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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
III
Podemos mesmo excitar-nos ou animar-nos pela esperança de nos unirmos a
um amigo junto de Deus. – Grandes santos foram sensíveis a esta esperança. –
Confissão de S. Francisco Xavier. – União sobrenatural de dois corações. – Gradação
no parentesco espiritual das almas. – Fraternidade inteiramente espiritual e de
escolha.
Podeis ainda ir mais longe.
Depois de vos terdes primeiramente consolado, de alguma sorte, pela firme
esperança de que a vossa amiga oraria mais eficazmente por vós, se fosse a
primeira a subir ao Céu, regozijar-vos-eis também de ali vos reunirdes a ela
com o pensamento, e lhe direis: Estaremos um dia reunidas no Paraíso, sim,
reunidas junto de Deus: quanto mais nos amaremos então!
Mas talvez se encontre alguém
que tente repelir violentamente todos estes sentimentos dum coração amoroso,
dirigindo-vos esta censura: “Quê! animar a vossa coragem e excitar-vos a
sustentar generosamente os combates deste mundo, em parte pela esperança de vos
repousardes no Céu sobre o coração das pessoas que amais, não será uma clara e
grosseira imperfeição?”
Respondei que os maiores
santos foram sensíveis, ainda mais do que vós, a esta esperança, e que
desejavam gozar, ainda na eternidade, dos castos abraços de seus amigos. O
apóstolo das Índias e do Japão confirma isto mesmo por sua confissão, feita ao
fundador da Companhia de Jesus.
“Dizeis, escrevia S. Francisco
Xavier a Santo Inácio, no excesso da vossa amizade por mim, que desejaríeis
ardentemente ver-me ainda uma vez antes de morrer. Ah! só Deus, que vê o interior
dos nossos corações, sabe quão viva e profunda impressão causou em minha alma
este doce testemunho do vosso amor para comigo. Cada vez que me lembro dele, e
isto acontece muitas vezes, involuntárias lágrimas me rebentam dos olhos; e se
a deliciosa idéia de que poderia abraçar-vos ainda uma vez, se apresenta ao meu
espírito (porque, por mais difícil que isto pareça à primeira vista, não é
coisa que a santa obediência não possa efetuar), encontro-me num instante
surpreendido por uma torrente de lágrimas que nada pode fazer parar”[1].
“Peço a Deus que se nos não
pudermos tornar a ver na terra, gozemos unidos, na feliz eternidade, do repouso
que se não pode encontrar na vida presente[2].
E efetivamente, não nos tornaremos a ver na terra senão por meio de cartas; mas,
no Céu, ah! será face a face! E então, como nos abraçaremos!”.[3]
Com efeito, quem poderá
descrever os transportes de alegria que dois amigos experimentarão, um pelo
outro, no Céu, depois de se terem mutuamente excitado à perfeição, e de terem
verificado estas palavras da Escritura: “O amigo fiel é um remédio que dá a vida
e a imortalidade, e aqueles que temem o Senhor encontram um tal amigo” (Eccl.,
VI, 16).
Escutai, sobre esta amizade
dos santos, um autor que merece ser citado ainda uma vez:
“Dominado, neste mundo o nosso
coração pelas sensíveis impressões, e não julgando o mais das vezes senão por elas,
nem sempre se dá conta exata das delícias desta união sobrenatural das almas.
Admite-as pela fé, mas são-lhe mistério; mostra-se-lhe ordinariamente
insensível, porque as não compreende. Algumas vezes, contudo,
desprende-se do oceano da divina graça um como raio que, rompendo a nuvem dos
sentidos, vem iluminar certas almas privilegiadas e dar-lhes um ante-gosto destas
inefáveis uniões que são, à vista das da natureza, o que seria um perfume
emanado do Céu ao pé dos mais esquisitos perfumes da terra.
Vê-se algumas vezes, e mesmo
não é raro, na vida dos santos, uma alma unida a outra por uma destas misteriosas
atrações, fortes e serenas, que admiram e confundem a natureza. A alma que assim ama, vê na
sua amiga uma companheira duma beleza inexplicável, cujos espirituais encantos
ela aprecia como tipo divino, em conformidade do qual fora feita. Vê nela a
imagem de Deus, e só esta imagem; emprega todos os meios, ofertas, sacrifícios
e orações, para que ela se torne cada vez mais semelhante ao modelo, para assim
aumentar a sua amabilidade e amá-la ainda mais. São como duas irmãs, saídas à
luz no mesmo dia, do lado de Jesus no Calvário, pelos mais dolorosos sofrimentos.
No Céu, este parentesco
espiritual terá uma graduação análoga à da natureza: uma hierarquia de pais, de
filhos, de irmãos e de irmãs. “Os bem-aventurados verão um
pai em todo o homem que, pela efusão do seu sangue, de seus suores e orações,
os tiver, de perto ou de longe, gerado em Jesus Cristo ; e este
homem contará tantos filhos muito amados quantas as almas que tiver lucrado
para o seu Deus.
Oh! quanto será bela esta
paternidade! Quão ricos e preciosos serão os tesouros da sua fecundidade!
O cego mundo apieda-se destas
almas sobre-humanas que, calcando aos pés os atrativos e as seduções da
natureza, renunciam às alegrias mais legítimas da família; e não vê que, em troco do seu sacrifício, Deus
as dotará com uma outra família, que lhes fará gozar duma felicidade e de
consolação incomparavelmente mais doces do que jamais sentiu alguma mãe da
terra.
Um dia seremos testemunhas
disto, e veremos quanto estas almas eram mais dignas de inveja do que de compaixão. Assim, a glória terá a sua doce fraternidade,
formada entre duas ou mais almas por vínculos próprios e pessoais. Esta especial
fraternidade nascerá primeiramente dessas ligações que uma comunidade de
deveres, de regras e de práticas, forma entre todos os filhos do mesmo pai ou
da mesma mãe espiritual.
Nascerá, em segundo lugar,
daquelas cadeias mais particulares que uma comunhão de boas obras e de orações
forma por si entre duas almas, unidas uma à outra por um atrativo comum para
com Deus: simpatia de todo o ponto celeste, afeição inteiramente divina de dois
corações, dando-se o ponto de reunião no Coração de Jesus, cioso da perfeição
um do outro, e pondo todo o ardor do seu zelo em procurá-la e aumentá-la”[4].
Tendes admirado, Senhora,
tendes abençoado esta fraternidade inteiramente especial, esta doce e santa
amizade, unindo sob a vossa vista maternal, duas almas que pareciam ser-vos
igualmente queridas, e que honravam a Virgem das Virgens mais ainda imitando a
sua piedade do que possuindo o seu nome.
Agora que uma delas, vossa
filha por natureza, subiu ao Céu, a outra ficou junto de vós como filha por
adoção. A sua presença é-vos deliciosa, como muitas vezes me dissestes, porque
credes encontrar nela a vossa filha muito querida. Encontrá-las-eis unidas no
Paraíso, encontrá-las-eis continuando a santa intimidade da sua recíproca afeição,
encontrá-las-eis, finalmente, rivalizando para convosco em respeito e amor.
A vossa própria felicidade
aumentará muito à vista desta venturosa união.
[1] Lettres de saint François Xavier,
traduzidas por A. M. F., t. II, p. 203, carta XCIII no. 3.
[2]
Ibid., t. I, p. 161, carta XLIII, no. 4.
[3]
Ibid., p. 8, carta II, no. 1.
[4]
Marcos, Le Ciel, apêndice, IIIa.
questão.