sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Da virtude mais necessária aos industriais

Padre Júlio Maria, C.SS.R.
As virtudes, 1936
  
Não obstante a magnífica e tríplice certeza, histórica, experimental e psicológica, que na passada conferência vos dei, da divindade de Jesus Cristo, a quem quer que seja é livre recusar esta. O que ninguém, porém, pode fazer é aceitar a divindade e recusar o ensino de Jesus Cristo.
Jesus Cristo ensinou e Seu ensino pode resumir-se, quanto ao resultado final, nesta síntese: - Vida eterna e morte eterna.
Da vida eterna é que vou tratar hoje, para bem se compreender o erro de todos os que, principalmente os industriais, vivem absorvidos por interesses materiais, sem se elevarem à contemplação da vida futura.
Eu sei que esta questão de vida futura é para muitos espíritos superficiais uma questão abstrata e teórica, sem nenhum resultado prático.
Erro grande e descomunal, porque, pelo contrário, ela afeta direta e praticamente os interesses tanto do homem como da sociedade.
Se a sociedade não acredita na vida futura, deixe então, para ser coerente, que os anarquistas reclamem, como estão fazendo, o bem estar e felicidade do homem na vida presente. O anarquismo é consequência lógica de um ensino e de uma educação com que os governos, despojando a política de todo ideal divino, dão ao homem o direito de reclamar na sociedade, o nivelamento de todas as classes, a igualdade absoluta de todos os homens e o comunismo de todos os bens.
Se, porém, a sociedade entende, como deve entender, de conformidade com as verdades reveladas, que a vida terrestre é apenas uma modalidade vital, concordem os seus governos com o que proclamam todos os espíritos sensatos, isto é, que a questão da vida futura é ao mesmo tempo uma questão de honestidade, uma questão social, uma questão patriótica. De honestidade, porque do homem que não acredita na vida futura, convencido, como dizem Buchner e Moleschot, que nada pode deixar de melhor aos seus semelhantes, morrendo, do que uma porção de fosfato de cal; desse homem, é certo, não se pode exigir nem os exemplos da moral, nem os heroísmos da virtude.
Social, porque, numa sociedade despojada da crença da vida futura, o poder não tem nem pode ter origem divina; e, portanto, o poder, a tirania em cima e a obediência, a escravidão em baixo; sendo que a tirania acaba sempre nas maiores humilhações e a obediência nas mais tristes revoltas. 
Patriótica, porque pode uma nação proscrever de seus códigos as grandes verdades da existência de Deus e da imortalidade da alma; mas não o pode fazer impunemente porque, mais cedo ou mais tarde, os revezes da política será o castigo da apostasia nacional. Questão de honestidade, social e patriótica, ela é também, quanto à magnitude e beleza, a maior e a mais bela que se possa propôr à inteligência humana. A esta questão não se pode aplicar a frase de Shakespeare no monólogo do Homlet - "Ser ou não ser, eis a questão". Desta questão deve-se dizer como Pascal, no esplendido livro dos Pensamentos: "A imortalidade da alma é uma coisa que nos interessa tão profundamente que é preciso ter perdido todo o sentimento para que ela nos seja indiferente".
Tal indiferença, entretanto, é justamente o traço que tenho de vos mostrar hoje, preponderante na fisionomia brasileira, isto é, na sua intelectualidade, na sua educação e no seu ensino.
É certo que todos os homens desejam o céu, mas, não obstante, há num grande número deles, entre nós, a maior indiferença pela vida futura.
Parece difícil, mas facilmente se explica a coexistência desta indiferença com aquele desejo.
O desejo do céu é um instinto do homem que ele não pode reprimir; porque, como o rio corre irresistivelmente para o mar e a terra tende irresistivelmente para o sol, também o homem é impelido irresistivelmente para o céu, para uma vida que será a consumação do seu destino.
A solicitude, porém, pela vida futura é um ato voluntário que implica o exercício de virtudes cristãs, como a humildade, a penitência, a confissão.
Ora, entre nós, a uma multidão de homens repugna a prática destas virtudes; eis como neles coexistem o desejo do céu com a indiferença prática pela vida futura.
O desprezo pela vida futura é manifesto na abstenção dos sacramentos; mas, se quereis ainda melhor verificar o traço fisionômico que vos apontei, analisai-o neste fenômeno: - a falsa noção da vida futura.
Esta falsa noção ensinada pelos nossos intelectuais já penetrou em todas as classes e tende a substituir nelas a verdadeira noção da imortalidade da alma.
Os industriais, principalmente, pelo exclusivismo com que se dedicam aos interesses materiais, produzem as maiores vítimas dessa falsa noção. Esta falsa noção exclui a idéia que o gênero humano sempre fez da imortalidade da alma, entendendo que ela é a persistência individual e pessoal do homem, depois da morte terrestre, guardando o sentimento da sua, individualidade, a sua consciência e a sua memória. Ora, a esta imortalidade, que é a da crença universal, opõem-se entre nós, ilusórias e ridículas imortalidades, como a do positivismo que é apenas uma imortalidade ideal, a do espiritismo, que é apenas uma imortalidade múltipla e sucessiva, e a dos panteístas, poetas e fantasistas da vida futura, todos os quais ou dão ao homem para sua imortalidade, a identificação com o todo universal, ou dão ao homem, para a sua vida futura, misteriosas peregrinações pelo sol, pelos planetas e pelas estrelas.
- Qual a causa de tantas concepções que seriam monstruosas, se não fossem, como são, burlas que facilmente se podem desfazer?
A causa deste, como de todos os outros fenômenos de decadência cristã que tenho analisado é quase sempre a mesma: a ignorância completa do catolicismo, da harmonia de suas verdades e da beleza de seus ensinos.
Eu poderia, para confundir os nossos pretensos sábios, recorrer às próprias ciências modernas, para mostrar que, no próprio terreno científico, há provas diretas, magníficas, sobre a vida futura. Desta, por exemplo, eu poderia dar como argumento em física a verdade que ensina que nada se perde, nada se aniquila, sendo a morte apenas uma mudança de forma, pois que, decomposto o organismo, seus elementos reentram nos laboratórios da vida universal. Poderia dar como argumento em psicologia a verdade que ensina que a vida é uma causa substancial independente na sua realidade dos fenômenos que a manifestam na terra. Eu poderia dar como argumento o que dois matemáticos ilustres, Stait e Stewart, assim formulam: "O principio fundamental de todas as ciências modernas é o principio de continuidade, em virtude do qual nada se perde e nada se aniquila. Este princípio exige a continuação das coisas. Ora, a ciência prova que essa continuação é impossível no universo atual, que há de acabar. Portanto, o princípio de continuidade exige a continuação das coisas num outro universo, além deste”.
Tal a prova científica, mas outra prova prefiro, mais aceita pela apologética contemporânea e também mais conforme às necessidades da nossa época. Essa prova é a que se pode chamar humano, isto é, psicológica e social.
A vida futura prova-se peremptoriamente com o duplo testemunho do homem, testemunho coletivo na história e testemunho individual, na razão, no coração, na vontade e na consciência.
Demonstrarei, com largas considerações, em primeiro lugar, que a crença na vida futura é universal no tempo, no espaço e na humanidade. No tempo, porque é de todos os séculos; no espaço, porque é de todos os povos; na humanidade, porque é da humanidade em todos os seus graus, isto é, nos pequenos, nos grandes, nos pobres, nos ricos, nos sábios, e nos ignorantes. Feita a demonstração, pondero que a filosofia da história exige para um fenômeno universal causa universal.
O homem, no seu espírito, pensa o eterno; no seu coração, deseja o eterno; na sua vontade, quer o eterno, e, finalmente, na sua consciência, tem a afirmação de um destino eterno.
A idéia do eterno não podia vir ao homem nem do espetáculo da natureza, onde ele vê que tudo morte num dos espetáculos das sociedades humanas, onde ele vê que tudo varia, nem do espetáculo do seu corpo, porque este se dissolve. Portanto, a idéia do eterno é uma idéia revelada, como consumação do destino do homem que, devendo ser imutável completo e pleno, não pode se realizar na terra, onde tudo se opõe á paz e ao repouso que o destino exige.
Tudo que é necessário existe. Palavra profunda ela basta para demonstrar a vida futura, se a aplicamos ao homem. Seu espírito, feito para conhecer a verdade, não a conhece na terra senão muito imperfeitamente. Seu coração, feito para amar, não ama na terra senão muito imperfeitamente. Seu corpo, feito para operar livremente, não opera senão muito imperfeitamente. Portanto a vida futura é necessária ao espírito do homem, ao coração do homem e ao próprio corpo do homem.
Como vedes, bastaria para provar a vida futura o testemunho do homem; mas nós temos ainda um testemunho maior e este decisivo e irrecusável. Este testemunho é o de Jesus Cristo, do Seu Evangelho e da Sua Igreja. Pode-se dizer de Jesus Cristo que Ele não veio ao mundo senão para ensinar a vida futura. O Evangelho não é senão uma repetida afirmação da vida futura. A Igreja não faz senão preparar o homem para a vida futura, na qual somente terá o homem a plenitude do espírito na visão, a plenitude do coração no amor e a plenitude do corpo no gozo.
Dada a verdadeira noção da vida futura, exorto os industriais a bem se nutrirem dela, para o que, porém, é mister libertarem-se da escravidão em que os mantém a preocupação excessiva das coisas terrestres. Que lhes falta para isso? Uma virtude teologal - a Esperança.
Chateaubriand, o artista inspirado do Gênio do Cristianismo, achava na religião cristã entre outras, esta singularidade: ter feito da esperança uma virtude.
De fato obrigar o homem a esperar a felicidade; impor-lhe a esperança, sob pena de infringir humilde dever; prescrever-lhe, como obrigatória, uma coisa que tanto lhe agrada e tão conforme é à sua natureza - é, não pode deixar de ser, uma inventenção divina.
Que é a terra? Um exílio. Que é o homem? Um exilado. Quaisquer que sejam, para muitos homens, das alegrias, sua vida presente, certo, será sempre o que disse Lammenais e Varela, nosso saudoso lírico, repetiu em verso magnífico:
“O exilado está só por toda a parte..."

Há no coração humano um fundo de tristeza, de tédio pelas coisas presentes, de anelo por uma liberdade, para a qual, aliás, anela a natureza inteira. Ora, é a esperança que consola o homem, elevantado até a expectativa da vida futura.
Se o objeto primário da esperança é Deus; isto é, a visão, a posse, o gozo de Deus; se o objeto secundário são todos os meios, que nos podem conduzir à bem-aventurança, diretamente só são meios espirituais ou indiretamente só são meios temporais, transformados em auxiliares do nosso destino.
A grandeza na esperança se mede pela elevação do fim que ela tem em vista: a vida eterna. A energia se verifica pelo impulso com que ela, eleva o homem das humilhações do exílio até aos esplendores da glória. A fecundidade se avalia pelas obras a que ela estimula o homem, na virgindade, no apostolado, no martírio e na caridade. A esperança se verifica neste tríplice penhor: a promessa, o juramento e o testamento de Deus.
A promessa de Deus, feita de muitos e variados modos, com solenidade, aos patriarcas, aos profetas, aos justos de todas as idades. Mostrarei na Bíblia o juramento de Deus que, compadecido das dúvidas, incertezas e vacilações do homem, digna-Se dar, em magnânima condescendência, à Sua promessa, uma força ainda maior. Mostrarei, no Evangelho, a garantia suprema dada ao próprio juramento por um Deus que morreu pelo homem, deixando ao homem, no Calvário, um testamento: o testamento do Seu amor.
Oh! como podeis viver sem esperança? Como viverdes sem desejar esperar uma riqueza maior que o fumo das fábricas, os silvos das locomotivas, o ruído dos empórios do comercio e da indústria?!
Quebrai, quebrai este encanto funesto! Volvei vosso coração para a esperança. Ela vo-lo enchera de alegria e gozo, porque esperar é já possuir, esperar é prelibar a delícia prometida, esperar é ter já, no exílio, o começo, do êxtase que nos aguarda na pátria, isto é, na eternidade!
Esperai; mas que a vossa esperança se não confunda com esta grande ilusão dos nossos incrédulos: a presunção de se salvar sem mérito.
Eu não posso exprobrar ao nosso intelectual sem fé o vestuário, o palácio, o banquete, a pesquisa da ciência, a preocupação da arte, a emoção da poesia, a agitação da política, a febre dos negócios.
Que more ele em casas luxuosas ao lado mesmo de choupanas miseráveis, sem ar e sem luz; que ostente aos olhos mesmo dos que têm fome, seus banquetes cheios de iguarias e de vinhos exquisitos; que exiba seu luxo ao lado mesmo dos farrapos que envolveu o corpo do pobre; que devore os livros, que adore os quadros; que componha seus versos com a preocupação única de quem tem o fanatismo da forma; que organize museus e se glorie de suas exposições - nenhuma dessas coisas, é certo, eu lhe posso exprobrar como um pecado. Eu faço, porém, uma pergunta: Depois de ter dedicado a vida inteira à política, procurando as posições, à indústria procurando é riqueza, à ciência, procurando a gloria, à arte e à poesia, procurando a satisfação da sua sensibilidade - é licito, sem a mínima reparação de todas as suas omissões, em relação a Deus e a Igreja, querer o céu, esperar a salvação?
A consciência cristã responde - não!
E eu não posso hoje, dizer aos industriais coisa diferente da que ela diz aos incrédulos; não o posso porque a presunção de se salvar sem méritos é um pecado contra o Espírito Santo
Aos industriais não posso senão dizer: O tempo é curto, e não é uma cidade permanente. Cada minuto, é um passo que todos damos para a Eternidade. Vós deveis possuir as vossas fábricas, como se as não possuísseis, isto é, sem apego, sem ambição, sem avidez de dinheiro. Vós deveis tratar dos vossos negócios, mas como se só tivésseis um negócio: o negócio da vida eterna!