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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
QUARTA CARTA
Reconhecimento dos parentes ou a família no Céu
I
Reflexo dos três principais mistérios da nossa religião na família
cristã. – A família recomposta no Céu. – Palavras de Tertuliano. – Exemplo de
Nosso Senhor. – Tocante espetáculo que oferecerá o Paraíso. – Jesus e Maria
reconhecem-Se. – Maria tem cuidado de Jesus no Sacramento do Seu amor. – Ela conserva
sobre o Seu Coração um soberano poder.
SENHORA,
Desejaríeis saber,
particularmente, o que acontece à família no Céu, isto é, se Deus ali a
recompõe, e se a esperança de possuir vossos parentes na pátria celeste é uma
consolação de que possais gozar sem receio, sem escrúpulo e sem imperfeição. Podereis duvidá-lo, quando
tantos santos personagens vo-lo afirmam, tanto por seus exemplos como por suas
palavras?
Deus coroou de glória e honra
a família cristã, e faz brilhar em sua fronte o reflexo dos três principais
mistérios da nossa religião. Vede por onde ela começa: – Por um Sacramento que
é o sinal sagrado da união do Verbo de Deus com a natureza humana, da união de
Jesus Cristo com a sua Igreja, e da união do mesmo Deus com a alma justa.
Quem o disse? Um grande Papa,
Inocêncio III[1].
Vede por onde continua: “Maridos, amai vossas mulheres como Jesus Cristo amou a
sua Igreja e se entregou por ela; mulheres, amai vossos maridos como a igreja
ama a Jesus Cristo e se entrega por Ele”.
Quem o disse? O grande
apóstolo S. Paulo (Eph., V, 25).
Vede por onde acaba: – Pelas relações de origem que os anjos nos
enviam, tanto elas nos recordam as da Trindade e nos procuram alegrias; porque
o homem é do homem como Deus é de Deus. Homo
est de homine, sicut Deus de Deo. Assim o disse um grande doutor, S. Tomás
de Aquino[2].
Mas teria mais poder o sopro
da morte para destruir esta obra prima, do que a virtude força para lhe
conservar o esplendor? E visto que o amor é forte como a morte (Cant., VIII,
6), dar-se-á que a caridade de Deus, que criou a família, que a caridade do
homem que lhe santifica o uso, não queira ou não possa refazer eternamente no
Céu o que a morte desfez temporariamente na terra?
Tertuliano dizia:
“Na vida eterna, Deus não separará
aqueles que unira na terra, cuja separação também não permite nesta vida
inferior. A mulher pertencerá a seu marido, e este possuirá o que há de
principal no matrimônio – o coração. A abstenção e ausência de toda a
comunicação carnal, nada lhe fará perder. Não será tanto mais honrado um marido
quanto mais puro for?”[3].
Aquele que nos deu este preceito: Não separe o homem o que Deus uniu (Math., XIX, 6), deu-nos também
o exemplo. O Verbo contratou com a humanidade um divino desponsório: repudiou
ele porventura a sua esposa subindo ao Céu?
Pelo contrário, fê-la assentar
consigo à direita do seu Eterno Pai.
O Homem Deus tem uma Mãe que é
bendita entre todas as mulheres: dedignou-Se Ele de fazê-la participante da Sua
glória? Depois de associá-la à Sua Paixão na terra, fê-la gozar das alegrias da Sua Ressurreição e dos esplendores do Seu triunfo, atraindo ao Céu, após de Si,
o Seu corpo e Sua alma.
Jesus Cristo tinha dado a
alguns homens o nome de irmãos: desconhecê-los-ia mais tarde? Não. Reconheceu
os Seus Apóstolos no martírio que sofreram por Ele, e fez-Se reconhecer por
eles no esplendor de que os cerca na Corte Celeste.
Mas o Filho de Deus que assim Se dignou recompor, em redor de Si, a sua família por natureza e por adoção,
não quereria recompor da mesma forma, no Paraíso, esta cristã e religiosa
família, que é a vossa e também a sua? Quer, sim, e o Céu oferecerá um espetáculo
não menos tocante do que admirável.
Assim como a primeira pessoa da Augustíssima Trindade, dirigindo-se
à segunda, lhe diz: Tu és meu Filho, eu
hoje te gerei (Act., XIII, 33); e a segunda diz à primeira, com o acento da
piedade filial: Meu Pai, Pai justo, Pai
santo, guarda aqueles que me foram dados em teu nome para que sejam um, como
nós somos um, vós em mim e eu neles (Joan., XVII, 11, 22-25): assim também
uma criatura humana se voltará para outra e lhe dirá com ternura: Meu filho, minha filha! E do coração
desta subirá para aquela, esta exclamação de amor: Meu Pai!
Assim como o único Filho de Deus se regozija de poder dizer
a uma mulher: Vós sois minha Mãe;
também inumeráveis escolhidos exultarão de alegria dizendo igualmente a uma
mulher: Minha mãe!
Ora, se fosse verdade que os
membros da mesma família se não reconhecessem no Céu, Jesus não reconheceria já Sua Mãe nem seria reconhecido por Ela. Não será horrível pensar nisto e muito
mais dizê-lo? Um piedoso autor estava por
certo mais bem inspirado, quando escrevia:
“A Santíssima Virgem conserva
intacta a Sua autoridade maternal sobre o corpo do Seu Filho, Nosso Senhor, mesmo
depois da Ressurreição e Ascensão; porque o Seu direito é perpétuo e
inalienável.
Depois de se ter deleitado,
durante a Sua vida mortal, na submissão a Maria, Jesus compraz-Se ainda em
mostrar-Se Seu filho na bem-aventurada imortalidade, e em reconhecê-lA por Sua
Mãe. Temos a prova disto nessas numerosas aparições, em que Ele se tem feito
ver sob a forma de um menino entre os braços de Sua Mãe, e se tem mesmo dado a
alguns Santos por Suas virginais mãos. Na glória, os parentes conservam um
contínuo cuidado de seus próximos, e particularmente dos filhos, que são uma parte
deles mesmos, e por assim dizer, outros eles. É, pois, indubitável que a Mãe de
Jesus tem sempre o pensamento unido a tudo o que toca ao corpo do Seu querido
Filho, tanto na obscuridade do Sacramento como nos esplendores da glória. Segue-O,
do alto do Céu, com a vista e com o coração em todos os lugares em que Se encontra
presente na terra, pela consagração eucarística”.[4]
A eterna duração desta
maternal ternura e desta filial piedade, explica e justifica o belo título de
Nossa Senhora do Sagrado Coração, dado a Maria pelos nossos contemporâneos.
“Tomando a natureza humana, disse o sr. Bispo de Rodes, o
Verbo Divino apropriou-se de todos os elementos que a compõem, no estado de perfeição
a que a elevou a união hipostática – Debuit
per omnia fratribus similiari (Hebr., II, 17).
Nosso Senhor possui no mais
alto grau o sentimento do amor filial, um dos mais nobres do coração humano, e
longe de Se despojar dele depois da ressurreição e da Sua gloriosa ascensão,
tê-lo-ia dilatado, fortificado e elevado no seu mais sublime poder, se fora
permitido dizê-lo, no Seu estado de bem-aventurada transfiguração, em que está assentado
à direita de Seu Pai.
Daqui é fácil de concluir que
a augusta Virgem Maria possui sobre o Seu divino Coração um soberano poder, de
que Ela é verdadeiramente a Senhora ou a Rainha”[5].
[1]
Inocêncio III, Prima collectio
Decretalium, titul. XL, epist., t. I, p. 600, édit. Baluz.
[2] S. Tomas, Summ. I, p., q. 93, art. 3.
[3]
Tertuliano, De Monogamia, cap. X.
[4] De Machault, Le Trésor dês grands biens de la T. S. Eucharistie, Nat. de la T. S. Vierge, III. p.
[5] Notice sur l’association em l’honneur de N. D. du Sacré-Coeur, no.
1.