TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
DO VERDADEIRO MOTIVO DA ESPERANÇA CRISTÃ
ESSE MOTIVO
É O MESMO PARA TODOS OS HOMENS.
Consoante a Religião, o motivo da Esperança cristã,
ou da confiança em Deus, é o mesmo para todos os homens, santos ou pecadores.
A Esperança, como já dissemos, é uma virtude
teologal, como a Fé e a Caridade. O seu motivo não pode, pois, ser achado senão
em Deus, não pode apoiar-se senão nas perfeições divinas. Assim sendo, excluímos
desse motivo os nossos méritos. Não esperamos em Deus por Lhe havermos sido
fiéis: esperamos n’Ele para obtermos a graça de Lhe sermos fiéis.
Em que é que se funda, pois, a Esperança cristã? e
qual é o motivo dela segundo a Religião? O Papa Benedito XIV, no modelo do Ato
de Esperança, exprimiu as perfeições divinas que formam esse motivo. Esse ato é
assim: Meu Deus, espero em Vós porque sois fiel às Vossas promessas, sois
todo-poderoso, e porque infinitas são as Vossas misericórdias. Nesse motivo,
não há nada do homem; tudo é tomado em Deus mesmo. E pode haver motivo mais
forte para nos firmar na Esperança, na confiança em Deus?
Achamos aí a misericórdia de Deus, que é mais
solícita em derramar os Seus dons sobre os homens do que estes são em
recebê-las; que quer o verdadeiro bem deles, a sua salvação, muito mais
sinceramente do que o querem eles próprios, visto que Ele os previne pela Sua
graça, graça que eles não podem merecer; visto que lhes prepara socorros
proporcionados às provações em que os coloca, socorros que eles podem obter por
suas preces, e de que podem fazer uso para resistir ao inimigo da salvação:
misericórdia infinita, por conseguinte superior a toda a malícia dos homens; e
que, depois de se haver manifestado de maneira tão evidente e tão admirável
pelo dom que Deus nos fez de Seu Filho único para nos remir, não nos recusará
os socorros que Ele tem em vista proporcionar-nos por meio desse benefício
extraordinário.
Os efeitos dessa divina misericórdia são-nos
assegurados pelas promessas que Deus nos fez de vir em nosso socorro quando o
reclamássemos, para operar a nossa salvação. Essencialmente verdadeiro, Deus
não pode enganar-nos; e Ele é essencialmente fiel às promessas que faz às Suas criaturas.
Ora, nos Livros Santos achamos as exortações mais tocantes para recorrermos a Ele
nas nossas necessidades, com promessa de que Ele será o nosso sustentáculo e a
nossa força. Podemos, então, ter a menor desconfiança, o menor temor refletido
de que Ele nos rejeite, de que nos abandone, quando O invocarmos com confiança?
Não seria isto acusar Deus de faltar à Sua promessa? Ora, isto seria uma
blasfêmia.
Verdade é que, para nos atender, Deus exige que O
invoquemos com confiança. Mas também mereceríamos obter os Seus benefícios se
os pedíssemos com um coração vacilante sobre a Sua bondade, bondade cujos
efeitos experimentamos a cada instante e de tantas maneiras? Não, diz- nos o
Apóstolo S. Tiago (Tgo 1, 6), um coração que reza com essa disposição de desconfiança
não obterá nada. E vemos que Jesus Cristo, na Sua vida mortal (Mt 9, 22), só
concedia milagres à confiança.
A onipotência de Deus dá o último traço a este
motivo de Esperança cristã, fazendo-nos considerar-nos superiores a todas as
nossas necessidades. Muitas vezes, os homens prometem o que não está no poder
deles dar: assim não sucede com Deus onipotente. Ele não pode achar obstáculo
insuperável à Sua vontade nos dons que quer fazer-nos. Nos tesouros infinitos
das Suas graças Ele tem meios infalíveis para nos conduzir à santidade. Nunca
devemos, pois, recear pedir-Lhe ou coisas demasiadas ou coisas demasiadamente
difíceis.
Infinitamente rico, Deus possui todos os bens, na
ordem da graça, como na ordem da natureza. Infinitamente poderoso, não há
nenhum dos Seus bens de que Ele não nos possa dar parte. Infinitamente bom, Ele
está disposto, segundo as Suas promessas, a nos conceder tudo o que nos é
necessário para a nossa salvação. É nestes motivos essenciais, hauridos nas
perfeições de Deus, que todos os homens devem fundar a sua esperança. Só eles
podem dar à nossa confiança essa firmeza inabalável que ela deve ter.