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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
II
Com a ciência cresce
no Céu o amor. – Aumento deste mesmo amor. – Palavras de S. Bernardo em
diferentes ocasiões. – Doutrina de S. Tomás de Aquino. – Revelação feita a
Santa Catarina de Sena. - Harmonia do conhecimento e do amor. - Nem inveja nem
ciúme, mas completa resignação.
Ora, no Céu, com a ciência
cresce a caridade, o amor.
Assim como o Sol nos envia num
só e mesmo raio duas coisas ao mesmo tempo: a luz e o calor; assim também este
mútuo conhecimento que Deus permite aos seus escolhidos, é sempre acompanhado
de amor. E da mesma forma que se tornariam mais abrasados, à medida que se
aproximassem da chama; assim também, quanto mais se aproximam deste grande Deus
que é um fogo consumidor (Deut., IV, 24), tanto mais amam e são amados.
A caridade nunca se extingue,
diz o Apóstolo, (I Cor., XIII, 8); e este amor infinito, abraça a Deus em sua
unidade, a nós mesmos e ao próximo.
E efetivamente não existem
duas ou três virtudes da caridade, mas só uma. Se, pois, o amor do justo sobe
com ele ao Céu depois da sua morte, se brilha mesmo com um esplendor mais
radioso sobre o imaculado horizonte da bem-aventurada eternidade, como um astro
que, elevando-se, aumenta os seus esplendores, por que razão deixaria este
justo de inflamar-se também em caridade para com todos aqueles que amou santamente
na terra? Por que motivo, quando é maior o seu amor para com Deus, e para consigo
mesmo, não seria maior também para com o seu próximo?
O santo abade de Claraval
chorou a perda de seu irmão Gerardo com uma ternura maravilhosa. Um de seus
sermões sobre o Cântico dos Cânticos, não é mais do que uma oração fúnebre a
respeito deste irmão querido. Que diz ele sobre este ponto? Atendei e
consolai-vos:
“Quanto mais se estiver unido
a Deus, mais cresce o amor. Ora, se Deus não pode sofrer, pode condoer-se;
porque ter piedade dos desgraçados e perdoar aos culpados, é próprio da sua
infinita misericórdia. É forçoso, pois, meu irmão,
que estejais comovido das misérias do próximo, visto que estais tão intimamente
unido à divina misericórdia. Assim a vossa afeição por nós, longe de diminuir,
chegou, pelo contrário, à sua perfeição; e tendo-vos revestido de Deus, não vos
despojastes da vossa solicitude para conosco, visto que o mesmo Deus tem cuidado
de nós (1 Petr. V, 7). Ter-vos-eis despojado de tudo o que era fraqueza, mas
nunca da piedade ou compaixão. Enfim, visto que a caridade
não morre, vós nunca me olvidareis.” [1]
Baseado neste motivo do amor
para com o próximo, o abade de Claraval dirigia-se a S. Malaquias nos termos
seguintes: “Longe de nós o pensamento de que a vossa caridade, tão ativa na
terra, esteja, não digo esgotada, mas somente diminuída, quando vos achais
junto da mesma nascente da eterna caridade, tirando dela a longos tragos aquilo
de que anteriormente tínheis sede e que só podíeis beber gota a gota! O amor nunca pode ceder à
morte, pois que é mais forte do que ela”[2].
O santo abade dizia a respeito
de outro seu amigo:
“Ele era meu em quanto vivia, será meu depois da sua morte,
e reconhecê-lo-ei por meu na pátria celeste – Meum in patria recognoscam”[3].
Num sermão de S. Vítor,
mostrava-o tão cheio de solicitude por nós como de segurança a seu respeito; “porque,
dizia ele, não é numa terra de esquecimento que habita a alma de Vítor. Porventura a celeste habitação
endurece as almas que recebe, ou priva-as da memória, ou despoja-as da piedade? Meus irmãos, a amplidão do Céu dilata os corações e não os restringe,
dilata os espíritos e não os dissipa, não diminui as afeições, mas aumenta-as.
Na eterna luz, a memória é aclarada e não obscurecida, aprende-se o que se ignora
e não se esquece o que se sabe – discitur
quod nescitur, non quod scitur dediscitur.” [4].
O doutor angélico, S. Tomás de
Aquino, diz que os bem-aventurados se amam entre si tanto mais quanto maior é a
sua união com Deus; entretanto, na terra nos amamos mais ou menos, segundo a
maior ou menor união entre nós, pelas diferentes relações que nos são
necessárias ou permitidas. Todavia, ainda que no Céu não tenhamos de prover às necessidades
uns dos outros, cada um conservará uma afeição especial por aqueles que lhe foram
unidos, e continuará a amá-los com mais particularidade, ou por motivo de
parentesco, de amizade, de aliança, de benefícios concedidos ou recebidos, por
serem patrícios ou da mesma vocação. Porque nenhum motivo de pura afeição
deixará de operar sobre o coração dum bem-aventurado – Non enim cessabunt ab animo beati honestae dilectionis causae.[5]
O próprio Deus dizia a Santa
Catarina de Sena: “Ainda que todos os meus escolhidos estejam indissoluvelmente
unidos por uma perfeita caridade, todavia, entre aqueles que se amavam
reciprocamente neste mundo, reina uma singular comunicação e uma alegre e santa
familiaridade. Por este mútuo amor se esforçavam por crescer na minha graça,
caminhando de virtude em virtude; por ele, um era para o outro um meio de salvação;
por ele, todos se auxiliavam reciprocamente em me glorificar em si mesmos e no
seu próximo. Assim, este santo amor nada diminui entre eles na vida eterna;
pelo contrário, ocasiona-lhes muito maior alegria e contentamento espiritual”[6].
Sem esta admirável harmonia do
conhecimento e do amor, o Céu seria triste. Acendei nele o facho da ciência sem
a fornalha da caridade, e os ciúmes estenderão suas redes, como na terra.
Fazei do amor um cego correndo
nas trevas em procura do seu objeto, e vê-lo-eis, dentro em pouco, vítima dos
mais sombrios pesares.
Sem o amor, nada faria
contrapeso à desigualdade, porque deixaríamos de possuir no próximo o que não
temos em nós mesmos.
Sem a luz, nada nos consolaria
do desgraçado fim dum ente querido, infiel ao comparecimento no ponto
determinado para a reunião, porque não se veriam já os decretos da eterna
justiça, nem a marcha da amável Providência.
Mas, unir à perfeição da
ciência a perfeição da caridade é excluir do Céu os ciúmes do egoísmo e os
amargos pesares.
Os santos gozam do que têm, e
não se afligem do que não têm. Aqueles mesmos que passaram uma parte da sua
vida no pecado, nem por isso gozam menos duma pura alegria e duma completa
felicidade, ainda mesmo que o seu grau de glória seja inferior.
O grande Bispo de Hipona dizia às virgens: “A multidão que
vos vir seguir o Cordeiro, sem poder acompanhar-vos, não terá ciúme. Tomando
parte na vossa alegria, ela terá em vós o que não tem em si mesma – collaectando vobis, quod in se non habet,
habebit in vobis. Sem dúvida, ela
não poderá entoar o novo cântico, que só vos é próprio (Apoc. XIV, 3, 4); mas
poderá ouvi-lo e regozijar-se com a vossa imensa felicidade”[7].
Dizia ainda:
“Na mesma bem-aventurança,
nenhum daqueles que tiver um grau mais inferior terá inveja dos que estiveram
colocados numa ordem mais superior, assim como os anjos não têm ciúme dos
arcanjos. Ninguém quererá ser mais do que aquilo para que Deus o fez, assim
como em nosso corpo o olho não pode invejar a sorte do dedo. A todo aquele que
recebeu dons menores, dá Deus a graça de os não ambicionar maiores”[8].
Se vos repugna consultar,
sobre esta matéria, os sérios e mui importantes livros dos doutores, lançai
mãos da Divina Comédia, e lede uma página deste poema, que vos agradará, por
isso mesmo que tem nele grande parte a teologia.
Na sua graciosa viagem ao
Paraíso, o autor perguntava a uma alma que encontrou no mais ínfimo grau, se
ela não desejava subir mais acima para mais ver e mais amar.
“Irmão, respondeu ela, há uma
virtude de caridade que modera o nosso querer e que, fazendo que queiramos
somente o que temos, nos impede de desejar outra qualquer coisa. É mesmo
essencial à nossa bem-aventurada existência manter-se cada qual na vontade
divina, de maneira que todas as nossas vontades não façam mais do que uma.
Que sejamos distribuídas em
graduações diversas neste reino, é uma disposição que agrada a todo ele, assim
como ao Rei que absorve o nosso querer no seu. Na sua vontade está a nossa paz.
A sua vontade é este mar para o qual se move não só o que ela diretamente
criou, mas também o que a natureza produz.
Conheci então, conclui o
poeta, que todo o lugar no Céu é Paraíso, ainda que a graça do Soberano Bem se
não derrame por toda a parte com a mesma intensidade”[9].
[1] S. Bernardo, in Cant. Serm. XXVI, no. 3.
[2]
Ibid., Epístola 374, no.
2.
[3]
Ibid., Epístola 65, no. 2
[4] In
Natali sancti Victoris, sermo II, nº
1
[5] S. Tomás, Summ. 2. 2, q. 26, art.
13
[6] Sainte Catherine de Siene, Le Dialogue, cap. XLI.
[7]
Santo Agostinho, De Sancta Virginitate,
cap. XXIX
[8] Ibid., De Civitate Dei, lib. XXIII, cap. XXX, no. 2.
[9]
Dante, Paradiso, cant. III.