segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

NO CÉU NOS RECONHECEREMOS - Segunda carta / Parte I

Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI

NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS

Pelo

Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa

pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha


SEGUNDA   CARTA

No Céu todos se conhecem

I

Provas da Sagrada Escritura: a parábola do rico avarento, explicada por Santo Irineu, e sobretudo por S. Gregório Magno. – Fato que ele cita em apoio. O juízo final, base da argumentação de S. Teodoro Studita. 

SENHORA,

Todos os bem-aventurados admitidos no Céu conhecem-se perfeitamente, antes mesmo da ressurreição geral. Provam-no tanto a Sagrada Escritura como a Tradição.

Limitar-me-ei a citar-vos o Novo Testamento, tomando apenas dele a parábola do rico avarento e algumas palavras que se referem ao juízo final.

Está parábola é tão bela que não posso resistir ao desejo de apresentar a vossos olhos as suas passagens principais:

Havia um homem rico que trajava esplendidamente e se banqueteava com magnificência, todos os dias.

Havia também ao mesmo tempo um pobre, chamado Lázaro, deitado à sua porta, todo coberto de úlceras, que desejava ardentemente saciar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava, e os cães vinham lamber as suas feridas.

Ora, aconteceu morrer este pobre, e foi transportado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico morreu também e teve por túmulo o Inferno. E quando estava em tormentos, levantou os olhos para o Céu e viu, ao longe, Abraão e Lázaro em seu seio; e, exclamando, diz estas palavras:

“Pai Abraão, tende piedade de mim, e enviai-me Lázaro, a fim de que molhe na água a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, porque sofro horríveis tormentos nesta chama”.

Mas Abraão respondeu-lhe: “Meu filho, lembra-te que recebeste muitos benefícios na terra, e que Lázaro só teve por companheira a miséria e o sofrimento; e é por isso que está gozando agora das maiores consolações, e tu estás em tormentos”.

Replicou o avarento: “Suplico-vos então, Pai Abraão, que o envieis à casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de adverti-los, pois receio que venham também para este lugar de tormentos”. (Luc., XVI, 19-28).

Santo Ireneu, combatendo os hereges, escrevia no princípio do século III:

“O Senhor revelou-nos que as almas se lembram na outra vida das ações que praticaram nesta. Não nos ensina Ele esta verdade por meio da história do rico avarento e de Lázaro? Visto que Abraão conhece o que diz respeito a um e outro, as almas continuam portanto a conhecerem-se mutuamente e a recordarem-se das coisas da terra”.[1]

No fim do século IV, o Papa S. Gregório Magno perguntava a si mesmo se os bons conheceriam os bons no reino do Céu, e se os maus conheceriam os maus no Inferno. Sustentou a afirmativa:

“Vejo, diz ele, uma prova disto, mais clara do que o dia, na parábola do rico avarento. Não declara aqui o Senhor abertamente que os bons se conhecem entre si, e os maus também? Porque, se Abraão não reconhecesse Lázaro, como falaria de suas passadas desgraças ao rico avarento que estava no meio dos tormentos?

E como não conheceria este mesmo avarento os seus companheiros de tormentos se tem cuidado de pedir pelos que ainda estão na terra? Vê-se igualmente que os bons conhecem os maus e os maus os bons. Com efeito, o avarento é conhecido por Abraão; e Lázaro, um dos escolhidos, é reconhecido pelo avarento, que é do número dos réprobos.

Este conhecimento põe o remate ao que cada um deve receber. Faz com que os bons gozem mais, porque se regozijam com aqueles que amaram na terra. Faz com que os maus, por isso que são atormentados com aqueles que amaram neste mundo até ao desprezo de Deus, sofram não só o seu próprio castigo, mas ainda, de alguma sorte, o dos outros.

Há, mesmo para os bem-aventurados, alguma coisa mais admirável. Além de reconhecerem aqueles que conheceram neste mundo - Agnoscunt quos in hoc mundo noverante - reconhecem também, como se os houvessem visto e conhecido, os bons que nunca viram:  Velut visos ac cognitos recognoscunt.

Que podem ignorar os bem-aventurados no Céu, vendo em plena luz o Deus que tudo sabe?

Um dos nossos religiosos, muito recomendável pela sua santidade, viu junto de si, por ocasião da sua morte, os profetas Jonas, Ezequiel e Daniel, e designou-os por seus nomes.

Este exemplo faz-nos claramente perceber quão grande será o conhecimento que teremos uns dos outros na incorruptível vida do Céu, visto que este religioso, estando ainda revestido da corruptibilidade, conheceu os santos profetas que nunca tinha visto”[2].

Encontramos um fato muito semelhante na vida da fundadora das Anunciadas Celestinas, Maria Vitória Fornari. Interrogava ela uma irmã conversa, pobre aldeã, sobre os Bem-aventurados que a honravam com suas aparições, como a Santíssima Virgem, Santo Onofre, Santa Catarina de Sena, etc.. Surpreendida por ver que uma rapariga sem letras tinha um tão distinto conhecimento de tantos santos, a bem-aventurada perguntou-lhe onde havia aprendido tudo o que sabia a este respeito: “Minha madre, disse ela com grande simplicidade, todos os santos se conhecem distintamente em Deus”[3].

S. Gregório Magno foi citado por escritores eclesiásticos muito antigos: na Alemanha, no século IX, por Haymon, Bispo de Halberstadt; na Inglaterra, no século VIII, pelo venerável Beda; na Espanha, no século VII, por S. Julião, Bispo de Toledo. Todos participam do seu sentimento e o afirmam sem rodeios.

S. Julião, por exemplo, antes de referir estas palavras do grande Pontífice, diz: “As almas dos defuntos, privadas de seus corpos podem reconhecer-se mutuamente; o Evangelista assim o atesta. Não se pode duvidar de que as almas dos mortos se reconheçam: 'Non est dubitandum quod se defunctorum spiritus recognoscant’.[4]

Sobre o juízo final, temos as seguintes palavras de Jesus Cristo a Seus discípulos:

“Em verdade vos digo que, quando chegar o tempo da regeneração, e o Filho do Homem estiver sentado no trono da Sua glória, vós, que me tendes seguido, estareis sentados sobre doze cadeiras e julgareis as doze tribos de Israel” (Matth., XIX, 28.).

Temos também estas palavras do grande Apóstolo aos Coríntios:

“Não sabeis que os santos devem um dia julgar o Mundo? Não sabeis que nós seremos os juízes dos mesmos anjos?” (1 Corinth., VI, 2, 3).

Tal é a base da argumentação de S. Teodoro Studita, num discurso que fez no fim do VIII século ou princípio do IX, para refutar o erro que nos esforçamos por combater aqui.

“Alguns oradores, diz ele, enganam os seus ouvintes, sustentando que as criaturas ressuscitadas não se reconhecerão quando o Filho de Deus vier julgar-nos a todos.” “Como, exclamam, quando de frágeis nos tornarmos incorruptíveis e imortais; quando já não houver gregos, nem judeus, nem bárbaros, nem citas, nem escravos, nem homens livres, nem esposo, nem esposa; quando formos todos semelhantes em gênios, poderíamos reconhecer-nos mutuamente?”.

Respondemos, em primeiro lugar, que o que é impossível aos homens é possível a Deus. Doutra sorte não acreditaríamos na ressurreição da carne, pretextando raciocínios humanos.

E, efetivamente, como se poderá reorganizar no último dia um corpo desfeito em podridão, devorado talvez por animais ferozes, pelas aves ou pelos peixes, e estes devorados por outros e isto de muitas maneiras, e sucessivamente?

Todavia, assim há de ser, e o secreto poder de Deus reunirá todas as suas partes espalhadas e as ressuscitará. Então, cada alma reconhecerá o corpo com que viveu.

Mas cada uma das almas reconhecerá também o corpo do seu próximo?

Não se pode duvidar, sem que se ponha ao mesmo tempo em dúvida o juízo universal. Porque não se pode ser citado em juízo sem ser conhecido, e para julgar uma pessoa é preciso conhecê-la, segundo estas palavras da Sagrada Escritura: “Convencer-vos-ei, e porei diante de vossos olhos vossos pecados” (Ps., XLIX, 21).

O valor deste raciocínio depende da seguinte distinção: no juízo particular, somos julgados só por Deus; mas, no juízo universal, julgaremos de alguma sorte uns aos outros.

Entretanto, o primeiro só manifesta a justiça à alma que é julgada, o último a manifestará a todas as criaturas. Assim todas esperam, para o grande dia, a revelação dos filhos de Deus (Rom., VIII; 19) que fará mudar muito as apreciações dos homens.

O Santo continua nestes termos:

“Portanto, se nos não reconhecermos mutuamente, não seremos julgados; se não formos julgados, não seremos recompensados ou punidos pelo que tivermos feito e sofrido neste mundo. Se não devem reconhecer aqueles a quem hão de julgar, verão porventura os Apóstolos o cumprimento desta promessa do Senhor: Assentar-vos-eis sobre doze tronos para julgardes as doze tribos de Israel?” (Matt., XIX, 28).   E por estas palavras: “Onde o próprio irmão não resgata, um estranho resgatará” (Ps. XLVIII, 8), não supõe o santo rei David que o irmão reconhecerá seu irmão?

Muitas são as razões e autoridades que se opõem àqueles que pretendem negar o mútuo reconhecimento das almas no Céu; asserção insensata, asserção comparada pela impiedade às fábulas de Orígenes. Enquanto a nós, meus irmãos, acreditemos sempre que ainda havemos de ressuscitar, que nos tornaremos incorruptíveis, e que nos reconheceremos mutuamente, como nossos primeiros pais se conheciam no paraíso terrestre, antes do pecado, quando estavam ainda isentos de toda a corrupção.

Sim, é necessário crê-lo: Gredendum fore ut fratrem agnoscat frater, liberos pater, uxor maritum, amicus amicum – o irmão reconhecerá seu irmão, o pai seus filhos, a esposa seu esposo, o amigo seu amigo; digo mais: o religioso reconhecerá o religioso, o confessor reconhecerá o confessor; o mártir, o seu companheiro de armas; o apóstolo, o seu colega no apostolado; todos nos conheceremos - quo omnium in Deo laetum domicilium sit - a fim de que a habitação de todos em Deus se torne mais  agradável pelo benefício, além de tantos outros, de nos reconhecermos mutuamente”[5]. 




[1] Santo Irineu, - Contra haereses, lib. II, cap. XXXIV, no.  1.
[2] Saint Grégorie le Grand, Dialog. I, IV., cap. XXXIII et XXXIV.
[3] Collet, La vie de V. M. Victoire Fornaire, I, II, no. 9.o.
[4] S. Julião de Toledo, Prognosticon, I. II, cap. XXIV – Haymon, De Amore caelestis patriae, I. I, cap. VIII. – V. Beda, Aliquot quoestionum liber, q. XII.
[5] Saint Theodore Studite, Serm., catech., XXII. – Migne, Patrologie grecque, t. XCIX, pág. 538, 539.