Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI
NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
Q U I N T A C A R T A
Reconhecimento dos amigos ou a amizade no Céu
I
Todos os santos se têm
comprazido no pensamento de reconhecer e amar ainda no Céu os seus amigos. – Sentimentos
do B. Etelredo. – Palavras do P. Rapin. – Santo Ambrósio. – O Santo Cura d'Ars.
SENHORA,
Além do estreito círculo da
família, pode a amizade estender a vasta esfera das nossas afeições.
O Homem-Deus quis ter amigos
na terra, e dignou-se reuni-los em volta de Si no Céu. A Seu exemplo, os mais
santos personagens deixaram dilatar o amor de seu coração; todos tiveram amigos
escolhidos entre mil, e todos se têm regozijado com o pensamento de os
reconhecerem e amarem ainda na eterna glória.
Também escreveram admiráveis
páginas a respeito da verdadeira e perfeita amizade, que é toda espiritual.
Apenas vos citarei uma que diz particular respeito ao nosso assunto. É do
bem-aventurado Etelredo ou Aelredo, contemporâneo de S. Bernardo e abade da
ordem dos Cistercienses, na Inglaterra. É uma conversa com um amigo.
Aelredo.
Suponhamos que não haja neste mundo pessoa alguma além de vós, e que todas as
delícias, com todas as riquezas do universo, estejam à vossa disposição, ouro,
prata, pedras preciosas, cidades muradas, acampamentos fortificados por torres,
grandes edifícios, esculturas e pinturas. Suponhamos ainda que estejais
restabelecido no antigo estado, e que todas as criaturas vos sejam submissas
como ao primeiro homem. Pergunto-vos: Todas estas coisas poderiam ser-vos
agradáveis sem um companheiro?
Gualter. Não, por
certo.
Aelredo. Mas se
tivésseis somente um companheiro cuja língua ignorásseis, cujos costumes
desconhecêsseis, e cujo coração e espírito vos fossem ocultos?
Gualter. Se, por
qualquer sinal, eu não pudesse saber se sim ou não ele era meu verdadeiro
amigo, desejaria antes estar só do que ter um tal companheiro.
Aelredo. Mas se
houvesse alguém a quem amásseis como a vós mesmo e que vos amasse também do
mesmo modo, sem que nenhum de vós o pudesse duvidar, todas as coisas que até
ali vos apareciam amargas não se vos tornariam doces e suaves?
Gualter. Sim,
certamente.
Aelredo. Não será
ainda verdade que quanto maior fosse o número de tais amigos, mais feliz vos
julgaríeis?
Gualter. É muito
verdade.
Aelredo. Eis
precisamente a grande e admirável felicidade que esperamos gozar no Céu. Deus
operará, Deus derramará, entre si e a criatura que tiver elevado ao Paraíso,
entre os graus, ou ordens que tiver distinguido, entre todos os predestinados
que tiver escolhido, uma tão grande amizade, uma tão grande caridade, que se amarão
reciprocamente como a si mesmos. Resultará deste mútuo amor o regozijar-se cada
um com a felicidade do próximo tanto como com a sua própria. Assim a felicidade
de cada um será comum a todos, e a soma destas bem-aventuranças, será própria a
cada um.
Ali nenhum pensamento será
oculto, ali nenhuma afeição se dissimulará, tal é a eterna e verdadeira amizade
que tem princípio na terra e se completa no Céu; que na terra pertence a um
pequeno número, porque também aqui são poucos os bons, mas que no Céu pertence
a todos, porque todos ali são bons.
Neste mundo é necessário
experimentar nossos amigos, porque os sábios estão misturados com os tolos; no
Céu não há necessidade de se ser provado, porque todos gozam duma perfeição
angélica e quase divina.
Procuremos, pois, encontrar
semelhantes amigos, que nos amem e a quem amemos como a nós mesmos, que nos
descubram todos os seus segredos, e a quem descubramos todos os nossos, que
sejam firmes, estáveis e constantes em todas as coisas.
Com efeito, pensais vós que se
encontre alguém entre os mortais que não queira ser assim amado?
Gualter. Não creio.
Aelredo. Se vísseis alguém, vivendo no meio
dum grande número de homens e tendo-os a todos por suspeitos, temendo-os mesmo como
se quisessem atentar contra a sua vida, não amando pessoa alguma e crendo não
ser amado por ninguém, não o consideraríeis o mais desgraçado de todos?
Gualter. Sem
dúvida.
Aelredo. Não
negareis, pois, que o mais feliz será aquele que habita e repousa no coração
daqueles entre os quais vive, que os ama a todos e que é igualmente amado, sem
que esta suavíssima tranqüilidade seja diminuída pela suspeita ou repelida pelo
temor.
Gualter. Muito
bem, certissimamente.
Aelredo. Se é
difícil que todos obtenham esta felicidade no presente, ao menos o futuro no-la
reserva; e julgar-nos-emos tanto mais felizes no Céu, quanto maior for o número
de semelhantes amigos que tivermos na terra.
Antes de ontem passeava eu em
volta do mosteiro, enquanto meus irmãos reunidos e assentados formavam a mais
amável companhia, e como se estivera no meio das delícias do Paraíso, admirava
as folhas, as flores e os frutos destas místicas árvores. Não divisando nesta
multidão pessoa alguma que não amasse, e de quem não tivesse a segurança de ser
amado, fiquei inundado duma tão grande alegria que excedia a todos os prazeres
deste mundo. Sentia o meu coração entornar-se em todos, e os corações de todos
entornarem-se em mim, de sorte que dizia com o Profeta:
“Oh! como é bom; oh! como é
agradável viver unidos como irmãos (Ps. CXX11, 1)”[1].
Estes sentimentos do
bem-aventurado Aelredo justificam estas palavras de um autor mais moderno:
“Ah! se eu tivera expressões
assaz ternas e fortes para descrever a doçura das castas e espirituais amizades
que terão lugar no Céu, onde não se amará senão pelo espírito, e para explicar
todas as santas ternuras, que os bem-aventurados terão uns para com os outros,
e as comunicações amorosas em que os impuros vapores da carne e todo o comércio
vergonhoso dos sentidos não terão parte; que prazeres e que delícias não faria
eu sentir às almas puras que só aspiram ao gozo destas celestes afeições, que
farão uma das grandes felicidades da outra vida, porque estarão misturadas com
o gozo do mesmo Deus, e com as inefáveis doçuras de seus divinos abrasamentos! Que poderá aqui haver de
delicioso aos sentidos que mereça ser comparado a estes prazeres? Se uma amizade
sincera, honesta, fiel e inocente faz muitas vezes a doçura desta vida, que
fruto se não tirará destas espirituais amizades, que se praticarão no Céu,
acompanhadas de todas estas circunstâncias? E se um amigo seguro e fiel
pode, na terra, tornar um outro amigo feliz, qual será a felicidade da vida
eterna, onde todos os bem-aventurados serão verdadeiros amigos?”[2].
Ora, uma das alegrias destes
verdadeiros amigos será reconhecerem-se na Igreja Triunfante, assim como na
Igreja Militante é também uma das suas alegrias vazarem o coração no seio uns
dos outros.
Assim pensava Santo Ambrósio,
quando comentava estas palavras de Nosso Senhor: “Vós sóis meus amigos, porque
vos revelei tudo o que aprendi de meu Pai” (Joan., XV. 15).
“Por estas palavras, diz ele,
deu-nos, o Salvador, a forma da amizade que devemos seguir. É necessário que
revelemos ao nosso amigo todos os segredos que se encerram no nosso coração, e
que não ignoremos também os seus. Abramos-lhe, pois, o nosso coração, e que ele
nos abra igualmente o seu.
Um amigo nada tem de oculto.
Se ele é sincero, patenteia o seu espírito, como Jesus patenteava os mistérios
de seu Pai”[3].
Assim pensava esse humilde e
santo padre de nossos dias, que foi um grande apóstolo sem sair da sua pobre
aldeia onde a multidão o visitava quando vivo e o visita ainda depois da sua
morte. Eis aqui algumas das suas consoladoras frases:
Com quem estaremos no Paraíso?
Com Deus que é nosso Pai, com Jesus Cristo que é nosso Irmão, com a Santíssima
Virgem que é nossa Mãe, com os anjos e os santos que são nossos amigos. Um rei
dizia com bastante pesar em seus últimos momentos:
“É necessário, pois, que eu
deixe o meu reino a fim de ir para um país onde não conheço ninguém!
É que ele nunca tinha pensado
na felicidade do Céu. É preciso desde já arranjarmos verdadeiros amigos, a fim
de os tornarmos a encontrar depois da morte; e não teremos receio, como este
rei, de não conhecermos ninguém”[4].
Não disse o próprio Salvador:
“Empregai as riquezas injustas
em obter amigos, a fim de que, quando morrerdes, eles vos recebam nos eternos
tabernáculos?” (Luc. XVI. 9).
[1] B.
Aelredus, De spiritali amicitia, lib.
111.
[2] P. Rapin, La Vie des prédestinés dans la B. Eternité , cap.
IX
[3]
Santo Ambrósio, De Officiis, liv.
III, cap. XXII, no. 135.
[4] O
Santo cura d’Ars, Vie de J. B. Marie Vianney, por Alfredo Monuin, liv. IV, cap.
XV, homilia para a última dominga do ano.