TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
MOTIVO DE CONFIANÇA, PARA UMA ALMA RELIGIOSA, NA
MISERICÓRDIA DE DEUS SOBRE ELA, E NA ESCOLHA QUE ELE FEZ DELA PELA GRAÇA DA SUA
VOCAÇÃO. FALSAS IDÉIAS E FALSOS SENTIMENTOS QUE EMPRESTAMOS A DEUS.
Uma alma religiosa acha na sua vocação um traço bem
assinalado da misericórdia de Deus sobre ela. Em qualquer estado que esteja,
toda alma que, depois de haver servido a Deus, se transviou nas vias do pecado
ou do relaxamento, e que, em certos tempos, voltou a Deus, não pode duvidar
das atenções misericordiosas do Senhor, que os méritos de Jesus Cristo lhe
proporcionaram. O bom pensamento, o santo desejo de se consagrar a Deus, ou de
tornar a entrar na prática exata dos seus deveres, não foi Jesus Cristo quem
lhos deu? A força, a coragem de fazer a Deus o sacrifício dos bens, dos
prazeres do mundo, da sua própria vontade, das suas paixões, não foi de Jesus
Cristo que ela as recebeu? Os sentimentos experimentados por Deus e que a sustentaram
na sua consagração e nos combates dados à natureza, não foi Jesus Cristo quem
lhos inspirou?
Se uma alma tivesse a presunção de se atribuir tudo
isso, seria desmentida quer pela experiência reiterada da sua fraqueza, quer
pelo oráculo de Jesus Cristo. Dizia Ele aos Seus apóstolos, e ainda diz a toda
alma que se consagrou ao Seu serviço: Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu
que fiz escolha de vós, e isso quando nem pensáveis nisso, quando vivíeis na
dissipação, quando fugíeis de mim, quando me resistíeis com tanta obstinação.
Ora, teria Jesus Cristo escolhido essa alma tão especialmente, se não quisesse
sinceramente ajudá-la, quando ela reclamar o Seu socorro? Pode-se pensar isto,
e atribuir a Deus semelhante contradição? Não; se essa alma recorrer a Ele na
necessidade, Jesus Cristo rematará a obra que começou nela, e conduzi-la-á à
perfeição do seu estado. A Sua palavra está empenhada nisso, e Ele convida incessantemente
essa alma desanimada a lançar-se amorosamente nos braços da Sua misericórdia,
para aí procurar e achar a sua salvação.
Não emprestemos a Deus as nossas paixões e os nossos
erros, e tudo isso será para nós sem dificuldade. Se alguém a quem prestamos os
serviços mais importantes só nos testemunha indiferença e ingratidão; se só
por ultrajes corresponde aos beneficios de que o cumulamos, nós nos cansamos
finalmente; consideramo-lo como um indigno dos nossos desvelos, mormente se ele
sempre se serviu dos nossos benefícios para nos ultrajar; e abandonamo-lo
absolutamente. Acreditaríamos agir contra as regras da prudência se
continuássemos a fornecer-lhe armas contra nós.
Eis aí o sentimento que emprestamos a Deus, cujos
juízos e caminhos estão tão distantes dos nossos como o céu está distante da
terra. Deus suporta os nossos desvarios porque é eterno e onipotente, e porque
a Ele não pode faltar o tempo em que a Sua justiça porá tudo na ordem, e para
sempre. Suporta-os porque é infinitamente bom, e porque quer dar-nos os meios
de voltar a Ele. Deus, a quem nada pode ser oculto, desde toda eternidade viu
as nossas fraquezas, as nossas ingratidões, as nossas quedas reiteradas. Viu
que não podíamos sustentar-nos e voltar a Ele sem o Seu socorro; esse socorro,
preparou-no-lo Ele em Jesus Cristo; convida-nos, exorta-nos, ordena-nos mesmo
implorá-lo depois das nossas quedas, para nos levantarmos; promete-nos
ajudar-nos, ser-nos propício. Ajudando-nos e perdoando-nos é que se exerce a Sua
misericórdia.
Esse procedimento de Sua parte, manifestou-no-lo
Deus de maneira bem evidente no povo judeu. Esse povo muitas vezes idólatra,
muitas vezes Deus o puniu para fazê-lo reentrar em si mesmo e reconduzi-lo ao
dever da obediência. Se ele abandonava o seu Deus para servir deuses estranhos,
o Senhor entregava-o a inimigos cruéis, que o retinham em dura servidão. Se,
coberto de males na escravidão, ele voltava ao seu Deus com confiança, na
sinceridade do seu coração, Deus lhe dava um libertador, que o libertava da
dura dominação sob a qual ele gemia; e essa vicissitudes durou por quatrocentos
anos.
Julgai por aí se o nosso Deus se cansa de nos
perdoar quando O invocamos com sincero pesar das nossas infidelidades. Se esse
procedimento do Senhor para com Seu povo não vos tranquilizar, escutai o Rei
Profeta, inspirado pelo Espírito Santo. Ele vos assegura que Deus nunca rejeita
um coração contrito e humilhado (Sl 50, 19).
Efetivamente, é Deus quem nos atrai pela Sua graça
todas as vezes que, espantados à vista dos nossos pecados, temos o pensamento,
o desejo de voltar a Ele depois das nossas quedas. Será então para não nos
receber que Ele nos chama? Quem poderia pensá-lo? Ele diz a S. Pedro que perdoe
todas as vezes que for ofendido (Mt 18, 22); as suas lições são a expressão dos
sentimentos do seu coração. Ah! conhecemos mal esse coração divino, se lhe
emprestamos o nosso modo de pensar, e se supomos n’Ele a menor indiferença por
nós. Enquanto estamos neste mundo, estamos sob a providência da Misericórdia,
e podemos sempre aproveitar dela. Só a morte nos coloca sob a providência imutável
da Justiça.