terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Da virtude mais necessária aos homens de Letras

Nota do blogue: Com essa transcrição termino o Especial. Veja-o inteiro AQUI.

As Virtudes 
Padre Júlio Maria, C.SS.R.


Há presentemente na sociedade brasileira duas espécies de homens: o homem propriamente dito e o homem que não tem marca.
Eu me explico o mais depressa possível.
Todo homem tem duas marcas: uma que se pode chamar interior e outra que se pode chamar exterior. Quanto à interior, essa é o maior dom que Deus concedeu ao homem, porque ela representa uma idéia, um pensamento, um tipo eternamente gravado na inteligência divina.
Por mais insignificante que nos parece um homem que encontramos nas posições mais humildes da vida, é certo que ele é objeto de uma eterna complacência de seu criador. É certo que Deus o discerne distintamente, separadamente, individualmente, na multidão dos seres criados. Ele é para Deus um original sem cópia; e se um homem não realizar o pensamento de Deus, isto é, se não der a Deus a glória especial para que foi criado, Deus não poderá jamais receber essa glória, ainda que todos os homens reunidos do passado, do presente e do futuro, lh'a queiram dar. Isto que vos digo, não é quimera ou imaginação vã, mas verdade rigorosamente teológica.
Essa marca interior do homem não é entretanto, visível aos nossos olhos. Só Deus a conhece.
A marca exterior, porém, essa pode, deve ser conhecida de todos. A marca interior é um dom gratuito de Deus; a exterior, porém, resulta de muitos e variados elementos é produto de todas as faculdades morais do homem, mas principalmente da sua vontade, a qual, está sempre em relação direta com a sua inteligência, de sorte que, se a inteligência respeita o grande, o belo, o santo, o divino, a vontade necessariamente quer essas coisas e as quer com tanto maior energia, vigor e virilidade, quanto mais caracterizada ela for.
À proporção que a vontade se torna fraca e imbele, desaparece e se oblitera a marca exterior do homem.
Lançai os olhos à sociedade atual; que vedes?
Ao lado de um certo número de homens marcados, com bom ou mau caráter, um número muito maior de homens que não têm marca.
Nas relações civis, na política, nas letras, por toda a parte, o homem que não tem marca e que, porque não a tem, com ele não se pode contar, nem para o bem nem para o mal.
Este ainda não é o maior inconveniente; o maior é a dificuldade de conhecer o homem que não tem marca, porque ele se amolda a todas as idéias, aceita todas as teorias, defende todos os princípios. Como conhecê-lo, se ele não tem marca? difícil, tão difícil como conhecer, numa Alfândega, os volumes que nos são enviados, que nos pertencem, se eles não são marcados.
Educação sem civismo, política sem definição, literatura sem originalidade - que é tudo isso senão o homem que não tem marca e que não podemos saber, na vida pública, quando verdadeiramente esse compartilha dos nossos pensamentos, dos nossos sentimentos, das nossas idéias políticas, das nossas predileções literárias?
Oh! viva o homem marcado, ainda que, a marca seja do diabo!
Dele nos podemos livrar, com exorcismos, orações ou água benta. Do homem que não tem marca não podemos, nem no livro, nem no jornal, nem no artigo, nem no discurso, nem na conversação, porque em tudo isso ele é incapaz de ter uma idéia definida, uma opinião franca.
Oh! viva o homem marcado, ainda que a marca seja a do mau caráter.
Do mau caráter?! Sim, porque não se me dá de afirmar que grande desgraça do Brasil hoje é faltarem homens de mau caráter.
Se os tivéssemos em abundância, talvez que a nação pudesse ser salva.
Há na vida de cada povo crises singulares em que o vício tem grande poder para fazer o bem e em que um grupo de perversos pode ser mais benéfico do que uma legião de santos.
Mas, então, perguntar-me-ão, elogiais o vício, significais os perversos, nobilitais o mau caráter?
Sim! - elogio; sim, dignifico; sim, nobilito; e permiti que eu faça bem alto a apologia do mau caráter.
O mau caráter detesta a verdade mas não engana os amigos. O mau caráter detesta o bem, mas não ilude a inocência. O mau caráter cobiça a riqueza, mas não mistifica os pobres. O mau caráter adula o poder, mas não conspira contra os poderosos, o mau caráter despreza a igreja, mas não finge a devoção.
Quereis verificar quão digno de respeito e de louvor é o homem de mau caráter?
Compará-lo com o homem que não tem caráter e vós reconhecerei que é preferível ter mau caráter a não ter caráter.
Eis o traço que hoje vos convido a contemplar na fisionomia do país: o enfraquecimento, a obliteração cada vez maior do caráter.
Esta obliteração é consequência necessária de uma educação, ele, um estado de coisas em que a educação do homem é sacrificada no seu elemento moral e cristão, e em que a tradição do país é sacrificada ao prurido do progresso.      
Este estado de coisas desconhece duas verdades: primeira, que, em relação ao homem, nenhuma educação presta sem religião; segunda, em relação ao país, que o progresso é uma coisa boa, mas a tradição, é uma coisa melhor, porque a tradição, num povo, corresponde à fidelidade num homem, e certo é que se o homem deve ser fiel às convicções, às amizades e à honra, também cada povo deve ser fiel à sua tradição histórica, à sua fé nacional e ao culto dos antepassados.
Estas verdades, homens há que as negam no Brasil; mas ao menos negam-nas abertamente, com uma certa dignidade, a dignidade do vício que não se dissimula.        Lamentavelmente, o maior número é de homens que não desejam mas toleram essas causas todas, sem repulsa, sem protesto nem reação.
Como reagirem? Eles não têm marca, isto é, são homens de vontade tão imbele, que ora se inclinam para o bem, ora para o mal, ora pagam o tributo a Deus, ora ao Demônio.
Ora, se o número de homens de mau caráter fosse maior, talvez que a reação aparecesse; não se manifestando tal reação, é porque a maioria é de homens que a tudo se amoldam.
Agora parece-me, já bem terdes compreendido a apologia que eu fiz do mau caráter.
Mas, quereis ver bem clara a obliteração do caráter!
Como de costume, eu vos dou um fenômeno para bem contemplardes o traço fisionômico do país.
Esse fenômeno é a falsa noção do homem.
Que é o homem?
Eu vos dou, em primeiro lugar a explicação da Religião. Ouvi-a; é bela.
Os textos bíblicos que nos falam da criação do homem são bem vulgares, concordo, mas são sublimes.
Eles nos ensinam que Deus formou o homem do barro da terra, inspirando-lhe um sopro de vida e fazendo-o alma vivente.
Eles nos ensinam que Deus deu ao homem mandar aos peixes do mar, aos pássaros do céu, aos animais e a toda a terra.
Os textos são vulgares, mas suas palavras são majestosas; cada uma delas é um raio de luz, e todas reunidas formam uma revelação.
Não é caso, agora para tratar nem da antiguidade do homem, que a própria ciência reconhece como o ser mais recente da criação; nem da soberania terrestre do homem que apropria ciência reconhece, vendo nele não só a chave, mas o príncipe da criação. Do que devemos tratar é verificar o que resulta dos textos bíblicos. Que resulta?
Sem dúvida a grandeza e a majestade do homem.
Deles decorre que o homem, na sua parte inferior, é terra, mas terra sublimada nas mãos de um artista onipotente que a transfigura. Deles decorre que o homem é terra, mas tão superior ao simples pó que a Terra é feita e preparada para ele. Decorre ainda que o homem não é só terra, mas também isso que a escritura designou com estas expressões: Deus soprou sobre a face do homem, e o homem foi feito alma vivente.
Há, pois, no homem, dois elementos: o corpo e a alma. Tal a explicação da Religião: explicação, que não prolongarei, limitando-me a lembrar que ele tem inspirado todos os grandes códigos civis ou políticos todas as grandes legislações, todas as grandes literaturas. Não a aceitais? Pois eu vos dou outra a da Filosofia.
Que é que esta ensina?
Ensina que o homem é um ser poderoso de duas substâncias diferentes, porém, tão íntima e inseparavelmente unidas, que o homem é um só composto, um só ser não obstante a dualidade das substâncias. Ensina que o homem é um espírito unido ao corpo,
encarnado de alguma sorte no corpo, habitando no corpo, na plenitude das suas faculdades. Ensina que nem a alma é confundida com o corpo, nem no corpo é absorvido pela alma. Ensina que o corpo não é, como erradamente pensavam os platônicos, um apêndice da alma, ou uma prisão obscura para o espírito; e, pelo contrário, é o instrumento por meio do qual somente a alma pode na vida presente exercitar neste mundo, as suas operações. Ensina que é pelo corpo que a alma pratica, não somente as operações das ciências, das letras e das artes, mas as próprias virtudes. Ensina, pois, a nobreza do corpo o qual se prostra em penitência, mortifica-se no jejum, derrama lágrimas no arrependimento, ajoelha-se nas reverências e recebe a água e o óleo nos sacramentos. Tal a explicação da filosofia, que não quero prolongar, lembrando-vos apenas que ela tem feito o encanto de todos os grandes espíritos, do qual, para suscitar um Pascal, ao mesmo tempo grande filosofo e grande matemático, escreveu: "O Universo é maior do que o homem, mas, dessa superioridade que o homem conhece, o Universo não tem consciência”. Tal a explicação da Filosofia; não a aceitais? Pois eu vos dou ainda outra: a da Ciência.            
Que nos ensina a ciência?       
Tudo que está espalhado no Universo acha-se concentrado e reunido no homem, o qual tem a existência inerte dos seres inorgânicos, a vida aumentativa dos minerais a vida vegetativa da planta a vida sensitiva do fruto e a vida intelectual dos anjos.
Encerra, pois, o homem, verdadeiro epítome do mundo, todas as belezas da criação, em seus diferentes reinos: o ser, a seiva o instinto a vida...
Que beleza, a beleza do homem!        
Tudo sente, tudo pensa, tudo fala pelo homem.
O homem é o pontífice do Universo, coração com que ele sente, cérebro com que ele pensa e boca com que ele fala. Tal a explicação da ciência.
É a grande Antropologia; a qual, nos livros dos mais ilustres naturalistas, é verdadeiramente um hino ao Criador.
Qual das três explicações prepondera atualmente numa multidão de espíritos de nossa sociedade? Não é nem a da Religião, nem a da Filosofia nem à da Ciência.             
Qual é?
É a noção que reduz o homem a uma criatura sem criador: é aquela que não impõe ao homem, nem sujeição, nem subordinação, nem deveres para com Deus.
Criatura sem criador! Que proposição mais ofensiva do bom senso! É preciso mais de que o bom senso para reconhecer que o homem não fez o planeta em que habita e do qual é um simples usufrutuário? É preciso mais do que o bom senso, para reconhecer que o homem nasce, vive e morre independentemente de sua vontade?
Pouco importa que isto não seja desconhecido teoricamente. Desde que praticamente a criatura se emancipa de Deus, o seu destino esta traçado: é satisfazer os seus apetites, pouco se lhe dando com as coisas sobrenaturais e divinas.
Triste noção do homem; mas, qual a causa?
Impossível desconhecer a responsabilidade dos homens de letras, dos quais, salvas quero que sejam as devidas exceções, pois que de muitos, reconheço o mérito real, no jornalismo, na literatura, no professorado.
Em regra, porém, os nossos homens de letras, classificação em que se devem muitos jornalistas, publicistas, literatos, poetas, comediógrafos, professores, tiram, para glorificá-la e propagá-la, a noção do homem não da verdadeira ciência, mas do positivismo anti-científico, que considera o homem apenas um grau superior da animalidade.
Ora animalizado o homem, bem difícil é a virilidade da vontade, elemento principal do caráter. Como o caráter, com tal depredação do homem?
Necessariamente a glorificação dos sentidos acarreta a glorificação das paixões; eis porque os nossos homens de letras em regra, dignificam e propagam no livro, no jornal, no verso, na comédia, as lições do professorado tudo que tende a libertar o homem dos laços da religião e da moral: o amor livre, o adultério, o divórcio, a emancipação da carne com todos os seus vícios e exigências.
Grande, lamentável fraqueza, que não se explica sem dúvida senão pela dificuldade que esses homens de letras sentem de subtrair-se ao funesto encanto das teorias pseudocientíficas que o seduziram e contra as quais já não podem reagir.
Grande e lamentável fraqueza, para a qual, entretanto, trago hoje um remédio, que ofereço com solicitude de amigo e com amor paternal.
Esse remédio é uma das virtudes chamadas cardeais – a Força.
Sendo a imbecilidade moral, como o confessa o próprio Max Nordau, espírito completamente emancipado da fé, o grande mal das letras, hoje, claro é que só podemos debelar essa enfermidade fortificando e restaurando a vontade nos homens de letras, para os quais é, pois, a Força um remédio verdadeiramente específico.
O elogio da Força, está feito não só pelo cristianismo, como pelo próprio paganismo. Os moralistas admiram-na no – sustine et abstine! – do estoicismo, os cristãos devem admirá-la ainda mais nos heroísmos da vida cristã. Nos estoicos a Força era um simples desejo de vencer o coração e as suas ternuras; nos cristãos ela é um esforço viril do homem para vencer os obstáculos opostos ao seu destino. A definição da Força no-la dá a Ascética, ensinando que ela é o complexo das energias empregadas na defesa, sustentação e desenvolvimento do bem na vida moral, sob a inspiração da razão sábia e sã e de conformidade com as regras que guiam a razão na nossa conduta prática.
Como Santo Tomás, considero a Força já como virtude especial, já como virtude geral.
Como virtude especial é a firmeza e constância com que suportamos as coisas extremamente difíceis, com que vencemos as provas da vida, nos males que nos assaltam.
Como virtude geral ela deve ser considerada o motor de toda a vida moral, pois que é ela que põe em ação todas as outras virtudes; pelo que distinto escritor ascético muito bem compara a Força à energia motora das fábricas, onde, depositada em reservatório especial, deste a energia se transmite a todo o mecanismo, fazendo-o mover-se e produzir os mais variados resultados.
Bela verdadeiramente esta virtude, que dá ao caráter do homem sua grandeza e seu esplendor.
Bela verdadeiramente esta virtude, que dá ao caráter do homem ser o guarda do direito, o defensor da justiça, a sentinela da liberdade!
Bela verdadeiramente esta virtude, sem a qual o homem contempla impassível todas as injustiças, opressões e despotismos.
Esquecido de que cada homem não recebeu a vida senão sob esta condição, que o honra e exalta: morrer, se preciso for, pela verdade e pelo bem.
Mas, não contemplemos somente a beleza, pensemos também na necessidade da Força. Grande é a sua necessidade, porque, é a força que vence no homem o terror da morte quando desprezar a vida se torna o seu dever. Grande é a sua necessidade, porque é a Força que impele o confessor, o soldado, que faz o verdadeiro cidadão. Grande para todos a necessidade da Força.
Sois católicos! Vós precisais da Força para cumprir cada um dos preceitos do Evangelho, porque todos eles, diz um asceta, exigem a Força. É preciso Força para perdoar as injúrias, para dizer bem dos que nos caluniam, para ocultar os defeitos dos que censuram mesmo as nossas virtudes. É preciso Força para fugir às seduções do mundo, para repudiarmos os prazeres, para vencer os nossos instintos. É preciso Força para ser humilde na elevação e na glória, para ser mortificado na abundância, para ser pobre de espírito e limpo de coração. É preciso Força para reprimir os desejos maus, para abafar os sentimentos indignos, para subjugar o próprio coração, para vencer-se a si próprio.
Não sois católicos? A força vos é mais necessária ainda do que ao católico, porque não tendes como ele a graça santificante, o divino remédio dos sacramentos.
A força vos é necessária para cumprir o menor dos deveres da própria moral humana. A moral humana, eu o reconheço, não repudiou ainda a honra, a dignidade, o culto da palavra, a fidelidade aos amigos, a dedicação à família, o amor da pátria. Coisas grandes, coisas belas, mas impossíveis sem a Força, porque sem a Força o perfume de uma flor embriaga, o olhar de uma beleza seduz, a esperança de uma glória arrebata, o triunfo deslumbra, o poder desvaira, a riqueza ensoberba, o mundo subjuga e vence.
Oh! meus patrícios, homens de letras, vós deveis fazer no Brasil, em toda a esfera das letras, o que, em 1818, Lamartine chamava, na política de França, uma revolução do pudor.
É provável que o próprio Governo auxilie os revolucionários, pois não quererá ficar abaixo do Presidente Roosevelt, que iniciou, ele próprio, na sua famosa presidência, a campanha contra a imoralidade literária.
As artes provavelmente cooperarão com as letras nessa revolução do pudor. Acredito-o porque, entre a literatura e a arte, íntimas são as relações, tão íntimas que o artista que trabalha no bronze, no mármore, ou na tela e até na caricatura pode ser considerado uma espécie de literato. Como a literatura, a arte deve inspirar-se no belo moral e cristão, que, é certo, ela decanta às vezes, mas infelizmente, não poucas vezes, propaga o feio e o torpe, esquecida de que, sem dúvida, foi um grande artista aquele que, para encobrir a deformidade de um rosto, inventou a arte do perfil.
Eia, homens de letras! Eia, também, artistas! Iniciai no Brasil a revolução do pudor; que ninguém vos saia ao encontro, com fórmulas vãs, repito. Só há duas literaturas: a literatura honesta e a literatura imoral. Contra, esta, quanto antes, a vossa campanha, a qual será mais do que um troféu dado à reconstrução cristã do Brasil, ameaçado de perder completamente, na mais funesta de todas as inércias, a energia do caráter, a Força com que, unicamente, os povos são capazes e dignos de liberdade.