Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
Origem dos pecados contra o amor do próximo
1— Egoísmo
Cada
um deve amar-se a si mesmo, devido a excelência da sua alma e do seu corpo. O
corpo é a morada criada por Deus para a alma imortal e o instrumento da alma,
que nos foi confiado por Deus para acumular merecimentos para a vida eterna.
Portanto, a vida e a saúde do corpo são de grande valor pois a vida terrena é o
tempo de semear para se colher na vida eterna.
O
egoísmo ou o amor desordenado de si mesmo, faz com que o homem, para satisfazer
as suas paixões e comodidades, passe por cima dos interesses de Deus e do
próximo; sacrifica tudo a si mesmo.
Ora
aquele que se ama desordenadamente a si mesmo perder-se-á. Perde primeiramente
o que tem de melhor: o amor; pois que amor e egoísmo são incompatíveis. Com
quem deixará um egoísta de ter conflitos de amor próprio? Quem poderá amar um
egoísta? — Perde a paz interior. O egoísta vive sempre em desconfiança, em
luta, não tem um momento de descanso, nem na alma nem no corpo. Perde-se,
torna-se escravo. A sua inteligência clara, a sua vontade livre, os seus sentimentos
nobres, escraviza-os ao seu instinto pervertido, ao egoísmo que é a paixão das
paixões.
Devemos,
pois, quebrar as cadeias do egoísmo a fim de tornar livre, a livre filha de
Deus — a caridade.
2— Avareza
O
avarento não procura adquirir somente o que é necessário ou útil a si ou a uma coletividade,
quer ter para ter. Daí vêm muitas privações e sovinices no seio da abundância.
Serve-se de todos os meios lícitos e ilícitos para acumular riquezas.
Guardai-vos
da avareza, diz o divino Mestre, porque ela causa grandes estragos.
1.º A avareza rouba os bens, as
riquezas.
O
avarento não quer senão receber. Como um cão danado que morde toda a gente, diz
são Vicente de Ferrer, o avarento não quer tirar aos seus semelhantes senão
lucros.
2.º
A avareza rouba o
amor do próximo.
A
avareza rouba a riqueza verdadeira e própria da vida: o amor do próximo. O
avarento é cruel para com o próximo, não tem compaixão daqueles que sofrem, nem
piedade dos desgraçados que não quer socorrer.
O
seu coração assemelha-se a uma bigorna
que não amolece ainda que lhe batam continuamente com um martelo; e as
suas riquezas a um montão
de estrume, que tornaria os campos férteis se o
espalhassem. Ela não é verdadeiramente útil, diz são Boaventura, senão
repartida pelos pobres que facilmente podia sustentar com o seu supérfluo.
3.º
A avareza rouba o
amor de Deus.
Não
se podem servir a dois senhores — Deus e as riquezas; odeia-se necessariamente
um, quando se ama o outro. Mas, perder o amor de Deus é perder o próprio Deus.
O avarento é um idólatra, diz são Paulo, cujo Deus é o dinheiro. A este ídolo
consagra os seus pensamentos, desejos e cuidados.
Foi
Jesus Cristo, o primeiro, como diz Oscar Wilde, que reconheceu que a riqueza é
para o homem uma tragédia maior que a pobreza. Quando ele diz ao jovem rico:
«Vende tudo o que tens e dá-o aos pobres», ele pensa menos na situação dos
pobres, do que na alma do jovem; é a sua alma que sofre privações no meio das
riquezas. Sim, é menos ao amor dos homens que nos convida, do que ao nosso amor
próprio que ele nos grita: Guardai-vos da avareza!
3— Ira
Por
causa da ira, diz são Tiago, cometem-se só injustiças diante de Deus.
1.º O homem irado comete muitas
injustiças.— Toda a falta de amor que há na ira é uma falta contra o amor de
Deus; de maneira que quando se faz mal a alguém é o mesmo que fazê-lo a Deus.
Se
se perguntasse a um homem irado: contra quem vos encolerizais? Contra este nó
sem vida? Contra este animal sem razão? Contra este homem inocente?
Verdadeiramente,
não é contra eles, porque não são responsáveis pelos meus excessos.
Então,
contra quem é? Contra Aquele que dispõe e regula tudo?
A
resposta deveria ser, sim: Contra Deus? É realmente contra Deus que se
encoleriza. Mas como não é possível atingir Deus, então revolta-se contra as
suas criaturas.
A
ira é uma injustiça contra Aquele que é a eterna Bondade.
O
homem exaltado é pior que um animal feroz, porque a ferocidade do leão, diz são
Boaventura, desaparece quando encontra outro; o homem exaltado, ao contrário,
volta o seu furor contra os seus semelhantes. É até pior do que os demônios.
Estes são autores de todas as discórdias, mas estão sempre unidos entre si; ao
contrário, o homem enfurece-se contra o seu irmão e da ira provém muitas
feridas, assassinatos e demandas.
2.º O homem irado torna-se odioso
aos seus semelhantes. — Ninguém gosta das tempestades nem dos
furacões e menos ainda do homem irascível; desviam-se dele como de um cão
raivoso e nunca se podem travar laços de amizade com ele. «Não queiras ser
amigo do homem iracundo, diz o Espírito Santo, nem andes com o homem furioso». (Prov. XXII, 24).
É
mais fácil viver com um animal do que com um homem irado, porque o animal
deixa-se domesticar e o homem irado, não.
4—A inveja
1.º A inveja é diabólica na sua
natureza.
A
inveja tem uma origem diabólica. «A inveja é do diabo». (Sap. II, 14). Foi
o demônio que, entre a boa semente de Deus, semeou este joio no coração do
homem.
2.º A inveja é diabólica nas suas ações.
A
inveja é diabólica na sua natureza e nas suas ações.
Quantas
inimizades, perseguições e injustiças há no mundo devido à inveja.
Se
esta terra é um leito de morte, onde, cada dia, quase cem mil homens dão o
último suspiro, e é um imenso cemitério, tudo isto é obra da inveja. «Foi pela
inveja do demônio que a morte entrou no mundo». (Sap. II, 24).
Neste
tempo de guerras sangrentas, cidades destruídas, campos desvastados, hospitais
cheios de feridos e a face da terra orvalhada com lágrimas e sangue, tudo isto,
em parte, é obra da inveja que não pode ver um poder estranho prosperar e
viver.
Mais
sinistra nos parecerá, porém, a ação da inveja no mundo, se recordarmos que,
entre todos estes mortos, não há somente homens, há um Deus. Foi como vítima
imediata da inveja, segundo o testemunho das Escrituras, que morreu Jesus
Cristo.
A
inveja é uma paixão que não causa senão sofrimento. Não faz o mal por amor as
honrarias, como o orgulho; nem por prazer, como a luxúria; nem por amor do
ouro, como a avareza. A inveja,
diz o Espírito Santo, é a podridão
dos olhos. (Prov. XIV, 30). O que ela proporciona são horas amargas, dias
tristes, uma vida infeliz, uma eternidade desgraçada.
Conta-se
que um santo, vendo do alto do Céu sua mãe no abismo da condenação, não
descansou enquanto não conseguiu que um anjo descesse a essas profundezas para
a conduzir ao Céu. Quando, porém, o anjo a arrebatava, muitos companheiros da
sua desgraça agarraram-se a ela para irem participar da sua felicidade. Mas,
quando esta mulher viu que outros se aproximavam desse lugar de felicidade
eterna, cheia de inveja, sacudiu-os e caíram de novo, nesse profundo abismo. A
mão do anjo deixou-a também cair e o santo reconheceu que um invejoso não é
capaz de participar da vida eterna e do eterno amor de Deus.
3.º A inveja opõe-se ao amor. —
O amor regozija-se com o bem em toda a parte que o encontra; a inveja, ao
contrário, entristece-se à vista da felicidade dos outros, considerada como um
mal para si. O amor consola os tristes, socorre os desgraçados, quer
transformar em bem todo o mal que encontra no mundo; a inveja, ao contrário,
até a gota de felicidade que aparece no meio de uma infinidade de males a quer
transformar em desgostos e tormentos.
4.º A inveja opõe-se ao próprio
Deus. — Deus é o amor e o amor é de si difusivo. Ora a inveja não quer que Deus
seja bom e faça bem; não quer que Deus seja Deus.
5—A sensualidade
A
sensualidade, o amor dos sentidos, tem a sua origem no corpo e o corpo não é
senão egoísmo. Nenhum dos sentidos do corpo quer dar, todos querem receber. A
sensualidade também não quer senão adquirir e possuir, mesmo por meios
violentos. Pouco lhe importa, diz alguém, que corrompa o mais delicado perfume
de uma flor, que tire a honra, a paz e a felicidade a uma pessoa. Este amor
sensual é diabólico, vem do demônio e conduz ao inferno.
Todo
o amor se deve espiritualizar, por isso, dizia Sócrates, que não era com os
sentidos mas com a alma que amava os seus amigos. Devemos ver Deus nas
criaturas e, por isso, amá-las com um amor puro e santo.