segunda-feira, 6 de maio de 2013

Amor do próximo - Sétima Parte

Nota do blogue: Acompanhar esse Especial AQUI.
Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950

Perdão das injúrias

            1 — A quem devemos perdoar?
            O Pai-nosso responde em duas palavras: Debitoribus nostris: os nossos devedores. Devemos perdoar aos nossos inimigos pessoais. Na nossa convivência com os homens, o nosso coração enche-se de indignação perante uma injustiça flagrante, perante uma intriga traiçoeiramente urdida, perante uma injúria atroz. Nesta efervescência, diríamos a esse homem que nos ofendeu gravemente: retire-se da minha vista, odeio-o e tratarei de me vingar.
            2— Porque devemos perdoar as ofensas
            Devemos perdoá-las por dois motivos: por dever e por interesse.
            1.º Dever. — Abramos o Evangelho e não encontramos nada mais formal do que o preceito do perdão.
            A antiguidade não conhecia e, por isso mesmo, não praticava esta caridade. Os pagãos diziam: «A vingança é o prazer dos deuses». Mas, nós não somos pagãos. A lei Mosaica admitia a pena de talião: «Olho por olho e dente por dente». Porém, nós não somos judeus, filhos de Moisés. Somos discípulos de Jesus Cristo.
            Desde os primeiros dias do Seu ministério público Jesus encontrou-Se diante deste artigo da Lei: «olho por olho, dente por dente». Julgou-o cruel e bárbaro. Então riscou-o com um traço e, em seu lugar, pôs o que devia transformar as nossas relações sociais.
            Escutai: Foi dito pelos antigos: amareis o vosso próximo e odiareis o vosso inimigo; mas, eu que sou o vosso Deus, Senhor e Legislador, eu vos mando com toda a autori­dade: — «Amai os vossos inimigos».
            Eis a lei de Jesus Cristo. Esta lei de amor, apesar da ofensa, é tão cara ao coração do Mestre que lhe chama o Seu Mandamento por excelência. — Hoc est praeceptum meum, este é o Meu preceito.
            Mostra-Se tão zeloso pelo seu cumprimento que vai até preferi-lo à Sua própria honra. «Antes de apresentares o teu dom no altar, diz Ele, vai reconciliar-te com teu irmão».
            Para inculcar e gravar nos nossos corações este preceito, recomenda-o, a cada instante, sob todas as formas. «Perdoai e ser-vos-á perdoado... Se vos derem uma bofetada na face direita, oferecei-lhe a esquerda... Bem-aventurados os que sofrem perseguições... Bem-aventurados os misericordiosos».
            Para que nós o tivéssemos, sem cessar, na boca, Ele introduziu nesta sublime oração que, todos os dias e várias vezes ao dia, recitamos o Pai-nosso —: Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores.
         Não o recitando integralmente, o cristão torna se culpado de uma mentira e recebe uma dupla condenação.
            2.° Interesse. — Devemos perdoar por interesse próprio. Temos sido pecadores. Ora que é que nos assegura, em parte, o perdão dos nossos pecados? O perdão das injúrias. Às palavras de Jesus Cristo são claras: «Perdoai e ser-vos-á perdoado». A minha misericórdia depende unicamente da tua». (Mat. VI).
            Se não perdoares não serás perdoado.
           São João Gualberto tendo perdoado a um encarniçado inimigo de quem podia facilmente vingar-se, foi a uma capela fazer esta oração: Senhor, tendes prometido o perdão àqueles que perdoam. Vós sabeis os pecados de que sou culpado, já os confessei, mas peço que me digais se estão perdoados, pois eu acabo de perdoar aos meus inimigos por amor de Vós. No mesmo instante o Crucifixo inclinou para ele a cabeça para lhe dar a certeza de que os seus pecados estavam perdoados.

            3 — Como devemos perdoar as ofensas
            Nosso Senhor Jesus Cristo dá a resposta, Ele mesmo traça o caminho e marca as etapas.
1.º Apagar as ofensas no nosso coração.Devemos esquecer as ofensas que nos fazem, o mais breve possível. César tinha um cérebro admiravelmente organizado, uma memória prodigiosa. Dizem os seus biógrafos que nunca esquecia nada do que tinha lido, visto ou ouvido. Lembrava-se de tudo, exceto das injúrias. Eis a lição que nos dá um pagão.
         Uma outra ilustre personagem, um cristão e um santo, Tomás Morus, o grande chanceler de Inglaterra, dizia: Devemos ter um coração de areia a respeito das ofensas, de modo que facilmente se apaguem; e de mármore a respeito dos benefícios, de maneira a nunca esquecê-los.
            O santo Cura de Ars recebeu, um dia, pelo correio, duas cartas: uma elogiava-o muito e a outra continha os maiores insultos contra ele.
            O santo refletindo diz: Afinal, nem uma com os seus elogios me faz melhor do que eu sou, nem a outra com os seus insultos me torna pior diante de Deus. Não é o mundo que nos há-de julgar, é Deus.
2.º Amar os nossos inimigos. — Devemos ainda, amar os nossos inimigos, isto é, desejar-lhes bem. O divino Mestre diz: Foi dito pelos antigos: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo; eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos.
3.º Desejar bem a quem nos odeia. — Não basta perdoar da boca, é preciso perdoar do coração. Devemos tratar os nossos inimigos como antes de nos terem ofendido. Antes tomávamos parte nas suas alegrias e penas, ou pelo menos lhes falávamos ou saudávamo-los. Façamos, agora, o mesmo e sem demora, porque quanto mais se demora a reconciliação mais se torna impossível.
4.º Fazer bem a quem nos odeia. — São Paulo diz a propósito: — Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se tem sede, dá-lhe de beber, se está em nudez, cobre-o, se está em necessidade, socorre-o. É assim que um cristão se vinga pelos benefícios.
            Consideremos o procedimento de David e Saul. Saul procura-o para o matar, tinha mesmo posto, para isso, todo o seu exército em campo. Ainda que o meu inimigo esteja nas entranhas da terra vou lá ter com ele. Mas, ao contrário é Saul que cai, pouco a pouco, nas mãos de David.
           David e seus amigos encontraram, um dia, Saul a dormir, dentro de uma grande cova. Então disseram a David em voz baixa: Este é Saul e nós podemos matá-lo como ele nos quer fazer.
            David respondeu: longe de mim tal pensamento. E aproximando-se de Saul sem ser pressentido cortou-lhe um bocadinho da sua túnica e deixando-o sair para fora da cova, saiu também David e exclamou: olhai a vossa túnica; aqui está o que lhe falta; sabei que como vos cortei este bocado vos podia cortar os fios da vida. Saul ficou envergonhado e exclamou: agora vejo que és melhor do que eu, podias tirar-me a vida como eu te queria fazer e não quisesse vingar-te de mim.
            Outra vez, David surpreende Saul na sua tenda, no meio de toda a sua guarda adormecida. Agora, é boa ocasião, matai-o. Deus me livre, exclamou David e deteve mesmo o braço assas­sino dos seus companheiros. Ainda mais, repreendeu a guarda nestes termos: «É assim que se vela pelo seu chefe, pelo ungido do Senhor? Ó péssimos guardas!...» Como David, façamos bem àqueles que nos odeiam.
5.º Orar por aqueles que vos perseguem. Orar pelos seus inimigos é uma nobre e gloriosa vingança.
            Foi esta a vingança de santo Estevão para com Saulo.
            Saulo persegue-o, obriga os seus sicários a lapidá-lo, preside pessoalmente ao martírio. Enquanto é apedrejado, que faz Estevão? Ora pelos seus algozes: «Senhor, perdoa-lhes este pecado». Eis como ele se vinga. E que faz Deus? Detém Saulo, no caminho de Damasco, ilumina-o com a sua graça e Saulo caindo por terra ainda perseguidor, levanta-se um Apóstolo.
          Vingar-se pela oração não é dizer a Deus: «Castigai o meu inimigo, reduzi-o a pó». Não; é ir até à fonte do mal, que há nele, para o destruir na sua origem; é dizer a Deus: Senhor, deitai por terra este inimigo, mas que seja pela penitência! Esmagai o coração deste obstinado, mas que seja pela contrição! Abatei a cabeça deste rebelde, mas que seja pela humildade! Eis como se ora pelos seus inimigos.

4—Desculpas do pecador em perdoar

            A minha honra recusa ao perdão, porque perdoar é uma fraqueza e uma coisa humilhante. Está escrito: eles pedirão a Deus misericórdia, mas Deus os condenará pela sua própria boca e lhes dirá: Pois, vós quereis que eu vos perdoe e vós não quereis perdoar? Quereis misericórdia e aborreceis a misericórdia? Vós dizeis que é fraco, que se rebaixa, que se avilta quem perdoa e então quereis que Deus seja fraco, que se rebaixe e que se avilte? Mais fraco é quem se não vence a si mesmo, quem não vence as suas paixões.
            Eu não posso perdoar ao meu próximo, ele é que primeiro me ofendeu.
            1.º Quem recebe uma injúria deve ir pedir perdão? Não, certamente. Diz santo Agostinho: O inocente ofendido não é obrigado a ir pedir a graça para uma falta que ele não cometeu; mas deve estar disposto a perdoar do íntimo do coração e a dizer a Deus na sua oração: «Senhor, Vós que conheceis as faltas de meu irmão e sabeis que o seu ódio pode comprometer a sua salvação eterna, perdoai-lhe e mudai os sentimentos do seu coração».
            2.º Como se sabe donde partiram as injúrias? E tão natural à natureza humana contemplar-se no espelho exagerado das suas perfeições e ser cega a respeito dos seus defeitos! De maneira que vemos o argueiro na vista alheia e não enxergamos a trave na nossa vista; isto é, vemos os pequenos defeitos doutrem e não vemos os nossos defeitos por maiores que eles sejam.
            É tão natural ao coração humano ver, através de cores sombrias, as palavras e ações daquele que ele não ama! de maneira que envenenamos as palavras mais simples e os atos mais inocentes. As primeiras injustiças e as mais graves são cometidas por aqueles que mais se lamentam. De todas as ofensas a mais pesada e mais difícil de esquecer não é aquela de que se é vítima mas aquela de que se é autor.
            Tacito, cuja pena sabia dizer coisas tão profundas em poucas palavras, escreve: Proprium est humani ingenii odisse quem laeseris. — É próprio do coração humano, odiar aquele a quem se ofendeu.
            Se alguém, pois, está possuído de sentimentos de aversão, ódio, de vingança, deve calcar aos pés tais sentimentos e depois procurar aproximar-se do seu inimigo para reconciliar-se, sem procurar saber quem deve dar o primeiro passo. E se, porém, descobrir que, apesar de ser ofendido, deu os primeiros passos para a reconciliação, pode ter-se na conta do melhor dos dois.
            Custa muito a perdoar uma ofensa, sobretudo, quando ela é grave. — Custa muito a perdoar, mas não custará mais ser condenado? Ora se cada um não perdoar do íntimo do seu coração, também o Pai celeste lhe não perdoará. Dois cristãos foram para o martírio. — Um deles pede perdão ao seu companheiro com quem andava de mal. Recusa-se obstinadamente a perdoar. Pede novamente perdão, mas recebe uma recusa ainda mais enérgica. A graça do martírio foi retirada a esse cristão inclemente, sacrifica aos ídolos e renuncia à fé. Isto não deve admirar. São Cipriano chegou a dizer: o crime do ódio é tão grande que não pode ser lavado pelo batismo de sangue, nem expiado pela glória do martírio.
            Não há perdão para aquele que não perdoa.
            Consideremos bem que nunca ninguém nos ofendeu, como nós temos ofendido a Deus. Todavia queremos e esperamos que Deus nos perdoe; portanto também devemos perdoar.
            Se nos ofenderem, agradeçamos a Deus que nos proporcionou uma ocasião de sofrer e, por isso, de nos purificarmos, de nos corrigirmos dos nossos defeitos e de alcançarmos merecimentos.
            Com razão diziam os antigos: Os nossos inimigos são mais úteis que os nossos amigos.
           A injúria que fulano me fez eu lha perdoo aqui e diante de Deus. Porém Deus também quer que se faça justiça e eu não pretendo outra coisa. — Este quer que se faça justiça e que se dê o castigo, não é pelo amor à verdade e à justiça, mas sim para saciar a paixão, por vingança. E como quem diz eu farei com que conheça o que tem feito e que não zombe de mim outra vez.
          Parece que descansamos e triunfamos em que o outro pague, mas afinal, diz são João Crisóstomo quem fica saciado e triunfante é o demônio por via de nós.
       Se um de nós fosse o ofensor e outrem o ofendido, gostaria que pedisse justiça contra nós e julgaríamos que andava com um coração puro e com bom fim? Certamente não. De resto, se o juiz absolvesse, logo nos revoltaríamos e diríamos que já se não faz justiça. Eu perdoo-lhe, mas nada quero com ele, desprezo-o. É esta a linguagem do mundo. Ouçamos a do Evangelho: — «Amai os vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos odeiam».
           Quando nada queremos com o próximo é a abstenção do amor; quando o desprezamos, calcamos aos pés a caridade fraterna, é o último grau da ofensa, visto que o despojamos de um dos bens mais preciosos — a estima.
           Eu perdoo de todo o meu coração os agravos. Não basta isto. Estamos obrigados a portar-nos no exterior de tal maneira que nem àquele que nos mortifica nem aos outros, demos indícios de que lhes queremos mal ou de que, por vingança, não tratamos com ele.