Nosso coração, diz São Thomaz é um foco de vida; é o Santuário do amor. É
ai que Deus habita e se regozija.
O coração, diz Santa Hildegarda, é um instrumento de música simbolizado
pelo saltério de Davi. Mas, ai de nós! No seu estado atual, ele tem notas mudas
e discordantes; faltam-lhe oitavas. O grande e delicado trabalho da vida cristã
consiste em reorganizá-lo.
Qual é a função do coração na hierarquia das potências e das faculdades
mentais? Ele ama; eis ai a sua lei e a sua vida. É um fogo: precisa arder,
quando não arde, extingue-se e morre.
A religião tem por fim vivificar esta chama e dirigi-la para o seu termo
superior. “Fili, præbe mihi cor tuum!” “Meu filho, dá-me o teu coração”, diz o
Deus de Amor.
Nada exige mais vigilância e precauções do que a organização das forças
intimas que saem do coração. Se o fogo material, abandonado a si mesmo, produz
desastres, muito mais devemos temer os desvarios do coração quando o amor se
expande sem regra nem medida.
Deus coordenou em mim todos os poderes do amor, diz o salmista:
“Ordinavit in me caritatem”. Como há no sol um foco de onde partem infinitos
raios luminosos, também do centro do nosso coração dimanam inúmero sentimentos
e expansões que correspondem a objetos múltiplos. Estes diferentes objetos
podem ter direitos ao nosso amor, mas todos não poderiam participar dele no
mesmo grau. A boa regra no amor consiste em amar cada um segundo a sua situação
em relação a nós, dando a cada um a porção de afeto que lhe é devido, sem
transportar a este o sentimento que pertence àquele.
Assim, quando o Evangelho preceitua que amemos a todos, sem exceção dos
nossos inimigos, não se segue daí que devamos amar a todo mundo da mesma
maneira. Nosso coração não projeta, como o fogo terrestre um flama cega que se
aplica indistinta e necessariamente a toda a espécie de coisas. Ele ama com
discernimento, com liberdade e com inteligência. É o que a mãe compreenderá com
o seu coração cristão.
Amais a Deus; e deveis amá-Lo acima de tudo e de todos. Amais vosso esposo, vossos
filhos, vossos parentes, vossos amigos e vosso próximo. Mas estes amores são
distintos, de modo que o raio destinado a um não poderia, sem desordem ou
perversão, dirigir-se a outro.
Cada amor tem a sua natureza, o seu caráter, o seu destino especial e o
seu maior ou menor grau de intensidade e profundeza. Vós amais seguramente a
vosso esposo de uma maneira diversa da que amais a vossos filhos: o amor que a
estes tendes é diverso do que tendes a vossos pais e assim por diante. Não
podemos alterar os graus dessa hierarquia. É dando a cada um integralmente a
sua parte legítima que a vida do coração se regulariza e brotam deste as
alegrias, a paz e a ventura.
O coração humano tem sido admiravelmente comparado a este
instrumento de dez cordas que o Salmista arrancava tão encantadoras melodias.
Cada uma de suas cordas produzia um som particular sob os dedos do cantor real,
e todas juntamente vibravam em uma harmoniosa unidade. Assim se devem exercer
alternada ou simultaneamente as diversas afeições do coração; e, desse modo,
longe de se embaraçarem umas às outras ou de comprimirem a sua ação recíproca,
elas mutuamente se sustêm, se completam e se dilatam na plenitude de sua
perfeição.
O amor de Deus não exclui o amor de uma mãe; não enfraquece o amor de
uma esposa; não diminui as amizades santas e não impede as relações sociais.
Todos esses sentimentos, ao contrário, se realçam uns aos outros e se
desenvolvem num mesmo concerto.
Apliquemos esta medida a nossa consciência. Talvez que, se nos
examinarmos com atenção, possamos verificar em nossas vibrações íntimas mais de
uma dissonância que seja a causa de nossas agitações e secretas tristezas.
De que modo amais a Deus? “Tu amarás teu Deus, com todas as tuas forças,
com todas as tuas faculdades, com toda a tua alma”.
Eis ai o grande mandamento promulgado ao coração do homem; é a nota
Tônica a que devem corresponder todas as outras notas da alma. Somos nós
fiéis a esta lei? Amamos o Senhor nosso Deus acima de tudo mais? Admira que em
geral nos examinemos tão pouco acerca desse preceito capital, quando nos
aproximamos do tribunal da penitência; ao passo que muitas vezes andamos a calcular
minuciosamente o alcance das fragilidades secundárias! Não se trata de
pronunciar simplesmente atos de amor; é um amor real e substancial, vivido e
ardente, que Deus reclama. E na verdade lhe damos nós esta parte principal de
nosso coração?
Depois da afeição por vezes apaixonada e cega que a vossos filhos
consagrais, restam ainda para Deus alguns sentimentos?
Esquecemos que tudo o que se apodera do amor que lhe devemos é uma
idolatria, e que a idolatria é, dentre todas as prevaricações, a mais perigosa
e a mais condenável. “Filioli, custodite vos a simulacris”. “Meus filhos,
guardai-vos dos ídolos” diz o Apóstolo.
O verdadeiro sentido do primeiro mandamento, segundo observa São Francisco de Sales, nos é indicado pela palavra “dilectio”, que o concílio de Trento emprega em sua doutrina sobre o amor de Deus. A dileção é um amor de escolha e preferência; de sorte que o amor de Deus deve ser um amor de predileção que domina e abrange todos os outros amores. Tal é a grande lei da vida. Só Deus, fonte de amor, é capaz de preencher o vasto âmbito de nosso coração. “Se alguém tem sede, que venha a mim”, disse Nosso Senhor Jesus Cristo. Só Ele, manancial perene da graça, verte em nossas almas o que há de mais doce, de mais delicioso e excelente; e, quando essa vivificante unção nos alimenta, nós temos do nosso lado muito para dar aos outros do muito que em nós transborda, pois que as nossas almas saciadas de amor saberão por sua vez amar superabundante e divinamente.
Lê-se em certos livros de devoção que não devemos amar a criatura. Que
quer isto dizer? Pois, se de uma parte o Evangelho manda que nos amemos uns aos
outros, como é que de outra parte nos proíbem esse amor? Como conciliar estes
dois preceitos tão contraditórios na aparência? – A contradição ai não é mais
do que um mero equívoco. Não amar a criatura é recusar-lhe o amor que só ao
Criador devemos. Mas, quando cedemos a Deus o Seu lugar supremo e Ele ocupa o
santuário do nosso coração e regula todas as afeições que ai se formam, então o
amor flui benéfico e podemos nos amar uns aos outros com segurança, com
generosidade, com magnanimidade, como o próprio Jesus Cristo nos amou.
Partindo deste princípio superior, a esposa amará seu esposo, e o seu
amor será mais sólido e durável por se não basear somente em simpatias que
mudam e vantagens que desaparecem; ela amará seu esposo porque ela é a sua
companheira, o seu auxílio, a sua coadjutora, diz a Escritura; Irá
amá-lo porque deve ser o seu anjo de consolação e de salvação.
Não digais pois: Ele me faz infeliz; ele não me compreende; nossos
gênios não combinam. Nada disso justifica o afrouxamento das afeições cristãs.
Se tal homem tem defeitos, estes desagradam seguramente a santidade de Deus
muito mais do que a vós, que do vosso lado também tendes defeitos.
Todavia Deus não cessa de o amar; Deus o suporta e o perdoa. Imitai o
proceder de Deus; amai a vosso esposo tal qual ele é; educai-o pela vossa
afeição doce e indulgente; oponha a seus defeitos as vossas boas
qualidades; e quanto mais imperfeições ele tiver, mais méritos tereis vós. A
vossa longanimidade tocará sua alma, santificará a vossa e atrairá bênçãos ao
lar da família.
Seria preciso falar aqui no amor que a mãe deve ter a seus filhos? Este
preceito em honra da natureza humana, não se acha em trecho algum da Escritura
Sagrada; mas de tal modo está ele gravado no coração que, não obstante a queda
do homem de que resultou a ruína de tantos sentimentos nobres, o amor maternal
subsiste sempre com incomparável energia. Deus não teve necessidade de dizer a
uma mãe: Tu amarás a teu filho.
Convém ainda assim regular esse amor, pois que freqüentes vezes a
exaltação o alucina e cega.Amai a vossos filhos segundo Deus e para Deus;
mas não os ameis para vós mesmas, não os considereis como propriedades que
houvésseis para sempre adquirido, nem os transformeis em objetos de gozo e
adoração. Estes excessos redundam infalivelmente em decepções.
Não, as mães que amam a seus filhos com essa ternura impetuosa e
desordenada, não sabem mais amar a Deus; quando muito algum amor lhes restará
ainda para seu marido e para seus parentes. Há nessa ternura excessiva uma
espécie de embriaguez que as atordoa e cega, provocando muitas vezes remorsos e
lágrimas. Não raro se vêem, entretanto, pobres crianças, órfãos de mãe, que
crescem e prosperam, graças ao bom anjo que invisivelmente as acompanha e
guarda; ao passo que outras, com as quais se empregam tão exagerados desvelos,
ficam enfermiças, caquéticas e sem desenvolvimento. Algumas até, apesar de
tantos carinhos, ou mesmo por causa deles, vem a desabonar mais tarde um nome
que deveriam honrar.
Há mães que não se contentam em idolatrar os filhos; querem elas
próprias ser por estes idolatradas. Cruéis ciúmes se misturam às suas
exigências, e elas se fazem como que o objeto exclusivo ou o fim único da vida
de seus filhos. Inquietam-se e afligem-se com tudo; querem tudo prevenir e
dispor, como se fossem as únicas encarregadas de lhes fixar o futuro; e nessa
atividade veemente, esquecendo o papel da Providência excluem a parte que a
Deus toca nos seus destinos. Que é que daí resulta? Deus deixa fazer; e a
prudência humana sossobra!
Os próprios filhos, oprimidos pelos constantes abraços de uma afeição
egoísta decididamente se aborrecem desses excessos de amor, e sacodem afinal o
jugo, dilacerando, as vezes, o coração de suas mães. Amai aos parentes, amai
aos amigos, amai aos próprios inimigos; mas rezando por eles. Nós não podemos
amar, a todos, de igual maneira, nem o devemos fazer.
Cada um tem os seus direitos e os seus títulos ao nosso afeto; cada um
se acha para conosco em uma situação que atrai um raio da nossa alma e marca a
medida dos nossos sentimentos.
Nosso Senhor nos oferece no Evangelho exemplos notáveis destes
diferentes graus do amor. Ele ama toda a multidão dos seus discípulos; mas ama
de preferência os doze apóstolos. Dentre estes doze, há três que são
manifestamente o objeto de uma distinção especial: só eles assistem à divina
agonia e só eles são testemunhas da cena do Tabor. E enfim, dentre estes três
preferidos, ainda há um que é o objeto de uma predileção mais singular: é aquele
que o Evangelho designa sempre pelo nome de bem-amado.
Tal é a graduação das afeições santas.
É assim que os sentimentos se harmonizam em uma ordem sagrada, sem se
confundirem entre si e sem que nenhum exclua os outros. O coração cristãmente
organizado ama a todo o mundo e, acima de tudo, ama Aquele que é o foco do
eterno amor.