Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI
NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
S É T I M A C A R T A
Conclusões práticas
I
O conhecimento das
criaturas, comparado ao do Criador, é muito diminuto. – É todavia uma parte da
bem-aventurança acidental. – Os bem-aventurados sabem todos os mistérios do
passado, e deles se regozijam. – Sabem especialmente o que se refere aos seus
parentes e amigos. – Nuvem luminosa dos testemunhos que o provam. – Os contraditores
fazem um grande mal.
Tudo quanto vos tenho escrito
até aqui não deve fazer-vos esquecer que a essência da bem-aventurança é a
clara visão ou a intuição do próprio Deus.
O conhecimento das criaturas,
acrescentado ao do Criador, parece aos bem-aventurados menos do que uma gota de
água lançada no mar. Eles dizem com o filho de Amós: “Todas as nações, todas as
famílias dos homens, dos anjos e dos astros, não podem, de modo algum,
comparar-se com Deus; elas estão na sua presença como se não estivessem, e pesam
tanto na sua balança como se não existissem”. (Is., XL, 15, 17)
Dizem ainda com o filho de Mônica:
“Senhor, Deus de toda a verdade, quão desgraçado é o homem que conhece todas as
criaturas, e não vos conhece a Vós! Quão afortunado é todo aquele que vos
conhece, quando mesmo não conheça mais coisa alguma! Aquele que une estas duas
ciências, a do Criador e a das criaturas, não vê aumentar a sua felicidade pelo
conhecimento dos seres criados; mas só Vós, ó meu Deus, o tornais feliz”[1].
Nem por isso é menos verdade,
como creio ter-vos suficientemente demonstrado, que uma parte da
bem-aventurança acidental reservada pelo Senhor a todos os seus escolhidos,
consiste no conhecimento das criaturas.
É este um belo ponto de
meditação, que o célebre P. Coton não receava de propor a uma rainha de França[2],
e que um beneditino também propunha aos seus religiosos para os consolar no
momento da morte[3].
Os bem-aventurados sabem todos
os mistérios do passado, e alegram-se com um espetáculo que muitas vezes nos
entristece.
“Que direi, escrevia um sábio e piedoso cardeal, tratando da
eterna felicidade dos santos, que direi do decurso dos tempos e dos séculos,
desde o seu princípio até ao fim? Que deleite não causará aos escolhidos a lembrança
de tantas vicissitudes e mudanças entre as coisas que a inimitável Providência
governa com sabedoria e conduz a seus fins? Lá haverá esta impetuosidade do
rio, que tão maravilhosamente alegra a Cidade de Deus – Fluminis impetus laetificat civitatem Dei! (Ps. XLV, 5).
O que será, efetivamente, a
ordem ou a sucessão dos séculos, que passam rapidamente e nunca interrompem o
seu curso, senão a impetuosidade dum rio que, sem descanso, faz girar as suas
águas, arrastando-as até ao mar, onde se mergulham e desaparecem? Entretanto, o
rio passa e os tempos correm, muitos homens duvidam da Providência de Deus.
Entre os seus próprios servos,
há muitos que são perturbados ou gravemente tentados, e que se queixam do seu
governo. Porque esta rápida corrente do rio causa muitas vezes grandes danos
aos bons, e grandes vantagens aos maus, pois leva a boa terra dos campos do
justo para deixá-la nos do ímpio.
Mas, quando os tempos
finalizarem a sua carreira e o rio tiver entrado no mar com todas as suas
águas, os santos lerão claramente, no livro da Divina Providência, as razões de
todas as desordens e de todas as revoluções.
Então a impetuosidade deste
rio, representada pela imaginação, alegrará a Cidade de Deus acima de tudo o
que pode dizer a língua dum mortal”[4].
Mas, segundo Bossuet, “no
infinito espelho da Divina Essência, onde se vê tudo, as almas dos
bem-aventurados descobrem principalmente o que toca às pessoas que lhes estão
unidas por ligações particulares”[5].
É o que provam de sobejo todos
os testemunhos que tenho referido, em vez de falar por mim mesmo. Fi-lo assim
para que vos fosse mais fácil consolar-vos, vivendo deste modo, durante algumas
horas, na companhia e mesmo na intimidade dos santos e dos doutores, cujo
coração foi sempre tão sensível e compassivo.
Se alguém, pois, ainda ousar
dizer-vos que não nos reconheceremos no Céu, mostrai-lhe esta nuvem de
testemunhos de que fala o Apóstolo (Hebr. XII, 1 ), e que paira sobre a vossa
cabeça.
Todos os autores que vos tenho
citado, e muitos outros de que me poderia ter servido, são sábios e virtuosos.
Eles formam uma nuvem cujo brilho rende testemunho ao Sol da verdade, que
nasceu no mundo, e os doura com seus raios. Formam uma nuvem cuja suavidade e
escuridão faz repousar docemente os nossos olhos e deixa esperar aos nossos
corações uma chuva fecunda em consolações celestes.
Os seus contraditores também
formam nuvens, mas tenebrosas e ameaçadoras. Aumentam o horror da noite que nos
envolve, derramam negra tinta sobre o eterno dia que esperamos. Roubam ao nosso
conhecimento e ao nosso amor esses brilhantes astros a que chamamos
bem-aventurados do Paraíso, e forçam os nossos olhos a fixarem-se dolorosamente
nos túmulos, quando teríamos maior necessidade de os levantar para o Céu, a fim
de nele encontrarmos alguma luz e alegria. Negar que nos reconheceremos no seio
da glória, junto de Deus, é fazer-nos um grande mal, aumentar-nos a tristeza e
lançar-nos no desespero ou desalento.
Mas divulgar a importante verdade
que se acaba de estabelecer é aliviar a aflição, sustentar a piedade e reanimar
o zelo.
Eis as três conclusões
práticas que me resta desenvolver-vos.
[1]
Santo Agostinho, Confissões, liv. V, cap. IV, no. 7.
[2] Sermons sur les principales et plus difficiles matières de la foi,
feitos pelo P. Coton, e reduzidos pelo mesmo à forma de meditações. Du Paradis, medit. XXI, profits, no. 14.
[3] Le Religieux mourant, ou Préparation à la mort pour les personnes
religieuses, por um beneditino de S. Mauro. Avinhão,
1731, cap. XI, & 5 e 6. t. I, p. 257, 266.
[4]
Bellarmino, De Aeterna felicitate
sanctorum, liv. IV, cap. IV.
[5] Bossuet, Sermon pour profession d’une demoiselle que la reine mère avait
tendremente aimée – Péroraison.