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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
I I I
Será verdade que os santos só amam a Deus? – Eles amam-se entre si como
concidadãos, como irmãos, como dois amigos que vêem todas as perfeições um do
outro. – Deus só é cioso do nosso amor de adoração. – O amor recíproco dos
santos glorifica-o como Criador, como Pai, como princípio de toda a amabilidade.
Disseram-vos que os santos
amariam só a Deus.
Ouvi a resposta do abade
Marcos no seu belo livro sobre a felicidade dos santos:
“A pátria celeste é-nos
incessantemente apresentada no Evangelho sob o símbolo dum reino, duma
sociedade, duma família. Mas uma sociedade, um Estado, uma família não é
simplesmente uma aglomeração de individualidades estranhas umas às outras; mas
sim uma reunião de seres inteligentes e racionais, obedecendo a leis comuns e
obrigatórias para todos, que fazem um só e mesmo corpo da harmônica união
destes diversos membros.
Ora, entre todas estas leis,
há uma que é salvaguarda, e como que o laço de todas as outras; é a lei da
solidariedade social ou fraternal, que ordena a todos se dediquem por cada um,
e que cada um se dedique por todos, à proporção das forças e necessidades de
cada membro. É, por outros termos, a lei da mútua caridade, a lei do amor.
No Céu nos amaremos como se
amam os filhos dum mesmo pai, como irmãos queridos e ternas irmãs; amar-nos-emos,
como se amam dois amigos que só se conhecem desde ontem, e cujos corações,
apenas se encontraram, se compreenderam e encadearam um no outro, por uma
simpatia que sentem ser indestrutível e eterna.
Desde o momento em que nossas
almas tiverem penetrado no seio de Deus, encontrar-se-ão abrasadas duma
fervente caridade de umas para com as outras. A sua vista e recíproca presença
serão como que uma faísca que operará este abrasamento, assim como na natureza
física se vê muitas vezes um corpo inflamar outro corpo, somente pelo efeito do
choque ou simples contato.
Eis como se pode, até um certo
ponto, explicar este fenômeno.
Estas almas, iluminadas da
plenitude da luz de Deus, a qual porá a descoberto todas as Suas perfeições, e
envolvidas no reflexo de Sua glória como num esplêndido vestido (Ps. CIII, 2);
apresentarão os atrativos do coração, como num maravilhoso feixe, o conjunto de
todas as Suas amabilidades; pela sua parte, este coração, livre desde este
momento de todas as suas fraquezas, de suas ilusões e de suas trevas, este
coração, faminto de amor e restabelecido na sua integridade afetiva, será
levado por um irresistível atrativo para o seu natural alimento e único depois
de Deus, isto é, para as almas feitas para serem amadas por Ele.
É verdade que Deus é cioso do
nosso coração, mas somente no sentido de que não devemos amar alguma criatura
tanto ou mais do que a Ele. Se assim não fora, como nos ordenaria, sem se
contradizer, que amássemos o nosso próximo como a nós mesmos?
Além disto, segundo o
contexto, o sentido próprio destas palavras da Escritura, é que o Criador é
cioso do amor de adoração: Não adoreis Deus alheio; o Senhor chama-Se o Deus
cioso (Exod., XXXIV, 14).
Mas vai grande distância do
amor que nos faria amar certas pessoas até à adoração, ao amor que no-las faz
amar conforme a vontade do Criador. Tanto falta para que o mútuo amor dos
escolhidos possa ser uma injustiça ou um roubo feito a Deus, que será Ele,
depois da pura caridade, a mais preciosa e querida homenagem que Lhe possamos
render, como Criador, como Pai e como princípio de todo o amor e de toda a
amabilidade.
Tendo criado todas as coisas
para nós, se as fez maravilhosamente belas (Eccles., XI, 4), foi para que as
admirássemos; se as fez excelentemente boas (Idem, XXXIX, 21), foi para Lhe
pedirmos o bem que encerram; se as fez desejáveis (Ibidem, XLII, 23), foi para
que lhe concedêssemos ao menos uma pequena parte do nosso coração.
Além disto, nenhum ser inteligente,
seja Deus ou seja homem, pode racionalmente deixar de ser cioso da obra que
criou. Pois, do contrário, seria melhor ter produzido uma obra vil e
desprezível, ou então não ter produzido nenhuma.
Todos nós somos filhos de
Deus, e Ele mesmo quis que O chamássemos nosso Pai (Matth., VI, 9). Mas a
condição da paternidade no Céu será a mesma que na terra, exceto que possuirá,
no mais alto grau de perfeição, os caracteres que a distinguem neste mundo.
Ora, qual é nesta vida a paternidade modelo? Por que sinal reconheceremos nós
que uma paternidade é verdadeiramente feliz?
Feliz paternidade, é o estado
dum pai cercado de numerosos filhos que rivalizam em cuidados e ternura para
com ele. Mas isto apenas seria metade da sua felicidade, ou antes toda a sua
felicidade se encontraria envenenada e destruída, se não reinasse uma
verdadeira união entre todos os seus filhos.
Toda a afeição legítima, isto
é, ordenada ou autorizada pela lei eterna, vem de Deus.
A caridade que testemunhamos
às criaturas, é como um rio que tem a sua origem em Deus, que ordena ou permite
que vamos matar a sede que temos n’Ele, em objetos distintos do mesmo.
O rio, continuando sempre o
seu curso, volta outra vez para a sua nascente, onde chega sem alteração.
Todas as belezas que divisamos
nas criaturas, e que nos atraem tão vivamente para si, não são outra coisa mais
do que o reflexo da eterna e divina beleza, do seio da qual se desprendem,
assim como vemos soltar ondas luminosas do disco solar, que vêm alegrar e
vivificar a natureza.
Mas como é sempre o Sol que
admiramos mesmo em seus raios e reflexos, é igualmente a Deus que admiramos e
amamos de longe, nos esplendores e encantos que derrama sobre Suas criaturas.
Poderia Ele, pois, olhar como
um atentado contra os Seus direitos ou à Sua glória, o atrativo que nos impele
para as belezas e perfeições que de si mesmo derrama sobre Suas obras?
Se os Seus encantos e
amabilidades não são mais do que uma irradiação da amabilidade e dos atrativos
divinos, já vemos como a beleza incriada não eclipsará as belezas criadas, e
como se dará no Céu o amor mútuo dos escolhidos sem risco nem perigo.
Na terra, o imortal raio só
nos aparecia por um único ponto, aquele por onde tocava e iluminava a criatura.
No Céu, vê-lo-emos descer do seu centro e tornar a voltar ao mesmo.
Será a Deus que procuraremos e
a que aspiraremos, dirigindo-nos para as criaturas; Deus a quem admiraremos,
admirando-as, Deus a quem acharemos, amando-as”[1].
[1] Marc, Le
Ciel, apêndice sur l’amour béatifique, chap., I, II ; IV question.