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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
I V
Porque Deus só basta aos
escolhidos, seguir-se-á que terão a Deus unicamente? – A sua liberalidade em
todas as ordens conhecidas prova qual seja a mesma na ordem da glória. – É
falso que nos esqueçamos no Céu ou que sejamos insensíveis à felicidade de nos
tornarmos a ver. – Palavras de S. Francisco de Sales sobre este mútuo reconhecimento
e sobre a alegria que dele resulta.
Disseram-vos ainda:
“Só Deus é suficiente aos
escolhidos!
Sem dúvida, deixando-se ver e
possuir por nós, só Deus seria bastante para nos tornar a todos felizes. Mas
que se pode concluir daqui?
Se bastava a si mesmo desde
toda a eternidade, direis vós que nada criou no tempo e que nós não existimos?
O menor sofrimento do Redentor bastava para nos salvar a todos: negareis Sua
Paixão e Sua Morte?
A Sua Divindade é suficiente a
si mesma: credes que ela não tenha cuidado algum da Sua humanidade?
Descei desta ordem toda divina
até à ordem da graça e da mesma natureza, e contai todos os socorros que nos
são oferecidos para santificar nossas almas, todas as iguarias que nos são
dadas para nutrir nosso corpo, contai todas as flores que ornam a terra e todos
os astros que brilham no firmamento, e dizei se o Senhor se contentou de criar
para nós o suficiente, ou se passou muito além dele.
E querer-se-ia que na ordem da
glória, quando houver de recompensar os Seus fiéis servos, os Seus apóstolos,
os Seus mártires, os Seus pontífices, os Seus confessores e as Suas virgens, se
limitasse a dar-lhes estritamente o necessário!
Não, não. Deus mostrar-se-á
ainda mais generoso e mais pródigo para com os santos do Céu do que para com os
justos da terra.
Vemos e sabemos o que fez para
nós na ordem da natureza e da graça; mas o grande Apóstolo nos afirma que os
nossos ouvidos nada ouviram, e que o nosso coração nada conjeturou que seja
comparável ao que Deus prepara, na ordem da glória, àqueles que O amam (1 Cor.,
II, 9).
Pela graça possuímos a Deus
neste mundo, e será verdade que aquele que tem a graça não necessita de mais
coisa alguma?
É certo, pelo contrário, que
tem ainda necessidade de exortações e de bons exemplos, da intercessão dos
santos, da participação dos sacramentos, de mortificações e de orações para
conservar e aumentar esta graça.
Assim, no outro mundo, sem que
isto seja então para nós uma necessidade, mas porque desejará encher-nos
inteiramente de seus dons, o mesmo Deus, que só por si bastaria para a nossa
felicidade essencial, se dignará aumentá-la acidentalmente pela sociedade das
santas almas que tivermos conhecido e ternamente amado na terra.
E do mesmo modo que, em tudo o
que nos dá segundo a natureza ou segundo a graça, é Ele que se nos comunica por
diferentes maneiras e em muitos graus; assim, também na bem-aventurança será
ainda Ele, sempre Ele, que se dará a nós por meio de todas as criaturas
glorificadas, as quais nos permitirá contemplar e admirar, reconhecer e amar.
Não temais, Senhora, que as
almas se esqueçam mutuamente no Céu, ou que sejam insensíveis a tudo que não
for Deus.
A caridade nunca pode ser
indiferente nem insensível. Por isso mesmo que as ama, o Criador é sensível a
tudo o que diz respeito às suas criaturas.
Nosso Senhor é sensível à presença
de sua Mãe, e Maria não é indiferente à glória da humanidade de Jesus.
Se nós devêssemos ser
insensíveis à felicidade de tornarmos a encontrar no Paraíso as pessoas mais
queridas, a nossa alma devia ser indiferente à ressurreição do seu próprio corpo:
e assim caducariam muitos argumentos empregados pelos teólogos para provarem a
ressurreição da carne.
No Céu seremos capazes de tudo
conhecer ao mesmo tempo, com amor, e de tudo sentir com alegria, sem que um
conhecimento ou um sentimento seja nocivo a outro.
Sentiremos tão vivamente como
na terra o amor para com nossos parentes e nossos amigos, ainda que o nosso
amor para com Deus seja então incomparavelmente mais ardente e mais sentido.
Nunca estaremos absorvidos em
Deus a tal ponto que nos esqueçamos de tudo que não for Ele. Mas, como se tem
dito, os amigos, os irmãos, os parentes, se reconhecerão, conversarão e se
lembrarão de suas lágrimas, de seus combates e de suas tribulações; porque esta
vida momentânea lega à vida infinita uma eterna lembrança e infindas gratulações.
A vista e o pensamento das
criaturas não farão um só momento olvidar o Criador; a vista e o amor do
Criador não impedirão de ver e de amar as criaturas. Unidas e distintas, todas
estas alegrias, todos estes louvores e todos estes amores se fundirão no louvor
e amor de Deus, e formarão em Sua glória um concerto único, sempre variado,
sempre o mesmo, o aleluia eterno[1].”
Deixai, Senhora, deixai nutrir
vosso coração desta doce esperança, e permiti-me que acrescente a esta ainda mais
algumas linhas que vos tranqüilizarão. São estas de S. Francisco de Sales,
explicando a transformação de Jesus Cristo sobre o Tabor, que foi como uma
reprodução do Céu (Math. XVIII, 1-9): “Todos os bem-aventurados se
conhecerão mutuamente por seus nomes, como nos afirma o Evangelho de hoje. Pedro
viu ainda Moisés e Elias que nunca tinha visto, os quais conheceu
perfeitamente, tendo o primeiro um corpo transparente como o ar, e o segundo
seu próprio corpo como quando foi arrebatado num carro de fogo.
Vedes, pois, muito bem que
todos nos reconheceremos mutuamente na eterna felicidade, visto que nesta
pequena amostra que Nosso Senhor se dignou apresentar sobre a montanha do Tabor
a Seus apóstolos, quis que estes conhecessem Moisés e Elias que nunca tinham
visto.
À vista disto, que
contentamento o nosso, vendo aqueles que tivermos extremosamente amado nesta
vida! Sim, conheceremos mesmo os novos cristãos, que se converterem agora à
nossa santa fé, nas Índias, no Japão e nos antípodas; as santas amizades, da
mesma forma que tiverem sido começadas por Deus nesta vida, continuarão na
eterna. Amaremos pessoas particulares, mas estas amizades não formarão parcialidades,
porque todas as nossas amizades tomarão a sua origem no amor de Deus, que, conduzindo-as
todas, fará que amemos a cada um dos bem-aventurados com o puro amor com que
somos amados por sua divina Bondade.
Ó Deus! que consolações
receberemos na celeste conversação que tivermos uns com outros!
Na bem-aventurança, os nossos
bons anjos nos darão uma consolação muito maior do que se pode dizer ou ainda
imaginar, quando se nos fizerem reconhecer e nos representarem mui amorosamente
o cuidado que tiveram da nossa salvação enquanto estivemos na terra,
lembrando-nos as santas inspirações que nos ofereceram como um leite sagrado
que iam tirar dos peitos da divina Bondade para nos atrair à indagação dessas
divinas suavidades, de que então estivermos gozando. Não vos recordais, nos
dirão, duma tal inspiração que vos sugeri em tal tempo, lendo um tal livro,
ouvindo um tal sermão ou fitando tal imagem, inspiração que vos incitou a
converter-vos a Nosso Senhor, e que foi o motivo da vossa predestinação?
Ó meu Deus! e não se
derreterão nossos corações num indizível contentamento?!”[2]
[1] Guiton, L’homme releve de as chute, II partie, épilogue, pág. 364, 365.
[2]
Sermão sobre a Transfig., na 2.ª Dom. da Quaresma.