, que
vos prometeu robustecer a vossa vontade quando Ele exigir esses sacrifícios,
não vos prometeu as mesmas graças quando, por vossa vontade própria, sem a isso
serdes por Ele chamada, vos colocais pela imaginação nessas circunstâncias que
não existem, e que talvez nunca venham a existir para vós.
Uma alma sólidamente cristã é humilde; teme e evita
o perigo, bem longe de procurá-lo; é temerariamente, é por uma presunção
secreta, é por um amor-próprio oculto, que vos colocais nesse estado de
tentação: será então surpreendente que só sintais fraqueza, incerteza na vossa
vontade? Deus não nos dá Sua graça segundo os nossos caprichos, mas segundo a
necessidade que temos dela, submetendo-nos às ordens da Sua Providência. É por
aí que a tentação ilude e seduz almas ou imprudentes ou mal instruídas.
Entretém-nas com sacrifícios ou quiméricos ou remotos, sobre os quais o Senhor
não lhes inspira nada; e desvia-as da atenção que elas devem dar aos
sacrifícios presentes que Deus pede delas. Assim, elas correm atrás de sombras,
e perdem a realidade.
A disposição da alma fiel, para agradar a Deus, não
deve, pois, ser a de procurar na sua imaginação tudo o que lhe pode suceder de
rigoroso, a pretexto de o aceitar com generosidade. Essa investigação Deus não
a aprovou, proíbe-a mesmo. De algum modo, isso é tentar a Deus. Por melhor que
vos pareça a intenção que a isso vos leva, deveis desconfiar dela, e dela
desviar-vos. O que Deus exige é que o homem esteja na disposição geral de
evitar todo pecado mortal e tudo o que a este pode conduzir; de suportar com
submissão as cruzes que a Sua Providência lhe apresenta cada dia; e de não
fazer para si cruzes na sua imaginação, para carregá-las antes de elas
chegarem.
Sempre será tempo de sofrer, quando o Senhor o
permitir, sem querermos sofrer por antecipação penas que Deus ainda não nos dá
para suportarmos, e que talvez nunca nos imponha. Essas penas imaginárias, ou
imprudentemente previstas de antemão, tornar-se-nos-ão tanto mais pesadas
quanto as carregaremos sós, sem o socorro de Deus.
E, se essas cruzes se apresentarem por si mesmas, e
sem que as procuremos, o sentimento que então deve elevar a alma a Deus deve
ser o de lhe dizer com confiança e com amor: “Ó meu Deus, se permitirdes que
essas cruzes me sobrevenham, espero que, segundo as Vossas promessas e pelos
merecimentos de Jesus Cristo, me ajudareis a carregá-las”. Após esta curta
oração, deve ela deixar cair essas imaginações perigosas, e aplicar-se aos
deveres presentes que tem a cumprir; a se mortificar nas ocasiões que se
apresentarem, e a dar, por essa fidelidade, provas do seu amor bem mais seguras
e mais úteis.