terça-feira, 31 de dezembro de 2013

NO CÉU NOS RECONHECEREMOS- APÊNDICE À TERCEIRA CARTA

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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS

Pelo

Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa

pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha


 Oremos pelos pecadores mesmo depois da sua triste morte

I

Mistérios da graça por ocasião da morte. - Como se podem explicar. - Eficácia das orações feitas pelos pecadores depois do seu falecimento, segundo a opinião do P. de Ravignam. – Testemunho de S. João Crisóstomo. 

SENHORA,

A Igreja não condena pessoa alguma. Publica os seus decretos em que nos declara que esta ou aquela pessoa está no Céu, o que nunca fez a respeito dos condenados.

Tenho a satisfação de saber que lendo vós uma obra que merece toda a consideração, notastes particularmente estas linhas:


“O Padre de Ravignam gostava de falar dos mistérios da graça, que cria passarem-se no momento da morte, e parece ter sido o seu sentimento de que um grande número de pecadores se convertem nos seus últimos momentos, e expiram reconciliados com Deus.

Há, em certas mortes, mistérios de misericórdia e rasgos de graça em que os olhos humanos só vêem golpes de justiça. À luz dum último raio, Deus revela-se algumas vezes a certas almas cuja maior desgraça fora ignorá-lo; o último suspiro, compreendido por Aquele que sonda os corações, pode ser um gemido que implore o perdão”.

O marechal Exelmans, a quem uma queda do cavalo subitamente precipitou no túmulo, não praticava a religião. Tinha prometido confessar-se, mas não teve tempo. Todavia, no mesmo dia da morte, uma pessoa habituada às celestes comunicações acreditou ouvir uma voz interior que lhe dizia:

“Quem conhece a extensão da minha misericórdia? Sabe-se porventura a profundeza do mar e as águas que encerra? Muito será perdoado a certas pessoas que muito ignoram”.

Como explicar estes rasgos da graça? Pelo preço duma alma que vale o sangue de Jesus Cristo, vertido por ela, e pela misericórdia que não conhece limites, por alguma boa obra, esmola ou oração que o pecador tiver feito durante a sua vida; pelo invisível ministério do Anjo da Guarda, sempre disposto a trabalhar a bem da salvação do seu protegido; pelas precedentes orações dos santos do Céu e dos justos da terra, e sobretudo pela intercessão da Virgem Maria; finalmente, pelas orações feitas pelos pecadores depois da sua morte, quando mesmo não tenham dado algum sinal de arrependimento.

É este último ponto que me limito a explicar-vos aqui.

Lestes com prazer na obra que há pouco citei, as seguintes linhas traçadas pelo santo religioso para consolar uma rainha cujo filho morrera, caindo duma carruagem.

“Cristãos, colocados sob a lei da esperança não menos que da fé e do amor, devemos erguer-nos incessantemente do fundo das nossas aflições, até ao pensamento da infinita bondade do Salvador. Nenhum limite, nenhuma impossibilidade se mete de permeio entre a graça e a alma enquanto restar um sopro de vida. Convém, pois, esperar sempre e dirigir ao Senhor humildes e perseverantes instâncias. Não se poderá dizer até que ponto elas podem ser atendidas. Grandes santos e eminentes doutores estiveram bem longe, falando desta poderosa eficácia das orações por almas queridas, de dizerem qual tenha sido o seu fim. Conheceremos um dia estas inefáveis maravilhas da divina misericórdia, as quais nunca devemos deixar de implorar com uma profunda confiança”[1].

Visto que o P. de Ravignan apela para os santos e para os doutores, quero apresentar-vos o testemunho dum grande doutor e duma grande santa.

O mais eloqüente Arcebispo de Constantinopla, provando que não é conveniente chorar muito pelos nossos queridos defuntos, mas antes auxiliá-los com as nossas orações e boas obras, supõe que um de seus ouvintes o interrompe para lhe dizer:

– “Mas eu choro este querido defunto, porque morreu como um pecador - Propter hoc ipsum plango, quod peccator excessit!”.

Que responde S. João Crisóstomo?

“Não será isto um vão pretexto? Pois se tal é o motivo das vossas lágrimas, por que não fazíeis mais esforços para convertê-lo durante a vida? E se morreu verdadeiramente pecador, não devereis regozijar-vos, por isso mesmo, que a sua morte veio pôr termo ao número de seus pecados que, desde então, já não pode aumentar? É sobretudo necessário ir em seu socorro, tanto quanto puderdes, não por meio de lágrimas, mas de orações, súplicas, esmolas e sacrifícios. Nenhuma destas coisas são efetivamente loucas invenções. Não é inutilmente que nos divinos mistérios comemoramos os mortos; não é infrutiferamente que nos aproximamos do sagrado altar e oramos por eles ao Cordeiro que apaga os pecados do mundo; pelo contrário, tudo isto lhes serve de muita consolação.

Se Job purificava seus filhos, oferecendo por eles um sacrifício, de quanto mais alívio deve ser para os nossos defuntos aquele que por eles oferecermos ao Senhor? Não costuma Deus fazer bem a uns em consideração a outros? Mostremo-nos cuidadosos em socorrer os nossos queridos defuntos, e ofereçamos por eles as nossas orações.

A Missa é uma expiação comum de que todo o mundo se pode aproveitar. Portanto oramos na Missa por todo o Universo, e nesta multidão nomeamos os mortos com os mártires, com os confessores e com as virgens. Pois todos nós somos um só corpo, ainda que este tenha membros mais brilhantes do que outros. Pode mesmo acontecer que obtenhamos para nossos defuntos um completo perdão. Et fieri potest ut veniam eis omni ex parte conciliemos – pelas súplicas e dons que oferecem em seu benefício aqueles que são nomeados com eles.

Por que estais ainda angustiado? Para quê estas lamentações? Não se poderá obter uma tão sublime graça para aquele que perdestes?”[2]
II

Exemplo tirado da vida de Santa Gertrudes. – Esta verdade não é mais do que uma particular aplicação do princípio geral da Redenção. – A fecundidade que ela pode dar à dor.
  
Encontra-se nas célebres revelações de Santa Gertrudes um exemplo que confirma esta doutrina e lhe dá uma nova luz.

Em presença de Gertrudes, deu-se a uma pessoa a notícia da morte de um de seus parentes. Temendo esta que ele não tivesse morrido no estado de graça, mostrou-se muito aflita. Foi tão grande a sua perturbação que, comovida a Santa, se ofereceu para pedir a Deus pela alma do defunto, o que fez, principiando por dizer a Nosso Senhor:

“Vós podíeis bem ter-me dado o pensamento e a graça de orar por esta alma sem que a isso fosse levada por este movimento de ternura e compaixão”.

Jesus respondeu-lhe:

“Comprazo-me singularmente nas súplicas que se me dirigem pelos mortos, quando nelas se encontra a natural compaixão junto à boa vontade que a torna meritória, e estas duas coisas se aliam e concorrem para darem a esta obra a plenitude e perfeição de que é capaz”.

Tendo a abadessa orado depois disto, por muito tempo a favor desta alma, conheceu que o seu estado era lastimoso; porque lhe apareceu horrivelmente disforme, negra como um carvão, e semelhante àquelas pessoas que se confrangem pela violência das dores. Contudo ninguém se via que a atormentasse; mas parecia claramente que eram seus antigos pecados que faziam sobre ela o ofício de carrasco.

“Senhor, exclamou a caritativa religiosa, não quereis ceder aos nossos rogos, perdoando a esta criatura?

– Queria por amor de ti, responde o divino Salvador, ter piedade não só desta, mas ainda dum milhão de outras. Queres, pois, que lhe perdoe todos os seus pecados e a livre de toda sorte de sofrimentos?

– Talvez, replicou a Santa, não é isso conforme ao que ordena a vossa justiça!

– Não seria contrário, acrescentou Nosso Senhor, se mo pedisses com bastante confiança. Porque a minha divina luz, que penetra no futuro, tendo-me feito conhecer que me farias esta súplica, excitei nessa alma boas disposições, para prepará-la a gozar dos frutos da tua caridade.[3]

Oh! palavras  cheias de consolação!

Primeiramente, Deus, prevendo nossas futuras súplicas, digna-se de conceder ao pecador moribundo boas disposições que assegurem a salvação da sua alma; depois, por virtude das nossas orações presentes, consente em livrar esta mesma alma de toda a sorte de penas, e em retirá-la das chamas expiatórias.

A última confidência do Salvador à sua virginal esposa, não é mais do que uma aplicação particular dum principio geral.

Antes que os homens tivessem podido abaixar seus olhos sobre o Presépio e levantá-los para o Calvário; antes que o Sol da Redenção fosse para eles visível, neste humilde vale do nosso exílio, já podiam deixar-se conduzir pela sua luz e vivificar pelo seu calor.

Por quê? Porque Deus Pai, da sublimidade das eternas colinas, via já as orações, os sofrimentos, as virtudes e os merecimentos do seu único Filho, que devia encarnar-se para salvar o mundo.

Não é assim que a Virgem bendita, que devia ser a Mãe deste único Filho, foi preservada de toda a mancha em sua própria conceição, porque, diz-nos a Igreja, Deus considerava antecipadamente a Jesus Cristo crucificado? – Ex morte ejusdem Fielii tui praevisa, eam ab omni labe preservasti.[4]

Esta verdade, bem compreendida e posta em prática, pode dar à dor a sua maior fecundidade.

“Toda a minha vida está nisto presentemente”, dizia a pessoa que me fez notar esta passagem das revelações de Santa Gertrudes; “antes que meu marido morresse, Deus sabia o que eu faria por ele!”.

E assim fez um completo sacrifício de si mesma. Consagrou-se ao Senhor, tomando por divisa: Orar, sofrer, trabalhar[5] e o Senhor a consolou, dando-lhe por família, com os pobres enfermos da terra, as atribuladas almas do Purgatório.

Orai, pois, e fazei orar: o Deus cuja misericórdia é alta e vasta como o Céu (Ps. LVI, 2; CVI1, 5), conheceu, no momento em que ia expirar o vosso parente ou amigo, as orações que mais tarde faríeis por ele, hoje, amanhã, depois de terdes lido estas páginas e seguido o meu conselho.

Orai e fazei orar: vossas orações, santificando-vos e consolando-vos nesta vida, concorrerão para salvar aqueles que amais.



[1] P. de Pontlevoy, Vie du P. X. De Ravignan, chapp. X et XXI.
[2] S. João Crisóstomo, in I ad Cor. Hom. XLI, nos. 4, 5.
[3] Les Insinuations de la divine piété, liv. V, chap. XIX.
[4] Collecta da Missa da Imaculada Conceição.
[5] Simart, estatuário, membro do Instituto, Étude sur sa vie et sur son oeuvre, par Gustave Eyriès, chap. X, p. 402, 403.