terça-feira, 31 de dezembro de 2013

NO CÉU NOS RECONHECEREMOS - Terceira carta / Parte IV

Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI

NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS

Pelo

Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa

pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha


IV 

No Céu, os bem-aventurados não se afligem pela condenação de pessoa alguma. – Não têm já afeição alguma por um condenado. – Ele não conserva um só elemento de amabilidade. – A vontade dos bem-aventurados é inteiramente conforme à de Deus, mesmo para a reprovação dum amigo, como diz Santa Catarina de Sena, Honório e os teólogos. 

O Céu é amor e luz; não digais, pois: –Imensa será a aflição dum santo ao lembrar-se do parente ou do amigo que jamais irá reunir-se-lhe.

Das sublimidades da glória descobre-se melhor o horror e a justiça de sua condenação.


Sol do mundo moral, Deus é o centro cuja atração livremente sujeita mantém nossa alma na órbita da salvação, apesar das paixões que sempre nos impelem a afastar-nos dela.

Das eternas colinas, os santos seguem atentamente as vicissitudes desta luta, cujos resultados devem ocasionar às pessoas que lhes são queridas, o Céu ou o Inferno. Vêem, desde há muito tempo, a divina atração, que é a mesma força da misericórdia, obrar sobre o pecador e vencer resistências insensatas ou culpadas.

Mas, enfim, vêem este pródigo obstinado, este homem que segunda vez crucifica a Jesus Cristo, ceder voluntariamente às seduções do pecado e ao ímpeto das paixões, e sair inteiramente da órbita da salvação. Como um astro extinto ou quebrado, projetado no espaço, corre veloz, afastando-se cada vez mais do seu centro, e chega assim, pela condenação, a uma infinita distância de Deus.

Ora, a afeição dos bem-aventurados, por qualquer pessoa, enfraquece e diminui em proporção da distância em que esta se achar do soberano bem; e como é infinita a distância que medeia entre Deus e o condenado, nenhuma afeição pode haver por este.

O afeto que lhe consagravam na terra, não era mais do que uma irradiação dos atrativos divinos. Esta afetuosa inclinação será destruída pela reprovação divina, e o raio que os iluminava e atraía voltará para Deus da mesma forma que, no mundo material, quando uma nuvem se mete de permeio entre o sol e um corpo, o raio que iluminava este corpo desaparece no mesmo instante, e volta para o astro donde saíra.

Rompida assim a cadeia do afeto, esta criatura, que outrora nos era tão querida, deixou inteiramente de o ser. Só veremos nela uma estranha, uma inimiga, a inimiga do nosso Deus, do nosso Pai, do nosso bem supremo. Não teremos a fazer esforço nem violência para nos desligar dela. Proferida a sentença de reprovação pelo supremo Juiz, o afeto que nutríamos pela pessoa condenada, desaparecerá de nosso coração como por encanto. Porque entre nós e ela não havia atrativo necessário, assim como não há qualidade alguma de atração entre dois fragmentos de ferro antes de um deles ser tocado pelo ímã, ou depois de ter perdido esta propriedade emprestada.

Não podemos, é verdade, eximir-nos de um imenso desgosto na vida presente, lembrando-nos desta separação.

Mas aqui é só a sensibilidade que raciocina e se entristece; a fé não entra nisto: não é mesmo propriamente a sensibilidade, que é um dom de Deus e tem uma razão de ser. Pelo contrário, esta perseverança na afeição por criaturas que já não têm elemento algum de amabilidade, é um contra-senso e uma espécie de aberração: é a ilusão da sensibilidade. As recordações das nossas antigas e verdadeiras afeições fixam-se em nós e molestam-nos, como as impressões dum sonho, quando se está meio acordado, apesar mesmo duma suficiente luz para nos demonstrar a sua frivolidade.

A nossa sensibilidade em relação a estas afeições está atualmente neste estado que tem uma espécie de meio entre o sonho e a vigília; mas apenas soe o eterno despertar, veremos claramente que tudo eram fantasmas, e a nossa sensibilidade não se preocupará mais delas.[1]

Esta objeção é, algumas vezes, apresentada e sustentada por pessoas que se consolam muito facilmente com a indiferença prática ou triste fim de seus parentes, e que pouco fazem por convertê-los neste mundo, ou socorrê-los no outro. Mas, será possível porventura que no Céu amemos pessoas condenadas a eternas penas mais do que a nós mesmos? Todavia cada um de nós saberá quais foram as suas próprias faltas, verá os graus de glória que estas lhe fizeram perder, e nem por isso seremos infelizes, nem mesmo nos entristeceremos. Será possível que os amemos ainda mais do que os amaram Deus e Jesus Cristo? Contudo a felicidade de Deus não é perturbada pela sua condenação, e Jesus Cristo não se aflige com a perda de Judas.

Finalmente, como só amam o que Ele ama, os bem-aventurados querem unicamente o que o Senhor quer. Assim dizia Ele a uma grande santa:

“Os habitantes do Céu têm os seus desejos inteiramente completos, e nunca estão comigo em desacordo. O seu livre arbítrio está de tal sorte ligado pela caridade, que eles só podem querer o que Eu quiser. A sua vontade está tão conforme e unida à minha que os pais que vêem seus filhos no Inferno, ou filhos que vêem seus pais condenados, não se afligem por isso; regozijam-se até de vê-los punidos pela minha justiça, visto que estes filhos ou estes pais se obstinaram em ser meus inimigos”[2].

Honório exprime por outros termos, e com não menos energia, o meu pensamento:

“Os bem-aventurados não se afligirão à vista dos condenados e de seus tormentos. Quando mesmo o pai vir seu filho no meio dos suplícios, o filho a seu pai, a filha a sua mãe ou esta àquela, não só se não entristecerão, mas ainda se deleitarão à vista deste espetáculo, como nos acontece quando vemos os peixes brincarem num pego. Não está escrito (Ps. LVII, 11): ‘O justo se alegrará quando vir tirar vingança dos pecadores?’”[3].

Neste mundo, segundo o parecer do Cardeal Caetano, um pai cristão, um bom pai, não seria feliz se soubesse que seu filho estava condenado às penas eternas; mas, no Céu é ainda feliz na mesma hipótese, ainda que se possa dizer que, em certo sentido, tem pesar desta condenação[4].

E por que será ele feliz? Porque uma grande parte da nossa eterna felicidade, segundo Vasquez, consistirá na inteira conformidade da nossa vontade com a divina.

Efetivamente, na eterna glória, a nossa vontade e a vontade divina estarão tão perfeitamente de acordo, como estão os olhos do mesmo rosto, um dos quais não pode olhar para um objeto sem que o outro o siga.
Veremos, pois, todas as coisas como Deus as vê: assim como cada um de nossos olhos encontra no mesmo objeto a mesma aparência[5].

Mas, Senhora, ouço-vos repetir-me o que me dissestes por tantas vezes: –Como nos consolaremos neste mundo depois da desgraçada morte duma pessoa querida que se viu expirar sem alguma aparência de reconciliação com Deus?

Ainda que esta proposta se afaste um pouco do meu objeto, não quero deixá-la sem resposta. Vou, pois, acrescentar algumas páginas a esta carta para vos dizer: Consolai-vos, orando.

Previstas por Deus, vossas atuais orações talvez obtivessem, antes da morte, a secreta conversão do pecador cuja perda chorais. 



[1] Marc, Lê Ciel, appendice, III question, note.
[2] Sainte Catherine de Sienne, Le Dialogue, chap. XLI.
[3] Honorius d’Autun, Elucidarium, lib. III, no. 5
[4] Cajetan, Comment. In S. Thom., III, p. 9, 46, art. VII, ed. Rome 1773, t. VIII, p. 16.
[5] Vasquez, in Summ., 1ª., 2ª., q. 19, Disput. 72, cap. V. – Cf. Eadmer, De sancti Anselmi similitudinibus, cap. LXIII.