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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
SEGUNDA CARTA
No Céu todos se conhecem
I
Provas da Sagrada Escritura: a parábola do
rico avarento, explicada por Santo Irineu, e sobretudo por S. Gregório Magno. –
Fato que ele cita em apoio. O
juízo final, base da argumentação de S. Teodoro Studita.
SENHORA,
Todos os bem-aventurados admitidos
no Céu conhecem-se perfeitamente, antes mesmo da ressurreição geral. Provam-no
tanto a Sagrada Escritura como a Tradição.
Limitar-me-ei a citar-vos o
Novo Testamento, tomando apenas dele a parábola do rico avarento e algumas palavras
que se referem ao juízo final.
Está parábola é tão bela que
não posso resistir ao desejo de apresentar a vossos olhos as suas passagens
principais:
Havia um homem rico que
trajava esplendidamente e se banqueteava com magnificência, todos os dias.
Havia também ao mesmo tempo um
pobre, chamado Lázaro, deitado à sua porta, todo coberto de úlceras, que
desejava ardentemente saciar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico,
mas ninguém lhas dava, e os cães vinham lamber as suas feridas.
Ora, aconteceu morrer este pobre,
e foi transportado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico morreu também e teve
por túmulo o Inferno. E quando estava em tormentos, levantou os olhos para o
Céu e viu, ao longe, Abraão e Lázaro em seu seio; e, exclamando, diz estas
palavras:
“Pai Abraão, tende piedade de
mim, e enviai-me Lázaro, a fim de que molhe na água a ponta do seu dedo para me
refrescar a língua, porque sofro horríveis tormentos nesta chama”.
Mas Abraão respondeu-lhe: “Meu
filho, lembra-te que recebeste muitos benefícios na terra, e que Lázaro só teve
por companheira a miséria e o sofrimento; e é por isso que está gozando agora
das maiores consolações, e tu estás em tormentos”.
Replicou o avarento: “Suplico-vos
então, Pai Abraão, que o envieis à casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a
fim de adverti-los, pois receio que venham também para este lugar de tormentos”.
(Luc., XVI, 19-28).
Santo Ireneu, combatendo os
hereges, escrevia no princípio do século III:
“O Senhor revelou-nos que as
almas se lembram na outra vida das ações que praticaram nesta. Não nos ensina Ele
esta verdade por meio da história do rico avarento e de Lázaro? Visto que
Abraão conhece o que diz respeito a um e outro, as almas continuam portanto a
conhecerem-se mutuamente e a recordarem-se das coisas da terra”.[1]
No fim do século IV, o Papa S.
Gregório Magno perguntava a si mesmo se os bons conheceriam os bons no reino do
Céu, e se os maus conheceriam os maus no Inferno. Sustentou a afirmativa:
“Vejo, diz ele, uma prova
disto, mais clara do que o dia, na parábola do rico avarento. Não declara aqui
o Senhor abertamente que os bons se conhecem entre si, e os maus também?
Porque, se Abraão não reconhecesse Lázaro, como falaria de suas passadas
desgraças ao rico avarento que estava no meio dos tormentos?
E como não conheceria este
mesmo avarento os seus companheiros de tormentos se tem cuidado de pedir pelos
que ainda estão na terra? Vê-se igualmente que os bons conhecem os maus e os
maus os bons. Com efeito, o avarento é conhecido por Abraão; e Lázaro, um dos
escolhidos, é reconhecido pelo avarento, que é do número dos réprobos.
Este conhecimento põe o remate
ao que cada um deve receber. Faz com que os bons gozem mais, porque se
regozijam com aqueles que amaram na terra. Faz com que os maus, por isso que
são atormentados com aqueles que amaram neste mundo até ao desprezo de Deus, sofram
não só o seu próprio castigo, mas ainda, de alguma sorte, o dos outros.
Há, mesmo para os bem-aventurados,
alguma coisa mais admirável. Além de reconhecerem aqueles que conheceram neste
mundo
- Agnoscunt quos in hoc mundo
noverante - reconhecem também, como se os houvessem visto e
conhecido, os bons que nunca viram: Velut
visos ac cognitos recognoscunt.
Que podem ignorar os bem-aventurados
no Céu, vendo em plena luz o Deus que tudo sabe?
Um dos nossos religiosos,
muito recomendável pela sua santidade, viu junto de si, por ocasião da sua
morte, os profetas Jonas, Ezequiel e Daniel, e designou-os por seus nomes.
Este exemplo faz-nos
claramente perceber quão grande será o conhecimento que teremos uns dos outros
na incorruptível vida do Céu, visto que este religioso, estando ainda revestido
da corruptibilidade, conheceu os santos profetas que nunca tinha visto”[2].
Encontramos um fato muito
semelhante na vida da fundadora das Anunciadas Celestinas, Maria Vitória
Fornari. Interrogava ela uma irmã conversa, pobre aldeã, sobre os
Bem-aventurados que a honravam com suas aparições, como a Santíssima Virgem,
Santo Onofre, Santa Catarina de Sena, etc.. Surpreendida por ver que uma
rapariga sem letras tinha um tão distinto conhecimento de tantos santos, a
bem-aventurada perguntou-lhe onde havia aprendido tudo o que sabia a este
respeito: “Minha madre, disse ela com grande simplicidade, todos os santos se
conhecem distintamente em Deus”[3].
S. Gregório Magno foi citado
por escritores eclesiásticos muito antigos: na Alemanha, no século IX, por
Haymon, Bispo de Halberstadt; na Inglaterra, no século VIII, pelo venerável
Beda; na Espanha, no século VII, por S. Julião, Bispo de Toledo. Todos
participam do seu sentimento e o afirmam sem rodeios.
S. Julião, por exemplo, antes de referir estas palavras do
grande Pontífice, diz: “As almas dos defuntos, privadas de seus corpos podem
reconhecer-se mutuamente; o Evangelista assim o atesta. Não se pode duvidar de
que as almas dos mortos se reconheçam: 'Non
est dubitandum quod se defunctorum spiritus recognoscant’.[4]
Sobre o juízo final, temos as
seguintes palavras de Jesus Cristo a Seus discípulos:
“Em verdade vos digo que,
quando chegar o tempo da regeneração, e o Filho do Homem estiver sentado no
trono da Sua glória, vós, que me tendes seguido, estareis sentados sobre doze
cadeiras e julgareis as doze tribos de Israel” (Matth., XIX, 28.).
Temos também estas palavras do
grande Apóstolo aos Coríntios:
“Não sabeis que os santos
devem um dia julgar o Mundo? Não sabeis que nós seremos os juízes dos mesmos
anjos?” (1 Corinth., VI, 2, 3).
Tal é a base da argumentação
de S. Teodoro Studita, num discurso que fez no fim do VIII século ou princípio
do IX, para refutar o erro que nos esforçamos por combater aqui.
“Alguns oradores, diz ele,
enganam os seus ouvintes, sustentando que as criaturas ressuscitadas não se
reconhecerão quando o Filho de Deus vier julgar-nos a todos.” “Como, exclamam,
quando de frágeis nos tornarmos incorruptíveis e imortais; quando já não houver
gregos, nem judeus, nem bárbaros, nem citas, nem escravos, nem homens livres,
nem esposo, nem esposa; quando formos todos semelhantes em gênios, poderíamos
reconhecer-nos mutuamente?”.
Respondemos, em primeiro
lugar, que o que é impossível aos homens é possível a Deus. Doutra sorte não
acreditaríamos na ressurreição da carne, pretextando raciocínios humanos.
E, efetivamente, como se
poderá reorganizar no último dia um corpo desfeito em podridão, devorado talvez
por animais ferozes, pelas aves ou pelos peixes, e estes devorados por outros e
isto de muitas maneiras, e sucessivamente?
Todavia, assim há de ser, e o
secreto poder de Deus reunirá todas as suas partes espalhadas e as
ressuscitará. Então, cada alma reconhecerá o corpo com que viveu.
Mas cada uma das almas
reconhecerá também o corpo do seu próximo?
Não se pode duvidar, sem que
se ponha ao mesmo tempo em dúvida o juízo universal. Porque não se pode ser
citado em juízo sem ser conhecido, e para julgar uma pessoa é preciso conhecê-la,
segundo estas palavras da Sagrada Escritura: “Convencer-vos-ei, e porei diante
de vossos olhos vossos pecados” (Ps., XLIX, 21).
O valor deste raciocínio
depende da seguinte distinção: no juízo particular, somos julgados só por Deus;
mas, no juízo universal, julgaremos de alguma sorte uns aos outros.
Entretanto, o primeiro só
manifesta a justiça à alma que é julgada, o último a manifestará a todas as
criaturas. Assim todas esperam, para o grande dia, a revelação dos filhos de
Deus (Rom., VIII; 19) que fará mudar muito as apreciações dos homens.
O Santo continua nestes
termos:
“Portanto, se nos não
reconhecermos mutuamente, não seremos julgados; se não formos julgados, não
seremos recompensados ou punidos pelo que tivermos feito e sofrido neste mundo.
Se não devem reconhecer aqueles a quem hão de julgar, verão porventura os
Apóstolos o cumprimento desta promessa do Senhor: Assentar-vos-eis sobre doze
tronos para julgardes as doze tribos de Israel?” (Matt., XIX, 28). E por estas palavras: “Onde o próprio irmão
não resgata, um estranho resgatará” (Ps. XLVIII, 8), não supõe o santo rei
David que o irmão reconhecerá seu irmão?
Muitas são as razões e
autoridades que se opõem àqueles que pretendem negar o mútuo reconhecimento das
almas no Céu; asserção insensata, asserção comparada pela impiedade às fábulas
de Orígenes. Enquanto a nós, meus irmãos, acreditemos sempre que ainda havemos
de ressuscitar, que nos tornaremos incorruptíveis, e que nos reconheceremos
mutuamente, como nossos primeiros pais se conheciam no paraíso terrestre, antes
do pecado, quando estavam ainda isentos de toda a corrupção.
Sim, é necessário crê-lo: Gredendum fore ut fratrem agnoscat frater, liberos pater, uxor maritum,
amicus amicum – o irmão reconhecerá seu irmão, o pai seus filhos, a esposa
seu esposo, o amigo seu amigo; digo mais: o religioso reconhecerá o religioso,
o confessor reconhecerá o confessor; o mártir, o seu companheiro de armas; o
apóstolo, o seu colega no apostolado; todos nos conheceremos - quo omnium in Deo laetum domicilium sit
- a fim de que a habitação de todos em Deus se torne mais agradável pelo benefício, além de tantos
outros, de nos reconhecermos mutuamente”[5].
[1]
Santo Irineu, - Contra haereses, lib. II, cap. XXXIV, no. 1.
[2] Saint Grégorie le Grand, Dialog. I, IV., cap. XXXIII et XXXIV.
[3] Collet, La vie de V. M. Victoire Fornaire, I, II, no. 9.o.
[4] S. Julião de Toledo, Prognosticon, I. II, cap. XXIV – Haymon, De Amore caelestis patriae, I. I, cap. VIII. – V. Beda, Aliquot quoestionum liber, q. XII.
[5] Saint Theodore Studite, Serm., catech., XXII. – Migne, Patrologie grecque, t. XCIX, pág. 538,
539.