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XI. DIÁLOGO
ENTRE O DIRETOR E O ESCRUPULOSO
O diretor.
Conheço os males de que a vossa pobre alma sofre; compadeço-me deles do fundo
de minhas entranhas; quisera curá-los; mas sabeis qual seria o meio disso,
depois de tudo o que acabais de ler?
O escrupuloso.
Não; ignoro-o, e desejo vivamente que mo ensineis.
O diretor.
Tende uma confiança sem limites na misericórdia divina pela mediação de Nosso
Senhor Jesus Cristo, que derramou o Seu sangue por vós, que vos procurou como
uma ovelha desgarrada através das sarças e dos espinhos, e que quis expiar
pessoalmente os vossos pecados para vos dar a paz e a salvação. Poderíeis desesperar e perder confiança à vista do
que Deus fez por vós dando-vos Seu Filho, que se fez a Si mesmo vítima por vós? Que há que não obtenhais pela mediação de Jesus
Cristo? Que há que não acheis n’Ele? Força, luz, justiça, santidade, consolação,
perseverança; porquanto Jesus Cristo é um dom universal em quem estão
encerrados todos os outros dons e todos os tesouros da graça. “Dando-nos seu
Filho, diz S. Paulo, Deus não nos deu todas as coisas com Ele?” (Rom 8, 33).
Deu-no-lo para ser o suplemento universal de todas as nossas misérias, de toda
a nossa indignidade. E que quereríamos que Deus fizesse a mais para nos
inspirar sentimentos de confiança e de amor? Que pode Ele acrescentar a
admirável economia da redenção, da religião, dos sacramentos, da mediação da
SS. Virgem, de tantos caminhos abertas à vossa confiança?
O escrupuloso.
Mas eu não mereço senão os repúdios e a indignação de Deus; todas as minhas
orações são más, e Deus não pode escutar-me.
O diretor.
Mas Jesus Cristo, o Filho único do Pai, que intercede por nós, que por nós
oferece o preço dos Seus méritos, do Seu sangue e dos Seus trabalhos, não merece
bem ser escutado em nosso favor? Poderíamos crer que tal Pai pudesse recusar
alguma coisa a tal Filho que Lhe oferece tal preço? Este pensamento não seria
injurioso tanto ao Pai como ao Filho?
O escrupuloso.
Os meus pecados passados, que são tão numerosos, as minhas fraquezas presentes
e futuras me assustam.
O diretor.
E que são todos os vossos pecados comparados com a misericórdia de Deus e com
os merecimentos de Jesus Cristo? Serão outra coisa a não ser como uma gota de
água comparada com o Oceano? Abri os Livros santos, e vede a grande maravilha
da misericórdia divina para com pecadores tais como David, Zaqueu, Saulo,
inimigo declarado de Jesus Cristo, S. Pedro perjuro, Madalena prostituída, o
bom ladrão, etc. Que tendes a temer depois de tantos exemplos, após tantos santos
que reinam no céu, e que, antes da sua conversão, foram mais culpados do que
vós?
O escrupuloso.
Mas esses eram santos, e não miseráveis como eu, que estou tão longe de me
aproximar das virtudes deles!
O diretor.
Seria um erro crer que os santos não foram o que vós sois, e que vós não podeis
ser o que eles são. Os santos tiveram as mesmas tentações, as mesmas
fraquezas, as mesmas dificuldades, as mesmas paixões, os mesmos inimigos que
vós, e vós tendes as mesmas graças, os mesmos socorros, os mesmos meios, as
mesmas esperanças que eles. É só, como eles, terdes plena confiança; tendes só
que usar dos socoros que vos são oferecidos, e chegareis à mesma felicidade que
eles.
O escrupuloso.
Longe estou de ousar esperá-lo: estou sobejamente convencido da imensidade das
minhas misérias; para esperar essa ventura.
O diretor.
Permiti-me fazer-vos aqui uma observação que não vos será inútil, espero-o: é
que devemos desconfiar dessa desconfiança que parece nascer do sentimento das
nossas misérias, e que muitas vezes não passa de uma falsa humildade e de um
verdadeiro orgulho. O bom espírito produz bons frutos, e o mau espírito
produz maus frutos; é por aí que se deve fazer o discernimento deles, e é por
aí também que se deve distinguir a verdadeira da falsa humildade; uma e outra
nascem da convicção das nossas misérias e da nossa indignidade; mas os frutos
que uma e outra produzem são bem diferentes. A verdadeira humildade vem de
Deus, e leva também a Deus. Como ela é um dom de Deus, fortalece a alma e
dá-lhe um novo vigor, uma prontidão e uma liberdade santa para rogá-lO e servi-lO:
o espírito de Deus não pode enfraquecer nem desanimar as almas, torná-las mais
desconfiantes da bondade de Deus, mais pesadas, mais inquietas, mais covardes
na oração e no cumprimento dos outros deveres da religião: esses maus frutos
não podem, pois, vir senão da operação do espírito maligno. Tomai cuidado
nisso, e desconfiai. Santa Teresa dizia às suas religiosas: “Guardai-vos de
certas humildades acompanhadas de inquietações que o demônio nos põe no
espírito; elas causam à alma uma aflição que a confrange, que a agita, que a
atormenta, e que lhe é inteiramente difícil de suportar. Com isso, o demônio
pretende persuadir-nos de que temos humildade, e ao mesmo tempo fazer-nos
perder a confiança que devemos ter em Deus... Quando, estiverdes neste estado,
acrescenta ela, o mais que puderdes desviai o vosso pensamento da consideração
da vossa miséria, e levai-o a considerar o quanto é grande a misericórdia de
Deus, qual é o amor que Ele nos dedica, e o que Lhe aprouve sofrer por vós”.
Efetivamente, a desconfiança, embora se cubra com as
aparências da humildade e da convicção da miséria, da fraqueza e da indignidade
do homem, é realmente orgulho. Senão, vede: Deus conhece infinitamente melhor
do que nós as nossas fraquezas, a nossa malignidade, a nossa indignidade;
mas, apesar disso, manda-nos esperar na Sua misericórdia e nos merecimentos de
Jesus Cristo; ordena-nos lançar fora as dúvidas, todos os pensamentos que
atacam ou enfraquecem a esperança, como os que atacam a fé, a castidade; anima-nos
por sua palavra e por suas promessas; e não é um grande orgulho não Lhe
obedecermos, não escutarmos a Sua palavra e rejeitarmos as Suas consolações? Ele
nos oferece Suas graças, declara-nos que se considerará ofendido se dermos
ouvido às nossas desconfianças; ameaça-nos se não esperarmos na Sua bondade,
Então não é orgulho pretender alguém desculpar-se com o fato de ser demasiado
indigno e de haver abusado de mais das Suas graças e da Sua paciência?
O escrupuloso.
Mas então que devo fazer? dignai-vos traçar-me o caminho, e eu o seguirei.
O diretor.
Primeiramente, como já vos disse, deveis ter uma grande confiança em Deus,
visto ser ela a fonte de toda sorte de bens, visto enraizar, nutrir e
fortificar as virtudes, amenizar as penas, enfraquecer as tentações, duplicar a
coragem, dar nascimento a todas as boas obras, e ser para a alma como um paraíso
de bênção e uma espécie de felicidade antecipada. Diz o profeta Jeremias:
"Feliz o homem que põe sua confiança no Senhor, e de quem o Senhor é a esperança!”
(Jer 17, 7).
A confiança fraca e tímida torna a piedade trêmula e
vacilante; é sustada pelos mais pequenos obstáculos, é retardada pelo menor
contratempo, desalentada pelas mais leves contradições. Ora, uma esperança
tímida e trêmula torna também hesitantes e tímidas as orações que dela nascem,
e por conseguinte incapazes de obter muito. Torna a gratidão menos viva, o amor
menos ativo, abre a sua porta às tentações, rouba à alma a paz, enche-a do
espírito das trevas, fortifica a oposição natural às virtudes cristãs, serve
aos desígnios pérfidos do demônio contra nossa alma. Não admitis estas
verdades?
O escrupuloso.
Admito-as perfeitamente.
O diretor.
Penetrado de confiança em Deus, deveis ter uma grande confiança no vosso guia
espiritual. Deveis abrir-lhe o vosso coração, e, uma vez que vos houverdes
revelado a ele, ficai convencido de que ele só quer o bem e a salvação de vossa
alma; que o lugar onde ele está, o ministério que ele desempenha, o Deus cujo
lugar ele ocupa, a responsabilidade que ele assume sobre si, são garantias
bastante poderosas de que ele cumpre o seu dever para conosco. Escutai-o em
tudo; obedecei às decisões dele, às suas prescrições, às suas proibições, aos
seus conselhos, como ao próprio Deus.
O escrupuloso.
Sinto que é esse o caminho mais curto; mas como obedecer contra a própria
consciência?
O diretor.
A vossa consciência pode enganar-vos, e a vossa obediência nunca vos enganará.
A vossa consciência pode ser trevosa; e Jesus Cristo, falando pelo seu
ministro, é a luz e a Verdade; foi ele quem nos disse que escutássemos aquele
que ocupa o seu lugar. E foi ele quem advertiu o seu ministro de contar com o
seu direito, dizendo-lhe: Quem vos escuta a mim escuta.
O escrupuloso.
Sou presa de mil tentações.
O diretor.
Deveis convencer-vos bem de que, se sois tentado, é porque o Senhor vos ama, é
por que sois agradável aos olhos d’Ele, é porque Ele quer purificar-vos cada
vez mais, aumentar os vossos merecimentos, experimentar a vossa fidelidade, e
tornar mais brilhante a vossa coroa. “Deixai correr o vento das tentações, diz
S. Francisco de Sales, e não penseis que o cicio das folhas seja o tilintar das
armas. Ficai bem persuadido de que todas as tentações do inferno não poderiam
manchar um espírito que não gosta delas”. Pensai em que Deus é um pai terno, e
que Ele não permitirá a provação senão na medida em que ela vos for útil.
Pensai ainda em que os maiores santos, como S.Antão, S. Jerônimo e vários
outros, foram mais tentados do que vós, e que saíram vitoriosos; não vos
deixeis abater pelo temor; lembrai-vos de que para um pecado mortal é preciso
que a matéria seja grave, o conhecimento pleno e inteiro, a vontade expressa.
Nas tentações contra a pureza ou contra a fé, não vos detenhais a produzir com
esforço atos dessas virtudes: volvei-vos para Deus por um terno olhar de
confiança: invocai a SS. Virgem, tão boa, tão misericordiosa para conosco; entregai-vos
a alguma ocupação exterior, e ficai em paz, aguardando que Jesus Cristo mande a
tempestade e o mar se acalmarem.
O escrupuloso.
Mas estou sempre distraído diante de Deus; não posso fazer oração; daí vem que
não faço nenhum progresso.
O diretor.
Não vos perturbeis com isso; quanto mais penosa é a oração, tanto mais
meritória. Retiramos dela menos satisfação, é verdade; mas é por isso mesmo
que ela é mais agradável a Deus. Lembrai-vos de que Jesus Cristo orou sem
consolação durante a Sua dolorosa agonia.
Quanto às distrações, quando não vos houverdes prestado
a elas consciente e voluntariamente, não vos detenhais a procurar qual lhes
possa ser a causa, nem se de algum modo destes lugar a elas; lançai-vos nos
braços de Jesus Cristo, e convertei em merecimentos o que é uma fonte de
apreensões. Fazei uso frequente das orações jaculatórias; estes
dardos inflamados têm a virtude de elevar depressa o coração para Deus, e de
abrir o coração de Deus às nossas necessidades. Elas são curtas, fáceis, podem
ser feitas em toda parte e em todo tempo e sem direções, visto que muitas
vezes é só uma palavra. Não vos entregueis a mortificações excessivas. S.
Jerônimo nos ensina que, quando o demônio não consegue desviar uma alma do amor
do bem, trata de impeli-la a mortificações de um rigor excessivo, a fim de
que ela fique esmagada por elas, e assim perca o vigor necessário ao seu
adiantamento espiritual. Várias almas piedosas caem nesta armadilha; e eis aí
por que S. Francisco de Sales, que soube guardar um meio termo tão sensato
entre o relaxamento e o rigorismo, e cujos conselhos fazem autoridade, disse:
“Concito-vos a conservardes cuidadosamente a vossa saúde, pois Deus exige de
vós esse cuidado, e a poupardes vossas forças para empregá-las melhor no Seu
serviço; de feito, é melhor conservar mais forças corporais do que é preciso,
do que arruiná-las mais do que é preciso; porquanto pode-se sempre
enfraquecê-las quando se quiser, mas nem sempre se pode repará-las quando se
quer”. Concedei-vos, pois, as cuidados necessários para poderdes servir melhor
a Deus. Não debiliteis demasiadamente o vosso espírito pelo jejum: porquanto
não faríeis com isso senão torná-lo mais fraco e, assim, mais exposto aos
ataques do inimigo.
O escrupuloso.
O que mais aflição me causa é aproximar-me do tribunal sagrado.
O diretor.
Esse tribunal que temeis é, no entanto, o tribunal da misericórdia, e não -
deveríeis aproximar-vos dele senão com confiança e serenidade. Aquele que ocupa
o lugar de Jesus Cristo tem ordem de receber-vos, de perdoar-vos, de consolar-vos,
de misturar suas lágrimas às vossas, de vos abrir enfim as portas do céu. Ah!
não façais desse sacramento de amor e de remissão um sacramento de tortura e de
angústias; ah! que quer o Senhor senão quebrar os nossos grilhões, restituir à
nossa alma a sua liberdade, a sua paz, a sua doce alegria, para com nova coragem
trilharmos os caminhos da salvação? É preciso arrepender-se dos próprios pecados,
mas não se perturbar com eles; é preciso ser humilhado, mas não desesperado.
Depois da confissão, conservai-vos, pois, calmo, e gozai do fruto do sacramento;
não deis acesso a mil temores sobre a validade do sacramento, sobre o vosso
exame, sobre a vossa contrição; a verdadeira contrição é obra do amor, e o
amor age na calma: reinem, pois, no vosso coração o amor e a confiança.
Agradecei a Deus, prometei-lhe emendar-vos. Esperai que, por Sua graça,
cumprireis as vossas resoluções, e, ainda que devêsseis recair cem vezes, não
cesseis de prometer e de esperar. Se Deus não vos dá o sentimento da vossa
contrição, é para provar o mérito da obediência, que deve bastar para vos tranquilizar
sobre a vossa reconciliação perfeita. Diz S. Francisco de Sales: “Grande poder
é diante de Deus o poder querer, e vós tendes a contrição pelo simples fato de
desejardes tê-la. Não a sentis? Não importa! o fogo que está sob a cinza não se
vê, não se sente; e, no entanto, esse fogo existe. Crede, pois, com humildade,
obedecei com coragem, e tereis uma dupla recompensa”.
O escrupuloso.
Eu bem teria necessidade dos vossos conselhos, pois tremo sempre, e estou
sempre prestes a abandonar a comunhão.
O diretor.
S. Francisco de Sales diz que há duas espécies de pessoas que devem comungar
com frequência: os perfeitos, para se unirem mais intimamente à fonte de toda
perfeição; e os imperfeitos, para trabalhar por atingi-la; os fortes, para não
se tornarem fracos, e os fracos para se tornarem fortes; os doentes, para serem
curados; e os que estão com saúde, para não caírem em doença. Dizeis que as
vossas imperfeições, a vossa fraqueza, as vossas misérias, vos tornam indigno
de comungar com frequência, e eu vos digo que justamente por essa razão é que
deveis comungar amiúde, a fim de que Aquele que possui tudo vos dê o que vos
falta. — Tomai, pois, o vosso quinhão nos conselhos desse grande diretor.
E não creiais que não colheríeis nenhum fruto da
comunhão porque não vedes crescerem as vossas virtudes; basta que Deus o veja,
e nem é mesmo bom que o vejais. Contentai-vos com saber que ela produz sempre
um grande fruto, que é o de manter-vos em estado de graça.
Precatai-vos de atormentar-vos, acreditando que
estais mal preparado e que abusais de tão grande sacramento, porque vos sentis
frio e indiferente e como que sem nenhum sentimento; isso são provações que
Deus vos envia para exercitardes a vossa fé e aumentardes os vossos méritos.
Sucede com as securas na comunhão como sucede com as que experimentamos na
oração. Tende sempre o desejo; o desejo, diz São Gregório, diante de Deus
equivale à obra.
Não sois digno! Mas, propriamente falando, quem é
que é digno, e quem o será jamais? Então seria preciso renunciar à comunhão, e
renunciar também a todos os exercícios de piedade; é justamente o que o inimigo
da salvação pede; mas Jesus-Cristo, ao contrário, convida-nos a recebê-lO
amiúde, e faz do Seu corpo um pão de cada dia. Um justo pavor não é censurável,
bem longe disto; mas é preciso ter o cuidado de temperá-lo pela consideração
da misericórdia de Deus. No Evangelho, Jesus Cristo não disse: Vinde a mim vós
que sois perfeitos; disse: “Vinde a mim vós todos que estais trabalhados pela
angústia e carregados do fardo das vossas penas, e eu vos aliviarei”.
E, se tiverdes de aproximar-vos da Mesa sagrada
apesar do sentimento da vossa indignidade, sem outro apoio nem garantia senão
a vossa obediência, não temais: porquanto essa disposição é uma das mais
agradáveis a Deus.
Se vierdes a ser assediado de tentações, não vos
afasteis por isso da divina Eucaristia; seria cederdes sem resistência a vitória
ao inimigo. Quanto mais combates tiverdes a sustentar, tanto mais deveis
munir-vos de meios de defesa. Ide, pois, ousadamente restaurar-vos com o alimento
dos fortes, e saireis vitorioso.
O escrupuloso.
Dou-vos graças por estes preciosos conselhos, sinto toda a sabedoria deles, e
esforçar-me-ei por fazer deles a regra da minha conduta. Se não receasse tornar-me
indiscreto, quereria mesmo pedir-vos alguns outros, como sobre a resignação,
de que tenho grande necessidade, sobre a pressa e a inquietação, e sobre uma
multidão de coisas que me faltam.
O diretor.
Já que vossa alma o deseja, vou responder em poucas palavras às vossas
questões. Primeiramente falemos da resignação. Em tudo o que vos acontece,
reconhecei e adorai sempre a santa vontade de Deus. Toda a malícia dos homens
e do próprio demônio não pode produzir contra nós coisa alguma que Deus não
haja permitido. O Salvador declarou que não cairia um só cabelo da nossa cabeça
sem a vontade de nosso Pai celeste. Assim, em toda situação penosa para a natureza,
quando fordes afligido por doenças, assaltado por tentações, atormentado pela
injustiça dos homens, elevai vossa alma à consideração divina, e dizei a Deus
com coração afetuoso e submisso: Fiat voluntas
tua, seja feita a vossa vontade; faça o Senhor de mim o que quiser, como
quiser e quando quiser.
É assim que tornamos fáceis de suportar as penas
mais sensíveis e as situações mais aflitivas. Dizia Santa Maria Madalena de
Pazzi: “Não sentis que doçura infinita encerra esta só palavra: “vontade de
Deus”? Semelhante àquele pau mostrado a Moisés, o qual tirava às águas o seu
amargor, ela adoça tudo o que é amargo na vida”.
Não somente é Deus quem nos envia as nossas penas;
mas é para o bem da nossa alma e para nossa vantagem especial que Ele no-las
envia: não façais, pois, objeto de queixa daquilo que deve ser um motivo de
gratidão. Um aviso bem importante a vos dar é o de vos pordes
em guarda contra a inquietação e contra a pressa. Só agindo tranquilamente é
que podemos servir ao Deus de paz de uma maneira que Lhe seja agradável. Ora,
esses defeitos fazem-nos perder o pensamento de Deus em nossas ações,
preocupam-nos, embaraçam-nos, fazem-nos cair na impaciência, e é por isto que S.
Francisco de Sales era inimigo declarado deles.
Açodando-se e agitando-se, a gente não faz mais, e
faz pior. Por isto, vemos que Jesus Cristo repreendeu Marta pela sua demasiada
solicitude. Quando nós fazemos as coisas bem, fazemo-las sempre bastante
depressa. Contende, pois, a vossa vivacidade, moderai-vos, fazei bem o que
estiverdes fazendo, não empreendais de mais, a fim de poderdes executar tudo.
Não caiais entretanto na trilha contrária, que é a lentidão e a indolência,
pois todos os extremos são maus; tende, diz ainda o pio autor supracitado,
tende uma atividade tranquila e uma ativa tranquilidade. S. Francisco de Sales,
que primava nisso, dizia, atribuindo a pressa ao amor-próprio: “O nosso
amor-próprio é um grande trapalhão, que quer empreender tudo e não acaba
nada”. Velai, pois, sobre este ponto.
Enfim, guardai-vos de um grande inimigo, que é a
tristeza. S. Francisco de Sales não se arreceou de dizer que, depois do pecado,
nada é pior do que a tristeza. E acrescentava que todo pensamento que nos
perturba e nos inquieta não pode vir do Deus de paz, que faz a sua morada nas
almas pacíficas. “Sim, minha filha, digo-vos por escrito tanto quanto de boca,
alegrai-vos tanto quanto puderdes fazendo tudo bem; pois é uma dupla graça
para as boas obras o serem bem feitas e o serem feitas alegremente; e, quando
eu digo: fazendo bem, não quero dizer que, se vos suceder algum defeito, vos
deis por isso à tristeza, não, por Deus, pois seria juntar defeito a defeito;
mas quero dizer que persevereis em querer fazer tudo bem, e que volteis sempre
ao bem logo que conhecerdes haver-vos afastado dele; e que, mediante esta
fidelidade, vivais alegre para o geral. Deus esteja no vosso coração, minha
filha; vivei alegre e generosa”.
Errado andaríeis, pois, em vos entregardes à
tristeza, à melancolia, e em vos vedardes todo divertimento: o espírito fatigasse
e sombreia-se ficando sempre dobrado sobre si mesmo, e com isso torna-se mais
acessível à tristeza. Os divertimentos e as distrações são, na vida da alma, o
que o tempero é na comida do corpo: precisamos saber proporcionar-no-los
segundo as nossas necessidades. Quando, pois, sentirdes no vosso coração a aproximação
da tristeza, não percais um só momento para vos distrairdes dela; fazei visitas
ou procurai um recurso em conversas interessantes, em leituras variadas;
passeai, cantai, fazei seja lá o que for, diz Quadrupani depois de S. Francisco
de Sales, contanto que fecheis a porta do coração a esse perigoso inimigo.
Santo Agostinho dizia: Amai, e fazei o que quiserdes.
Termino exortando-vos a agirdes com uma santa
liberdade cristã nas ocasiões que o exigirem, a reprimirdes em vossa pessoa
todo zelo amargo, e em exercerdes um zelo cheio de humildade, de pureza de
intenção, de oportunidade e de grande caridade; depois, tornai a piedade amável
pela vossa doçura, pela vossa afabilidade, pela vossa modéstia, pelos vossos
olhares, sem respeito humano, no mundo. Assim fazendo, amareis a religião,
fá-la-eis amar, e atraireis a Jesus Cristo numerosos adoradores.