NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
III
Não haverá necessidade de desviar os olhos do Criador para ver as criaturas
– O Céu não é um êxtase onde se esquecem os parentes e os amigos. – A natureza,
no que tem de bom, existirá sempre. – A graça não a repele, mesmo na terra.
O Céu é luz; não digais pois: –Encontrando-se em Deus em
toda a Sua plenitude a perfeição que nos torna amável um ser criado, poder-se-á
desviar os olhos do centro dos eternos esplendores e do oceano das perfeições
infinitas, para seguir com a vista um raio separado, um pequeno regato?
Os bem-aventurados nunca têm necessidade de desviar os olhos
do Criador para reconhecerem uma criatura. É n'Ele, é no Verbo que contemplam ao
mesmo tempo o centro luminoso e os raios, o fecundo manancial e os arroios.
“É no Verbo divino, escrevia o autor da Vida dos predestinados, que se verá a verdade claramente, e sem estes
véus que nos não deixam vê-la neste mundo em toda a sua pureza e a descoberto.
No Céu já não haverá dúvida, ou incerteza. É neste Verbo que
o predestinado verá, como num admirável espelho, este espetáculo do mundo
desenvolver-se na mais pequena circunstância de cada sucesso. Será n’Ele que
aprenderá a série dos eternos conselhos de Deus nos interesses da Sua glória.
Aí divisaremos ao mesmo tempo o presente, o pretérito e o futuro, e
marcharemos, com a graça desta luz, nos imensos caminhos da eternidade, sem nos
perdermos nem ainda nos afastarmos deles.
– Leremos aí a descrição
universal de todos os tempos, e o que se passou de mais curioso no decurso de
cada século, não só no mundo exterior, mas ainda no interior, isto é, nos
lugares mais recônditos do coração humano. Será neste livro, patente aos
escolhidos, que se terá o prazer de estudar a história secreta da celeste Jerusalém,
que contém o mistério da salvação de cada predestinado, e que encerra a narração
do procedimento de Deus em relação aos homens, no admirável desejo da sua
predestinação”[1].
O Céu é amor; não digais
portanto: –Não há necessidade de amigos. Os santos no êxtase esquecem até os
seus parentes, e além disso a maior parte das nossas afeições têm um princípio
inteiramente natural que deixará de existir na eternidade.
Pobre filosofia, que
circunscreve os sentimentos do coração nos limites da utilidade presente, e não
compreende que o principal bem da amizade é o mesmo amor ou a correspondência
estabelecida entre duas pessoas sinceramente unidas entre si! Quantos sábios
monarcas se têm crido mais felizes por terem um amigo do que por terem um
reino!
Não nego que os santos, em
certos momentos de consolação espiritual, sobretudo no êxtase ou arrebatamento,
tenham banido toda a lembrança de seus parentes e ainda das pessoas mais
virtuosas; não nego que tenham perdido todo o sentimento exceto o de Deus. Mas
estavam na terra e em provação; cumpriam penosamente a primeira palavra do
Mestre: “Deixai casa e campos, irmão e irmã, pai e mãe, mulher e filhos”, e não
viam ainda cumprir-se a segunda: “Recebereis o cêntuplo e possuireis a vida
eterna” (Math., XIX, 29).
O Céu não é um êxtase, nem um
estado violento e transitório; é a cidade permanente, onde não há mortificação
nem sacrifícios a fazer para subir mais alto, mas onde se encontra em Deus o
que se deixou por Deus. É o termo da viagem e dos combates, onde se repousa na
posse tranqüila de uma eterna recompensa.
No Céu, o Senhor prodigaliza a
todos, luzes que recusa na terra a Seus maiores servos; e dá à caridade para
com o próximo uma liberdade de expansão que a prudência cristã ou religiosa
deve, muitas vezes, restringir neste mundo.
A natureza, no que tem de bom,
existirá sempre. Será no Céu para a glória o que é na terra para a graça, o
apoio necessário.
A natureza é uma árvore
silvestre, mas a graça é-lhe engastada como um enxerto divino. Este enxerto dá
primeiramente flores, pintadas com as cores de Jesus Cristo, que exalam no
tempo a sua ótima fragrância. Produz em seguida frutos de salvação que serão a
glória dos bem-aventurados na eternidade.
Toda esta árvore com o seu
fruto será transplantada no Céu. Teremos aqui mesmo, com todas as faculdades da
nossa alma, todos os sentidos do nosso corpo sem defeito algum. Aquele que
morrer ainda criança ressuscitará homem feito.
Ouviram-se os vossos gemidos
quando a morte arrebatou do berço uma de vossas filhas; sentir-se-ão vossas
alegrias e cânticos ao Senhor, quando tornardes a encontrar junto do mesmo
Deus, sobre um trono, esta filha querida, chegada de improviso a uma permanente
madureza, eternamente bela, eternamente jovem!
Chamando-a para si, Deus
encarregou-se de a criar, e Ele mesmo cuidou da sua educação. Ora, não receeis
que Ele não vos deixasse lugar em seu coração. Na terra, ela não pôde
conhecer-vos nem amar-vos; mas no Céu, por causa destas relações de origem que
são naturais, Deus lhe fará conhecer sua mãe, e lhe dará a piedade filial como
virtude sobrenatural.
Mesmo na terra, como já se
disse, a graça não repele a natureza; pelo contrário, estende-lhe a mão,
torna-se seu guia e seu apoio. Algumas vezes mesmo leva a condescendência até
ao ponto de deixá-la marchar diante de si, vigiando sobre os seus movimentos
com uma doce solicitude maternal, tendo sempre a mão levantada para regular os
seus passos e prevenir suas quedas.
O autor da graça, não contente
com amar sobrenaturalmente sua divina Mãe, amou-a também naturalmente, e não se
dedignou de ser por ela amado. E quando verteu lágrimas sobre o túmulo de
Lázaro, seu amigo, foi a natureza que as deixou cair.
“A graça e a natureza são,
ambas, filhas do Céu; mas uma pode ser considerada como filha da esposa, a
outra como filha da escrava. A primeira será herdeira do pai de família, por
direito de nascimento; a segunda será admitida a uma parte da herança, pelo
privilégio duma benévola e gratuita adoção. Aquela será a rainha, esta a favorita
da mesma rainha”[2].
[1] P. Rapin, La Vie des prédestinés dans la bienheurese
éternité, cap. V
[2] Marc, Le
Ciel, appendice, III question.