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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
IV
No Céu, os bem-aventurados não se afligem
pela condenação de pessoa alguma. – Não têm já afeição alguma por um condenado.
– Ele não conserva um só elemento de amabilidade. – A vontade dos
bem-aventurados é inteiramente conforme à de Deus, mesmo para a reprovação dum
amigo, como diz Santa Catarina de Sena, Honório e os teólogos.
O Céu é amor e luz; não
digais, pois: –Imensa será a aflição dum santo ao lembrar-se do parente ou do
amigo que jamais irá reunir-se-lhe.
Das sublimidades da glória
descobre-se melhor o horror e a justiça de sua condenação.
Sol do mundo moral, Deus é o
centro cuja atração livremente sujeita mantém nossa alma na órbita da salvação,
apesar das paixões que sempre nos impelem a afastar-nos dela.
Das eternas colinas, os santos
seguem atentamente as vicissitudes desta luta, cujos resultados devem ocasionar
às pessoas que lhes são queridas, o Céu ou o Inferno. Vêem, desde há muito
tempo, a divina atração, que é a mesma força da misericórdia, obrar sobre o pecador
e vencer resistências insensatas ou culpadas.
Mas, enfim, vêem este pródigo
obstinado, este homem que segunda vez crucifica a Jesus Cristo, ceder
voluntariamente às seduções do pecado e ao ímpeto das paixões, e sair
inteiramente da órbita da salvação. Como um astro extinto ou quebrado, projetado
no espaço, corre veloz, afastando-se cada vez mais do seu centro, e chega assim,
pela condenação, a uma infinita distância de Deus.
Ora, a afeição dos
bem-aventurados, por qualquer pessoa, enfraquece e diminui em proporção da
distância em que esta se achar do soberano bem; e como é infinita a distância
que medeia entre Deus e o condenado, nenhuma afeição pode haver por este.
O afeto que lhe consagravam na
terra, não era mais do que uma irradiação dos atrativos divinos. Esta afetuosa
inclinação será destruída pela reprovação divina, e o raio que os iluminava e
atraía voltará para Deus da mesma forma que, no mundo material, quando uma
nuvem se mete de permeio entre o sol e um corpo, o raio que iluminava este
corpo desaparece no mesmo instante, e volta para o astro donde saíra.
Rompida assim a cadeia do afeto,
esta criatura, que outrora nos era tão querida, deixou inteiramente de o ser.
Só veremos nela uma estranha, uma inimiga, a inimiga do nosso Deus, do nosso
Pai, do nosso bem supremo. Não teremos a fazer esforço nem violência para nos
desligar dela. Proferida a sentença de reprovação pelo supremo Juiz, o afeto
que nutríamos pela pessoa condenada, desaparecerá de nosso coração como por
encanto. Porque entre nós e ela não havia atrativo necessário, assim como não
há qualidade alguma de atração entre dois fragmentos de ferro antes de um deles
ser tocado pelo ímã, ou depois de ter perdido esta propriedade emprestada.
Não podemos, é verdade,
eximir-nos de um imenso desgosto na vida presente, lembrando-nos desta
separação.
Mas aqui é só a sensibilidade
que raciocina e se entristece; a fé não entra nisto: não é mesmo propriamente a
sensibilidade, que é um dom de Deus e tem uma razão de ser. Pelo contrário,
esta perseverança na afeição por criaturas que já não têm elemento algum de
amabilidade, é um contra-senso e uma espécie de aberração: é a ilusão da sensibilidade.
As recordações das nossas antigas e verdadeiras afeições fixam-se em nós e
molestam-nos, como as impressões dum sonho, quando se está meio acordado,
apesar mesmo duma suficiente luz para nos demonstrar a sua frivolidade.
A nossa sensibilidade em relação
a estas afeições está atualmente neste estado que tem uma espécie de meio entre
o sonho e a vigília; mas apenas soe o eterno despertar, veremos claramente que
tudo eram fantasmas, e a nossa sensibilidade não se preocupará mais delas.[1]
Esta objeção é, algumas vezes,
apresentada e sustentada por pessoas que se consolam muito facilmente com a
indiferença prática ou triste fim de seus parentes, e que pouco fazem por
convertê-los neste mundo, ou socorrê-los no outro. Mas, será possível
porventura que no Céu amemos pessoas condenadas a eternas penas mais do que a
nós mesmos? Todavia cada um de nós saberá quais foram as suas próprias faltas,
verá os graus de glória que estas lhe fizeram perder, e nem por isso seremos
infelizes, nem mesmo nos entristeceremos. Será possível que os amemos ainda
mais do que os amaram Deus e Jesus Cristo? Contudo a felicidade de Deus não é
perturbada pela sua condenação, e Jesus Cristo não se aflige com a perda de Judas.
Finalmente, como só amam o que
Ele ama, os bem-aventurados querem unicamente o que o Senhor quer. Assim dizia Ele a uma grande santa:
“Os habitantes do Céu têm os
seus desejos inteiramente completos, e nunca estão comigo em desacordo. O seu
livre arbítrio está de tal sorte ligado pela caridade, que eles só podem querer
o que Eu quiser. A sua vontade está tão conforme e unida à minha que os pais
que vêem seus filhos no Inferno, ou filhos que vêem seus pais condenados, não
se afligem por isso; regozijam-se até de vê-los punidos pela minha justiça, visto
que estes filhos ou estes pais se obstinaram em ser meus inimigos”[2].
Honório exprime por outros
termos, e com não menos energia, o meu pensamento:
“Os bem-aventurados não se
afligirão à vista dos condenados e de seus tormentos. Quando mesmo o pai vir
seu filho no meio dos suplícios, o filho a seu pai, a filha a sua mãe ou esta
àquela, não só se não entristecerão, mas ainda se deleitarão à vista deste
espetáculo, como nos acontece quando vemos os peixes brincarem num pego. Não
está escrito (Ps. LVII, 11): ‘O justo se alegrará quando vir tirar vingança dos
pecadores?’”[3].
Neste mundo, segundo o parecer
do Cardeal Caetano, um pai cristão, um bom pai, não seria feliz se soubesse que
seu filho estava condenado às penas eternas; mas, no Céu é ainda feliz na mesma
hipótese, ainda que se possa dizer que, em certo sentido, tem pesar desta
condenação[4].
E por que será ele feliz?
Porque uma grande parte da nossa eterna felicidade, segundo Vasquez, consistirá
na inteira conformidade da nossa vontade com a divina.
Efetivamente, na eterna glória,
a nossa vontade e a vontade divina estarão tão perfeitamente de acordo, como
estão os olhos do mesmo rosto, um dos quais não pode olhar para um objeto sem
que o outro o siga.
Veremos, pois, todas as coisas
como Deus as vê: assim como cada um de nossos olhos encontra no mesmo objeto a
mesma aparência[5].
Mas, Senhora, ouço-vos
repetir-me o que me dissestes por tantas vezes: –Como nos consolaremos neste
mundo depois da desgraçada morte duma pessoa querida que se viu expirar sem
alguma aparência de reconciliação com Deus?
Ainda que esta proposta se
afaste um pouco do meu objeto, não quero deixá-la sem resposta. Vou, pois,
acrescentar algumas páginas a esta carta para vos dizer: Consolai-vos, orando.
Previstas por Deus, vossas atuais
orações talvez obtivessem, antes da morte, a secreta conversão do pecador cuja
perda chorais.
[1] Marc, Lê Ciel ,
appendice, III question, note.
[2] Sainte Catherine de Sienne, Le Dialogue, chap. XLI.
[3]
Honorius d’Autun, Elucidarium, lib.
III, no. 5
[4] Cajetan, Comment. In S. Thom., III, p. 9, 46, art. VII, ed.
Rome 1773, t. VIII, p. 16.
[5] Vasquez, in Summ., 1ª., 2ª., q. 19, Disput. 72, cap. V. – Cf. Eadmer, De sancti Anselmi similitudinibus, cap. LXIII.