Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI
NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
TERCEIRA CARTA
Resposta a algumas objeções
I
É perigoso não responder às objeções. – As
de que falamos, resultam da idéia falsa ou acanhada que se faz do Céu – O pensamento
católico exprimido com felicidade por Dante. – Luzes que os bem-aventurados
têm. – Eles não ignoram as nossas necessidades. – Desejo que têm de nos
socorrer. – A sua lembrança de tudo.
SENHORA,
Nenhuma das verdades solidamente estabelecidas na Igreja
deve ser abalada em nossas almas, por uma ou muitas objeções, cuja solução nos
escapa.
“A verdade é do Senhor e permanecerá eternamente”, diz a
Escritura (Ps. CXVI, 2); as objeções são do homem, o tempo muda-as, e o sopro da
ciência as dissipa.
Todavia, acontece que uma verdade claramente demonstrada,
não penetra profundamente em nossa alma, enquanto tivermos uma dificuldade a
que não achemos resposta. Algumas vezes mesmo a objeção apodera-se de tal modo
do nosso espírito, que chega a expelir dele a verdade.
É o que se deu em muitas pessoas a respeito do objeto de que
nos ocupamos. Não sabendo como rasgar o véu de algumas dificuldades que lhes
ocultava esta luz tão consoladora, têm dito que não nos reconheceremos no Céu.
A sua imprudência poderia comparar-se à dum menino que, não podendo dissipar o
espesso nevoeiro, negasse a existência do Sol.
As objeções que vos têm feito, e que me haveis transmitido,
resultam de se não formar uma idéia assaz justa e grande do Céu.
Muitos supõem que Deus se dispusera a construir o edifício
da nossa grandeza sobre a indiferença ou insensibilidade, a coroar-nos de
glória e inebriar-nos de felicidade no meio da ignorância ou das trevas. Aderir
a esta idéia é provar que nem mesmo se leu aquele príncipe de poetas cristãos,
que pôs ao serviço da fé a sua poderosa e bem regulada imaginação e que cantou
numa língua e num país a que vossa família não pode chamar estrangeiro. Cito-o,
não para lhe atribuir uma autoridade que não tem, mas porque exprime felizmente
o pensamento católico.
“O Céu, disse ele, é um admirável e angélico templo, que tem
por confins só o amor e a luz. E uma luz pura, luz intelectual carregada de amor,
amor do verdadeiro bem, cheio de alegria que excede toda a suavidade.
O estado da bem-aventurança funda-se sobre a ação de ver,
seguindo-se-lhe a de amar, e tanto que a alegria dos bem-aventurados, como a
dos anjos, é maior ou menor segundo a sua vista se fixa mais ou menos na
verdade, onde se repousa toda a inteligência”[1].
Eis aqui, pois, o princípio de solução para as objeções: no
Céu, que é mais um estado do que um lugar, tudo é luz, tudo é amor.
Por esta luz, os escolhidos que gozam da visão de Deus,
conhecem, com os prodígios da natureza e da graça, tudo o que se refere ao
estado próprio de cada um.
Assim, os pontífices vêem o que diz respeito ao governo da
sua Igreja, e os reis o que concerne ao seu reino. Deve crer-se, pois, que
gozam da bem-aventurança, que o seu estado é perfeito pela reunião de todos os
bens, [2]
sê-lo-ia sem este conhecimento?
Deve também crer-se que vêem a Deus face a face: por que
motivo não verão também o que lhes diz respeito, neste espelho da Divindade,
sempre patente a seus olhos e fiel em tudo refletir?
Os bem-aventurados têm uma ciência infusa e atual, que lhes
vem por via de revelação ou iluminação, seja da parte de Deus, seja da parte
dos anjos ou dos santos mais elevados em glória.
Têm também uma ciência natural e adquirida, que obtiveram
durante a sua vida mortal, seja pelo trabalho, seja pela experiência, e que
conservam no Céu.
Perderiam, pois, na habitação da felicidade, o gozo de todos
os seus conhecimentos adquiridos que pode aumentar mais a sua ventura, o
conhecimento dos parentes e dos amigos que tiveram na terra?
Eles não ignoram as necessidades nem as orações de seus
parentes que ficaram neste mundo.
Depois da morte de S. Bernardo, um abade de Claraval
consolava os seus religiosos dizendo-lhes: “Quanto mais no Céu do que na Terra,
nosso Pai vê, sente e conhece tudo o que nos toca! A sua espiritual paternidade
não se dissolveu com o corpo, ele nada ignora das necessidades de seus filhos,
e ouve-nos do fundo de seu túmulo”[3].
O mesmo Deus que é a suma verdade, ilumina e penetra os
santos, anima-os e inflama-os com o seu amor.
Eles são também caridade com Ele, amam-nos como Ele,
lembram-se de nós, ocupam-se de nós; e esta misericordiosa solicitude – diz
Augusto Nicolas – concilia-se tanto
neles como n’Ele, com a suprema felicidade. Que digo eu? É esta mesma felicidade
que, inebriando-os de suas delícias, os inebria também, de alguma sorte, da
necessidade de comunicá-la, porque é ela a felicidade de amor, que só se enche
para se derramar [4].
Eles governam-nos, dirigem-nos e intercedem por nós. S.
Gregório Nazianzeno, concluindo o elogio de S. Cipriano, exclamou:
“Ó vós, do alto do Céu, olhai-nos com bondade, guiai nossos
discursos e nossa vida, apascentai este virtuoso rebanho e auxiliai o seu
pastor”[5].
No segundo livro dos Macabeus (XV, 12-16), vemos Onias e
Jeremias, já mortos, interessarem-se pela sorte dos judeus, orarem pela sua
liberdade e entregarem a Judas a espada que devia assegurar-lhe a vitória.
No Apocalipse (V, 8; VI, 10) vemos os bem-aventurados
oferecerem ao Senhor as orações que se elevam da terra, como perfumes, e
queixarem-se de seus perseguidores estarem ainda impunes. Por que, pois, seriam
os únicos a não serem reconhecidos, aqueles que foram na terra seus protetores
ou seus protegidos, e que lhes fazem agora companhia na glória? Por que esta
exceção inteiramente semelhante a um castigo? Por que esta pobreza do coração,
que seria assim privado de todas as santas afeições, a que deve talvez a sua
entrada na pátria da caridade, ou pelo menos um grau mais elevado no reino da
pura luz e do verdadeiro perfeito amor?
O Cristão não tem necessidade de passar o rio do esquecimento
para chegar ao eterno repouso.
O santo nunca perde a memória do menor de seus triunfos, nem
o mais obscuro dos seus merecimentos.
A nossa mão esquerda, que não sabe na terra o bem que faz a
direita (Math. VI, 3), sabê-lo-á um dia no Céu, e se regozijará por isso
eternamente.
Neste mundo, morremos em nós mesmos, por um esquecimento que
cada vez se torna maior; mas no Céu, ressuscitaremos em nós mesmos pela mais
completa lembrança: Todo o bem que tivermos feito, reviverá em nossa memória
com uma fresquidão e vivacidade de sentimentos, que nunca houvéramos conhecido.
Conservaremos a lembrança das nossas provas interiores e espirituais;
recordar-nos-emos das nossas dores físicas e de todos os nossos trabalhos.
Como nos será doce então repassar, pela imaginação, todas
estas rugas do tempo, onde as lágrimas dos nossos olhos e os suores dos nossos membros
caírem, como orvalho fecundo, para enriquecer a colheita dos nossos eternos
merecimentos!
Mas como! Os felizes habitantes do Paraíso, em suas íntimas
conversações, nunca falariam do seu passado, deixariam ignorar a grandeza e
multiplicidade dos seus combates neste mundo, e não revelariam entre si uma
única circunstância que lhes fizesse conhecer que foram contemporâneos, vizinhos,
parentes ou amigos?! É impossível.
[2]
Boécio, De Consolatione, lib. III,
prosa II.
[3] Gautridus, Sermo in anniversario obitus sancti Bernardi, nos. 4 et
15.
[4] Augusto Nicolas, La Vierge Marie vivant dans l’Eglise, lib. I,
cap. IV, § 3, n.o
4.
[5] S.
Gregório Nazianzeno, Oratio XXIV, no.
19.