quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Respeito humano, parte II

Cônego Júlio Antônio dos Santos
O Crucifixo, meu livro de estudos - 1950

V - Preparação para a luta contra o respeito

1-      Estudo

Há uma grande falta de noções precisas e firmes sobre a religião. Devemos, pois, fazer um estudo pessoal, graduado, perseverante sobre Deus, Jesus Cristo e a Igreja, e sob a direção da mesma Igreja.

2-      Reflexivo

Todo o estudo deve ser acompanhado de reflexão. A reflexão, diz Rouzic, é atmosfera intelectual que permite à verdade arreigar-se em nós. Doutro modo, a verdade fica em nós à flor da alma como uma semente lançada à superfície do solo e que é levada pelo vento.

3-       Divisa

Devemos tomar uma divisa que encara, por assim dizer, a alma destas reflexões divinas, que devemos trazer muitas vezes à lembrança, sobretudo nas horas de luta; como por exemplo: Non erubesco Evangelium, eu não me envergonho do Evangelho: ou esta outra: Mihi autem pro minimo est ut a vobis judicer, não faço caso algum dos vossos juízos a meu respeito. Assim falava com altivez São Paulo diante dos gregos e dos romanos, diante da sua civi1ização e das suas divindades. “O meu Deus e a minha  consciência eis os meus únicos juízes”.

4-       Aliança

Os aliados do cristão são Deus e o próximo. Deus.
- Deus é aliado de todo o homem. Todavia, para vir a nós e nos armar com a Sua força, devemos recorrer:

1.º A oração. - A oração é o tratado de aliança que determina a assistência divina. A oração põe a força de Deus à disposição da fraqueza humana, sobretudo a oração ao Espírito Santo, o inspirador do heroísmo dos confessores e mártires. A recitação piedosa e ardente do Veni Sancte Spiritus ou do Veni Creator dá à nossa alma um banho de energia e daí sai pronta para todos os combates.

2.º A comunhão. - Pela comunhão digna, fervorosa, frequente, colocamos a força de Deus dentro de nós; e então podemos exclamar com São Paulo: Cum infirmor tunc potens sum; Omnia possum in eo qui me confortat, sou fraco e sou forte, tudo posso nAquele que me conforta.

3.º Tradições de família. - Depois de Deus temos o nosso próximo como aliado. Há homens maus ou fracos que nos provocam às ações do respeito humano. Há também homens fortes na virtude que nos encorajam ao respeito divino. Dos nossos antepassados para nós e de nós para os nossos descendentes há laços de solidariedade. A educação recebida, o exemplo dado por nossos pais são outras tantas vozes a incutir-nos coragem no cumprimento dos nossos deveres religiosos e assim como nós o seremos para os nossos vindouros.
Pertencemos a famílias católicas de quem temos recebido sublimes lições e grandes exemplos que devemos seguir e imitar para não degenerarmos.

VI - Luta contra respeito humano

1-      Defesa

Quando estamos numa conversa em que a religião, a piedade, a caridade, a pureza ou outra virtude cristã são atacadas ou metidas a ridículo ou quando nos é proposta a prática de um ato que a nossa consciência reprova, três atitudes são possíveis: o silêncio reprovador, o afastamento, a ofensiva.
A abstenção silenciosa basta às vezes para mostrar que não se pactua com o erro e para protestar contra o mal.
O afastamento, o abandono de uma má companhia, onde a lei de Deus é transgredida é também um protesto contra o mal. A liberdade de se ir embora, de se afastar, dizia Lacordaire é antes de tudo, liberdade de um homem que tem sentimentos nobres; e desgraçado daquele que a não possui, ou que se não atreve a fazer uso dela.

2-       Ofensiva

A ofensiva, a resposta, é o terceiro meio de resistir. Quando, pois, são atacadas as verdades em que nós acreditamos ou as virtudes que praticamos, o dever é, muitas vezes, reagir diretamente, ripostar. Uma resposta bem dada, anima os bons, abala os indecisos, ganha os indiferentes e lança, no espírito dos maus centelhas de luz que lhes mostram o bom caminho e que, em tempo oportuno, seguirão, porque, graças a Deus, a verdade e o bem tem os seus triunfos.
Em 1844, Montalembert dizia na Câmara dos pares: “Nós somos filhos de mártires, não temos medo dos filhos de Juliano Apóstata; somos descendentes dos cruzados, não recuamos diante dos descendentes de Voltaire.”
Os maus, muitas vezes, não falam, não operam, não triunfam senão devido à abdicação dos bons que se calam, que tem medo. Basta proclamarmos altivamente: sou cristão! Esta palavra tem vencido o mundo e vence e desarma os nossos inimigos.
Quando se quer verdadeiramente ganhar terreno e obter a vitória final é preciso tomar a ofensiva.
Nas lutas morais como nas guerras entre as nações os triunfos decisivos pertencem aqueles que tomam a ofensiva. Não devemos, pois, dissimular a nossa bandeira, mas mostrá-la ostensivamente; não deixemos de praticar um ato religioso, mas façamo-lo com toda a perfeição e com reta intenção, isto é, para maior glória de Deus.
Por quanto tempo da nossa vida durarão tais insultos e tão trabalhoso viver? Até ao dia de juízo e não mais. Neste grande dia que regozijo o nosso em estarmos de rosto firme e maravilhosa constância acusando os que nos atribularam e oprimiram.
Sabeis o que me lembra quando trato de representar essa alegria! Afigura-me ver Noé encerrado na arca misteriosa.
Nunca homem algum foi tão insultado como o bondoso Noé, Vivendo no meio de um povo desenfreado, sem Deus, sem mandamentos, sem vergonha, brilhava em toda a espécie de virtudes e por isso era escarnecido ou insultado por todos.
Quando, porém, Deus mandou a Noé que construísse uma arca ou casa flutuante para nela se refugiar e salvar do dilúvio universal: Oh! que ocasião esta para gracejarem com o servo de Deus.
Quando viram passar anos e anos, e Noé cada vez mais afadigado na construção da arca, e sem o menor vestígio de castigo apesar das tremendas ameaças de Noé, em nome do Senhor, oh! então reuniam-se em volta da arca, escarneciam do santo velho, chamando-lhe, à boca cheia, mentiroso e doido! E ao verem depois que, muito à pressa, se metia na arca com toda a sua família, como cresciam as chutas e gargalhadas, os gracejos e insultos! - Olhe o dementado velho, nem ao menos quer respirar livremente o ar que Deus lhe concedeu, ele mesmo preparou a sepultura e se enterra em vida. Com certeza é doido: teme que as águas o afoguem e não teme que o despedacem as feras, leões e tigres! Nestes e semelhantes termos escarneciam de Noé enquanto ele entrava para a arca. Tão cegos estavam e tão empedernidos eram os seus corações.
Quando, porém, dali a sete dias, começou a chover torrencialmente, a transbordarem os rios, a espraiar-se o mar, e as águas elevarem-se acima das mais altas montanhas, que cena tão diferente da primeira, que sentimentos tão contrários! Entre o fragor das tempestuosas nuvens que parecia o estrondo de cem batalhas, entre o sibilar dos ventos que, gemendo tristemente, pereciam lamentar a agonia do mundo entre a gritaria dos que fugiam e o clamor dos que se afogavam e os ais dos que por toda a parte morriam, diz Segneri, só a arca do varão justo ia intrépida entre tantos sobressaltos e segura no meio da desolação universal: não é um cárcere de ignomínia é um carro triunfal.
Às sortes estão trocadas e mudadas a fortuna. Vós escarneceis de mim, dizia o servo de Deus, porque não tomava parte nos vossos torpes passatempos; motejáveis de mim com delírio porque me fui encerrar neste cárcere; agora é tempo de eu escarnecer de vós, vendo-vos sumir como o chumbo no fundo do mar.
Não é mais invejável a sorte de Noé do que a sorte dos malvados escarnecedores? Tal será, pois a nossa sorte se permanecermos firmes entre os escárnios dos maus. Riem-se agora de nós porque recusamos fazer-lhes companhia nas festas e diversões, motejam-nos porque preferimos passar os dias encerrados em casa ou nalguma igreja, a passear por praças e jardins atrás das vaidades do mundo ou do desenfreamento da carne.
Mas ai! Quão breve é o seu riso! Quão passageiras as suas zombarias!
Quando estalar aquela tempestade, não de água, mas de fogo, onde se refugiarão os infelizes!
Quererão alcançar um cantinho na nossa arca, mas em vão.

VII- Vantagens da vitória sobre o respeito humano

Mostramos que somos cristãos. - Nós, cristãos, por quem Jesus Cristo deu a Sua vida, a quem Jesus Cristo trata não como servos, mas como amigos, devemos preferir a qualidade inestimável e o belo nome de cristão, a toda a glória humana; devemos confessar publicamente o Seu santo nome não somente no conselho dos justos, mas ainda, e principalmente, no meio da assembléia dos pecadores; cumprir a Sua lei, praticar os nossos deveres sem temores, nem respeitos humanos. 
Quais são as ameaças ou os suplícios que detém um cristão na confissão da sua fé, no serviço de Deus? 
Ameaçado de lhe tirarem os bens, São João Crisóstomo responde: tudo o que possuo é dos pobres; tirando-mos não fazeis injustiça a mim, mas aos pobres; ameaçado na sua liberdade responde: Eu beijarei com amor as cadeias que me prendem porque ao menos sou livre em Jesus Cristo; ameaçado de exílio responde: A minha verdadeira pátria é o Céu; ameaçado na sua vida responde: Chegarei mais depressa ao Céu, a ver a Deus, único fim de todos os meus desejos. 
E esta atitude de São João Crisóstomo tem sido a de doze milhões de mártires e de uma multidão inumerável de cristãos a quem nem a pobreza, nem o pecado, nem a morte, nem a fraqueza, nem as cruzes, nem os dentes das feras podem levar a praticar um ato de condescendência reprovado pela sua consciência; - Nego a Cristo! 
- Os cristãos fracos temem um sorriso à flor dos lábios, uma troça. 
Durante as perseguições dos primeiros séculos do Cristianismo, um humilde cristão foi preso e conduzido diante da estátua de Júpiter. Dizem-lhe aí:
- “Lança incenso no fogo e sacrifica aos nossos deuses!”
- “Não!” responde ele energicamente. 
Começam a torturá-lo; não se queixa. Levantam-lhe o braço de maneira que a mão fique, precisamente, em cima da chama e põem-lhe incenso na mão:
- “Deixa cair o incenso e deixamos-te ir em liberdade!”
- “Não!” responde ainda Barlaam. E fica imóvel de braço estendido. 
A chama eleva-se e começa a lamber a mão; o incenso fumega já; mas o homem não se move. A mão queima-se com o incenso, mas Barlaam prefere o martírio a renunciar à sua fé, ao seu Deus. - Um coração de bronze! 
Quando Madalena soube que Jesus se encontrava em casa de Simão, tomou um vaso de alabastro cheio de aromas e foi a toda a pressa derramá-lo sobre a cabeça do Salvador. E logo começaram muitos a murmurar, a indignar-se, a ranger os dentes, dizendo: Ut quid perditio haec? Para quê este desperdício? Quantos pobres morrem de fome e de frio e que ela poderia alimentar e vestir, se, em vez de ir comprar aromas, fosse comprar pão e agasalhos para os pobres! Ela que tinha gasto tanto dinheiro em jóias, banquetes e diversões! Pensais que então algum lhe chamava esbanjadora, cara a cara? Pelo contrário, todos aplaudiam os seus excessos. Quando, porém, faz das suas profanidades um ato de culto ao seu Deus a quem tão tarde começou a amar, eis que imediatamente se soltam as línguas em mil afrontas, assanham-se contra ela e ultrajam a pobre mulher. 
Vejamos, por aqui, quanto parecida foi, em todos os tempos, a sorte daqueles que se resolveram a voltar as costas ao mundo e servir generosamente a Jesus Cristo. “Todos aqueles que querem viver piedosamente em Jesus Cristo, diz o Apóstolo, hão-de sofrer perseguição.” (II Tim. III, 12). 
Tornamo-nos semelhantes a Jesus Cristo. - Na vida de Santo Henrique Suso conta-se que o servo de Deus fazia as mais ásperas penitências; mas, em certa ocasião, disse-lhe Deus que ainda tinha de sofrer coisa de maior merecimento e custo e que, para saber o que era, abrisse a porta da cela. Assim o fez. E viu no dormitório um cão com um trapo na boca e umas vezes o mordia e outras vezes o lançava para um canto. Disse-lhe Nosso Senhor que se dispusesse a ser tratado como aquele trapo e aprendesse dEle a sofrer, ainda que o desprezassem e mordessem com injúrias. 
Começaram, em breve, as perseguições e aos olhos do mundo, parecia um trapo desprezível, mordido dos cães furiosos e aos olhos de Deus, era uma pedra preciosa de muito valor que com aqueles golpes ficava cada vez mais polida. 
Porque é que valem mais as perseguições e injúrias sofridas com humildade e paciência do que penitências feitas com rigorosa austeridade? É que assim nos tornamos mais semelhantes a Jesus Cristo. Foi humilhado na Sua divindade na Sua alma e no Seu corpo. 
Portanto a tinta das injúrias, que a muitos só parece lançar no crédito, é na verdade, a tinta com que se tem feito preciosas cópias e retratos de Jesus Cristo.
Alcançamos muitos méritos. - Qual foi o principal merecimento do patriarca Abraão no seu sacrifício? Foi a obediência pronta, heróica, em executar as ordens de Deus? Não: o principal mérito do santo patriarca consistiu em não olhar ao que dirão, em desprezar com espírito magnânimo os ditos a que a sua obediência o expunha.
Vendo-o tomar o cutelo, diriam: aquilo é um bárbaro: vendo-o descarregar o golpe, sem derramar uma lágrima, sem lançar um ai, sem desviar sequer o rosto, acrescentariam: aquilo é um tigre e não um homem, um algoz e não um pai! 
Não temeu, diz São Zenão, que o tivessem por cruel e filicida: antes, para mostrar a sua submissão, alegrava-se de Deus, Nosso Senhor, lhe ter ordenado sacrifício tão penoso. Está nisto o incomparável mérito do grande patriarca. 
Imaginemos que todo o mundo em vez de nos escarnecer e motejar nos louva e aplaude por sermos cristãos. Neste caso, quem deve e a quem? Deus a nós ou nós a Deus? “Os devedores, somos nós a Deus, diz São João Crisóstomo, devedores lhe somos da honra que nos tributam; mas se somos escarnecidos e motejados por Sua causa, Deus se faz nosso devedor.” Que coisa podemos desejar mais do que ter próprio Deus por devedor? Deus paga, cento por um, neste mundo e depois, o reino dos Céus. 

Reflexões e resoluções. - Agora, com os olhos da minha alma fixos em Jesus Crucificado, faço reflexões sobre a virtude sobrenatural da fé e tomo as resoluções de desenvolver e aperfeiçoar em mim esta grande virtude pela oração, dizendo com os Apóstolos: Senhor, aumentai em mim a fé; pelo exercício constante praticado, frequentes atos de fé como está escrito: “O justo vive da sua fé” e de professar sem temores nem respeitos humanos, de maneira que à hora da minha morte possa repetir como o Apóstolo São Paulo: - Cursum consummavi, fidem servavi; cheguei ao fim da minha vida e, durante toda ela, mostrei por obras que fui sempre verdadeiro cristão.
Maria Santíssima, minha boa Mãe, ajudai-me a ser fiel a estas resoluções. Assim seja.