Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950
Vocação
Que é a vocação?
A vocação é o chamamento de Deus.
Quantas espécies há de vocação?
Há duas espécies principais de
vocação: A vocação que consagra a vida ao serviço de Deus, e a vocação para a
vida cristã no mundo.
1.º A vocação para o serviço de Deus
é susceptível de três formas:
— A vocação religiosa acrescida da
vocação para estado eclesiástico: é a dos religiosos.
— A vocação religiosa sem a vocação
para o estado eclesiástico é a das religiosas e dos religiosos não padres.
— A vocação para o estado
eclesiástico sem a vocação religiosa é o do clero secular.
2.º A vocação para a vida cristã no
mundo é o estado de celibato no mundo, é o das almas chamadas à virgindade para
se entregarem mais facilmente aos exercícios de piedade e à prática das obras
de misericórdia, e o estado do matrimônio.
1—
Princípios que esclarecem a questão da vocação
1.º Deus é o autor da sociedade.
Formou-se, diz Pichenot, de condições variadas e de estados diferentes cuja
reunião constitui um todo harmonioso que corresponde às necessidades de todos e
de cada um.
2.º Deus destina e chama os homens a
ocupar os diversos lugares cujo conjunto constitui a sociedade e é necessário
para o seu bom funcionamento.
3. ° Deus, que proporciona os meios
aos fins, distribui os seus dons segundo o destino de cada um. Reparte os talentos,
as qualidades próprias ao estado que nos destina, prepara-nos também as graças,
as luzes, os auxílios próprios deste estado para vencermos as dificuldades e
cumprirmos todos os deveres.
— Consequências práticas destes
princípios. Há três grandes acontecimentos na vida. — O batismo pelo qual nos
tornamos filhos de Deus e herdeiros do Céu: é o chamamento gratuito ao
Cristianismo; — a boa-morte que é o chamamento para a felicidade perfeita e
eterna; enfim, entre o batismo e a morte há escolha de um estado de vida que
nos coloca no plano providencial e nos assegura as graças especiais de
salvação.
O grande negócio da salvação eterna,
diz santo Afonso, depende principalmente da escolha de um estado. Frei Luiz de
Granada chama à escolha de um estado, a estrada real da vida. Por isso, da
mesma maneira que se transtorna o movimento de um relógio deteriorando nele o
volante, assim também no dizer de são Gregório Nazianzeno, prejudica-se uma
vida inteira por um erro inicial, sobre a escolha de um estado.
E, pois, da máxima importância
abraçarmos o estado a que somos chamados: Porque é aí e somente aí, que as
nossas aptidões serão exercidas com proveito, os nossos gostos satisfeitos, e
temos a certeza de encontrar todos os recursos que nos são necessários para a
salvação.
II.
— Meios para cada um chegar a conhecer a sua vocação
Esses meios são três os principais.
1.º Recorrer a Deus na oração. — Foi
Deus quem escolheu o estado que devemos abraçar; é Ele só que no-lo pode fazer
conhecer; daí a obrigação de O consultar.
É preciso orar com fé, com
docilidade e recolhimento. «Falai, Senhor, porque o vosso servo escuta.»
Devemos repetir como São Paulo: «Que quereis, Senhor, que eu faça?» Como ele
devemos pedir luz a fim de que a face do Salvador ilumine o nosso caminho; como
ele, sobretudo, devemos pedir força, porque a nós, como a ele, o Senhor terá de
mostrar tudo o que devemos sofrer por Ele.
2.º Consultar. — Nosso Senhor disse
a Paulo: Vai ter com Ananias e ele te dirá o que tens a fazer.
A respeito da nossa vocação devemos
dirigir-nos àqueles que estão em lugar de Deus, quer dizer, primeiramente aos
pais; ao diretor que tem a graça de estado para explicar e resolver o problema,
com a condição de lhe ser exposto sinceramente em todos os seus aspectos.
3.º Estudar-se e consultar-se a si
mesmo.
Deus,
que proporciona os meios ao fim, estabeleceu uma harmonia entre o destino, de
uma parte, e os gostos, as aptidões e o caráter, da outra parte. Pertence ao
homem ver bem, à luz da razão e da fé, de que é capaz e o que deseja fazer.
III—
Vocação sacerdotal e religiosa
Há tanta falta de sacerdotes na
Igreja de Deus, tantas freguesias sem pároco, tantas terras de infiéis sem
apóstolos para pregar o Evangelho! Agora, que é fácil e rápido o acesso a todas
as partes do globo! De quem é a culpa?
Será possível que Deus infinitamente
bom e sábio — que semeou as estrelas no firmamento como botões de ouro; que
ensinou as avezinhas a cantar o hino de reconhecimento; que toma ao Seu cuidado
a florinha dos prados e as árvores gigantescas das florestas que não quer que
um cabelo caia da nossa cabeça sem Sua permissão; será possível que Ele
abandone, à mercê das circunstâncias, dos gostos e das preferências, como um
emprego ou carreira humana, a vocação ao sacerdócio e deixe assim, por
momentos, a Sua Igreja sem sacerdotes, mostrando-Se parcimonioso de vocações?
Não, isto não é possível.
Centenas de filhos, em todas as
classes da sociedade, tanto entre as mais opulentas como entre as mais pobres,
foram escolhidos por Deus para o sacerdócio; mas, a pouca estima das famílias
por tão sublime estado, o meio em que o maior número dos jovens vivem, e,
talvez, o nosso pouco zelo sacerdotal, tudo isto é a causa da perda do dom
divino. Deus põe muitas vezes a vocação nos corações como um germe delicado;
pertence-nos descobri-lo, recolhê-lo, cultivá-lo e fazê-lo amadurecer. Não se
fala o bastante do sacerdócio às crianças dos nossos catecismos e dos nossos
colégios. Não tendes pensado em ser padre? Não quereis ser padre. É bom ser padre.
1 — Como devem encarar os pais a vocação sacerdotal e religiosa?
1.º — Devem considerá-la como uma
honra.
A Igreja tem sempre preferido a
virgindade cristã ou o celibato religioso ao casamento. «Se alguém, diz a
Igreja pela voz do Concílio de Trento, sustentar que o estado do matrimônio
deve ser preferido ao estado de virgindade ou do celibato e que não é melhor
nem mais santo permanecer no estado de virgindade ou do celibato do que entrar
no estado de matrimônio: seja anátema» (Sess. XXIV, 16).
2.º Devem considerá-la como uma
graça, ou antes como uma série ininterrupta de graças adquiridas pelo
cumprimento dos votos e pela fecundidade das funções exercidas.
3.º Devem considerá-la uma fonte de
graças para eles mesmos.
Deus, com efeito, nunca se deixa
vencer em generosidade; e a esse pai e essa mãe que lhe sacrificam o que tinham
de mais caro, Ele reserva favores cujos benefícios sentem durante a vida e,
sobretudo, à hora da morte.
2— O pai e a mãe têm o direito de impedir a seus filhos de seguirem a sua
vocação?
Não. Seria uma verdadeira usurpação
oporem-se ao chamamento divino. Se Jesus na idade de doze anos fez chorar de
inquietação a mais santa das mães, quando Lhe teria sido tão fácil adverti-la
dos Seus desígnios, diz Charruau, foi para dar a vosso filho a coragem de vos
ver chorar, e a vós, sua mãe, a de o oferecer generosamente. Há, infelizmente,
pais que para fazerem perder a vocação a seus filhos os impedem de praticar os
exercícios de piedade, impelem-nos para os prazeres e distrações do mundo e até
os levam para o caminho do vício.
Estes atos são criminosos.
O meu filho e a minha filha farão
maior soma de bens no mundo; são precisos bons pais, boas mães de família; e,
depois, há tantas obras a sustentar e tanto apostolado a exercer! —A questão
está mal posta. Não se trata de um bem problemático que se possa fazer aqui ou
acolá.
Trata-se da vontade de Deus.
Qual é a vontade de Deus?
Eis a questão. E não é lógico
sofismá-la.
3 — Quais são os temores quiméricos que assustam o coração de certos pais
perante a vocação religiosa de seus filhos?
São três os principais.
1.º A desonra da família. — A
família não pode seriamente considerar como uma desonra dar um dos seus membros
ao serviço imediato e pessoal de Deus. — Só o espírito do mundo considera como
uma desonra o que é sobrenaturalmente uma glória; e como uma humilhação o que
é, cristãmente falando, um prestígio e uma dignidade.
2.º A infelicidade do filho. —
Seguir a vocação é seguir o caminho da felicidade na terra para obter a do Céu.
3.º O esquecimento a que o eleito de
Deus votará os pais. — A vida religiosa não destrói o coração; pelo contrário,
dilata-o, eleva-o. Em lugar de possuir o amor natural e terreno, enche-o de um
amor todo espiritual e todo divino que só ama Deus e as almas. Quantas piedosas
afeições, desenvolvidas à sombra dos claustros!
Aos pais falta-lhes o conhecimento
ou convicção profunda de uma verdade essencial, a saber: — que não são os
senhores de seus filhos.
Sic
vos, non vobis, melleficatis, apes;
Sic vos, non vobis, nidificatis,
aves;
Sic vos, non vobis, vellera fertis,
oves;
Sic vos, non vobis, fertis aratra,
boves.
Dizia o poeta latino:
Assim vós, abelhas, não é para vós
que fabricais o mel;
Assim vós, aves, não é para vós que
construís o ninho;
Assim vós, ovelhas, não é para vós
que criais a lã;
Assim vós, bois, não é para vós que
puxais o arado.
Assim vós, pais e mães, não é para
vós que tendes filhos; é para Deus, primeiramente, e depois para eles.
III— Matrimônio
Os pais devem encarar a questão do
casamento de seus filhos com discrição, prudência e desinteresse.
1— Discrição
O casamento exige uma verdadeira
vocação; portanto, os pais não devem aconselhar o casamento a seus filhos se
eles não sentirem nenhuma inclinação para este estado de vida; não devem levar
as suas filhas a todas as festas, julgando que, para conseguir colocá-las, seja
necessário mostrá-las.
Os pais, após o casamento de seus
filhos, nunca mais devem pretender ocupar o primeiro lugar no coração deles. É
Deus que assim o quer. «O homem deixará seu pai e sua mãe para se unir a sua
esposa e serão dois numa só carne.» (Genes. II, 24). O amor destrona a piedade
filial embora a não extinga. Pode, porventura, um filho desligar-se de seu pai
ou esquecer sua mãe? Não, sem dúvida. Os pais, quando puderem, devem tomar à
letra o princípio: cada um na sua casa. É raro que os novos esposos se
encontrem bem em casa de seus pais, e mais raro ainda que os pais se encontrem
bem em casa de seus filhos. Os jovens esposos devem viver em sua própria casa.
2—
Prudência
Os pais devem tomar todas as
precauções para assegurar a felicidade temporal e eterna de seus filhos. Pertence
aos pais cristãos examinar e resolver com prudência.
1.º Idade. — Relativamente às filhas
é preciso deixá-las fortalecer; as esposas muito novas dão à luz filhos muito
débeis; — obrigá-las a uma aprendizagem da vida da família e da vida doméstica
de maneira a poderem desempenhar bem os deveres do seu novo estado; dar-lhes
tempo para se fortalecerem nas práticas da vida cristã. Muitas que comungavam
todos os dias, chegam a nem ao menos cumprir o preceito pascal.
Relativamente aos filhos as delongas
sem um motivo sério, só podem ser prejudiciais aos jovens que desejam casar e à
própria união que desejam contrair. Os jovens estão na idade das paixões
violentas que fazem que a sua virtude corra bastante perigo. O remédio, diz o
Concílio de Trento, está no casamento. Privá-los deste remédio ou retardar a
sua aplicação, diz Hoppenot, é expor os jovens a quedas dolorosas e obrigá-los
a arrastar, durante anos, uma vida de pecado e a comprometer a vida do matrimônio;
pois que, com o coração corrompido, corpo envelhecido, e os sentimentos gastos,
hão-de estar pouco dispostos a cumprir as obrigações do seu novo estado.
2.º Religião. — É preciso que a
religião ocupe o primeiro plano das condições que se exigem para determinar a
escolha. 1.º Porque para os cristãos o casamento não é somente união de vidas,
mas a fusão das almas, fusão que não pode ser completa se não houver a
comunidade de religião; 2.º porque sendo o matrimônio um sacramento de vivos,
seria um sacrilégio recebê-lo sem ser em estado de graça.
Haverá grandes inconvenientes em
abandonar esta recomendação? Sim.
1.º Se é o marido que não tem
religião; em poucos anos a piedade da esposa afrouxa, a fé abala-se, abandona
as práticas de devoção e depois os deveres essenciais e acaba por perder toda a
religião. Casou com um inimigo de Deus!
2.º Se é a mulher que não tem religião,
não poderá educar cristãmente os seus filhos. Anda a criar filhos para o
inferno!
3— Desinteresse
Fortuna — É permitido desejar um
dote suficiente que permita sustentar a posição de cada um e educar, sem grande
dificuldade, um grande número de filhos. Mas, fazer da fortuna a questão
principal à qual se subordinam todas as outras, é, ao mesmo tempo, insensato e
anticristão. «É a mulher que se desposa e não o dote.» Mais vale a virtude do
que a riqueza.
IV— Fidelidade à
vocação
Esta fidelidade consiste em termos
sentimentos de vivo reconhecimento, ardente desejo de corresponder eficazmente
à nossa vocação e absoluta confiança em Deus que nos chamou.
1.º Sentimentos de reconhecimento,
porque a nossa vocação devemo-la a Deus. «Não fostes vós que me escolhestes,
mas fui eu que vos escolhi a vós». (Jo. XV, 16).
«Nem
todos são capazes desta resolução, mas sim aqueles a quem foi dada». (Dan.).
Peçamos
a Deus a graça de conhecer cada vez mais a excelência da vocação eclesiástica
ou religiosa e agradeçamos a longanimidade de nosso Senhor a nosso respeito.
2.º Desejo ardente de
correspondermos à vocação. — São Bernardo cada dia perguntava a si mesmo: —
Bernardo a que vieste à religião? Aproveita todas as graças que nosso Senhor
lhe concede, renova-se cada dia no fervor e, em poucos anos, alcança uma grande
perfeição.
Cada um deve esforçar-se por
corresponder à sua vocação de maneira a poder repetir com toda a propriedade e
verdade como São Paulo: «Pela graça de Deus sou o que sou e a sua graça não foi
vã em mim, antes tenho trabalhado mais que todos eles, não eu, mas a graça de
Deus que está comigo». (I Cor. XV, 10).
3.º Confiança absoluta em Deus. —
Deus, diz Santo Tomás, concede a cada um a sua graça segundo o fim para que o
escolhe. «Eis me aqui já que me chamastes». (Reis. III, 6).
Não temo o abandono da Vossa parte,
Senhor, porque sois fidelíssimo em Vossas promessas e de infinita misericórdia.
Se Deus nos chama para o estado
eclesiástico ou religioso, aceitemos generosamente o Seu convite:
Não vamos para a morte, mas para a
vida.
Não vamos para a esterilidade, mas
para a fecundidade.
Não vamos para a tristeza, mas para
a alegria.
Não vamos para a ignomínia, mas para
a glória e felicidade eterna.
Um dia, disse Pedro a Jesus: Aqui
estamos nós que deixamos todas as coisas e te seguimos; que galardão será o
nosso? Jesus respondeu a Pedro e, na pessoa dele, a todos os que haveriam de
imitá-lo: «Em verdade vos digo que vós, que me tendes seguido, quando o filho
do homem estiver sentado na sede da sua majestade, estareis sentados também vós
julgando as doze tribos de Israel. E todo aquele que deixar a casa, os irmãos
ou as irmãs, ou o pai ou a mãe, ou a mulher ou os filhos, ou as fazendas por
causa do meu nome receberá o cêntuplo, e possuirá a vida eterna.»