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NO CÉU NOS
RECONHECEREMOS
Pelo
Pe. F. Blot, da Companhia de Jesus
Versão 19.ª edição francesa
pelo
Pe. Francisco Soares da Cunha
II
Não estaremos mais absortos do que os
anjos, na contemplação do Criador. – Como eles, contemplaremos as criaturas, e
poderemos entreter-nos com elas. – Veremos os condenados. – Reconhecer-nos-emos
tão facilmente como se reconhecem os puros espíritos. – Nada teremos de oculto,
segundo S Bernardo, S. Gregório e Santo Agostinho. – Todavia os nossos
pensamentos, assim como os dos anjos, não serão conhecidos contra nossa
vontade.
Esta mistura dos homens e dos
anjos nas mesmas hierarquias e nos mesmos coros, permite-nos responder a
algumas dificuldades, cuja solução parece estar na semelhança que teremos com
os puros espíritos.
Não existe motivo algum pelo
qual devêssemos estar mais absortos na contemplação de Deus do que os próprios
anjos. Desde o momento em que eles foram confirmados na graça, gozaram duma perfeita
bem-aventurança e ficaram arrebatados de admiração em presença da glória e da
majestade do Criador. Não se distraem d'Ele, quando lhes mostram as criaturas
que são obra Sua, e que Ele lhes permitiu contemplar e admirar, e quis mesmo
que as conduzissem e governassem.
Não estão distraídos, quando
nos acompanham durante a nossa peregrinação neste mundo, para nos guardar e
sustentar no bom caminho. Não o estão, finalmente, quando se interessam pela
conversão dum pobre pecador a ponto de se regozijarem mais da sua volta para
Deus do que da perseverança de noventa e nove justos (Luc., XV, 7, 10).
Da mesma sorte, diz Ansaldo,
por mais ocupados que estejamos no Céu, da glória e da imensidade do Soberano
Bem, poderemos ainda ocupar-nos de todos os nossos amigos; não só dos que
tiverem ficado na terra, mas também dos que participarem da nossa felicidade.[1]
Esta mesma caridade que, na
terra, eleva o homem mortal da criatura ao Criador, o fará inclinar-se das
sublimidades da Pátria para o mundo inferior, quando se tiver tornado imortal e
glorioso, assim como impele os anjos fiéis a descerem do Céu à terra, do
Criador à criatura.
O argumento que resulta desta
semelhança foi desenvolvido por S. Bernardo:
“Os espíritos superiores, que
desde todo o princípio estão no Paraíso, desprezarão a terra porque habitam o
Céu? Não. Visitam-na, pelo contrário e a freqüentam. Por isso mesmo que vêem
sempre a face do Pai celeste, não se desempenharão mais do ministério da
compaixão? Todos eles são enviados, diz o
Apóstolo, para exercerem o seu ministério em favor daqueles que recebem a
herança da salvação (Hebr., 1, 14). Como assim? Pois se os anjos vão e vêm para
socorrer os homens, os bem-aventurados, que são da nossa raça, não nos
conheceriam nem poderiam mais condoer-se de nós em certas circunstâncias em que
eles mesmos tiveram que sofrer?! Os espíritos, que nunca experimentaram dor
alguma, sentem contudo as nossas dores; e os santos que passaram por grandes
tribulações, não reconheceriam já o estado em que estiveram?!”[2]
O Anjo da Escola, S. Tomás,
demonstra que nem a contemplação da Essência Divina impedirá os bem-aventurados
de sentirem as coisas sensíveis, de contemplarem as criaturas, e mesmo de
operarem; nem este sentimento, esta contemplação e esta ação, os distrairá da
beatífica vista de Deus. Não se daria isto em Nosso Senhor durante
a sua peregrinação na terra?[3].
Sem nada perderem deste divino gozo, os bem-aventurados poderão conversar com
os seus parentes, com os seus amigos e com os mesmos anjos, como estes
conversam entre si.
Quando aplicamos fortemente,
neste mundo, uma das nossas faculdades a um objeto difícil, todas as outras
ficam sem força e ação. Mas, no Céu, cada uma das nossas potências terá toda a
plenitude da perfeição de que é capaz.
A inteligência dos santos será
iluminada pela luz da glória, e a sua vontade será fortificada pela pátria
sobrenatural da caridade, a tal ponto que nenhum esforço terão a fazer para
nunca perderem de vista a Divindade; mas contemplando-a e amando-a inteiramente,
lhes será fácil também contemplar os globos celestes, conversar com os escolhidos
e amar todos os bem-aventurados, como nos é fácil e natural neste mundo ver a
luz, conversar ao mesmo tempo com os nossos parentes ou amigos, e amá-los
ternamente[4].
Mas os santos verão os
condenados e os condenados verão os santos? Reconhecer-se-ão ao menos no juízo
final. A Escritura não nos permite duvidá-lo, pois que nos mostra os maus
exclamando, em presença dos bons: “São estes que outrora foram o objeto das
nossas zombarias! Quão insensatos éramos!” (Sap., V, 3, 4.)
Segundo Honório, os justos
verão os pecadores nos tormentos, para se regozijarem mais de se terem livrado
deles.
Também os condenados, antes do
juízo universal, verão os justos na glória para mais se afligirem de a terem
desprezado. Mas os bons verão sempre os maus nos suplícios depois do juízo, entretanto
que os maus nunca mais tornarão a ver os bons.[5]
Não se deve, porém, concluir daqui, que a bem-aventurança seja tanto uma visão
do inferno, como do Céu.
Só Deus pode ver tudo ao mesmo
tempo. Os santos, bem como os anjos, não contemplam incessantemente as simples
criaturas, nem todas ao mesmo tempo. Eles não vêem, pois, sem interrupção, as horríveis
torturas dos condenados. O Senhor mesmo desvia delas, quando lhe apraz, os seus
pensamentos e os seus olhos.
Os anjos não têm feição alguma
corpórea, e todavia reconhecem-se entre si, tanto como as três divinas Pessoas.
Não podemos negar o fato, ainda que ignoremos o modo.
Porque não admitiremos
igualmente este reconhecimento entre as almas dos bem-aventurados, antes da ressurreição
da carne? Porventura a alma de Jesus Cristo morto e sepultado, quando desceu ao
limbo, não foi reconhecida dos patriarcas, dos profetas e de todos os justos do
Antigo Testamento de quem ela se dignava ser consoladora? E como os teria
consolado, se não fosse vista, ouvida e reconhecida por eles? Pode mesmo dizer-se com
Monsenhor Malou, cujas palavras citamos na carta que serve de introdução a este
livro:
“As almas despojadas de seus
corpos revestem formas intelectuais que as inteligências separadas da carne
podem perceber, distinguir e conhecer”.
Finalmente, até que ponto se
conhecem os santos entre si? O abade de Claraval diz em geral: “Os
bem-aventurados então ligados entre si por um amor tanto maior quanto menor é a
distância em que se acham do próprio amor que é Deus.
Nenhuma suspeita pode
introduzir a divisão nas suas fileiras, porque entre eles nada há de oculto: o
raio da verdade que tudo penetra não o permite”[6].
Antes de S. Bernardo, tinha
dito um grande papa, que o coração dos bem-aventurados será brilhante como o
ouro, e transparente como o cristal, de sorte que se conhecerão entre si melhor
no Céu do que durante a sua vida na terra[7].
Antes de S. Gregório, dizia
também o ilustre Bispo de Hipona: “Nesta sociedade dos santos, verão todos reciprocamente
os pensamentos que só Deus vê agora. Assim como quereis que neste mundo se veja
o vosso rosto, também querereis que no outro se veja a vossa consciência[8].
Todos os espíritos bem-aventurados formarão somente uma cidade, um coração e
uma alma; e, nesta perfeição da nossa unidade, os pensamentos de cada um de nós
não serão ocultos aos outros”[9].
Contudo, a condição dos homens
não deve diferir, sob este ponto de vista, da condição dos anjos. Ora, um sábio
teólogo prova que estes puros espíritos têm uma linguagem que, sem ser sensível
ou corporal, é todavia mui inteligível; mas que os seus pensamentos não chegam
ao conhecimento uns dos outros, senão tanto quanto eles querem. É necessário
que um ato da sua vontade dirija este pensamento ou esta “palavra espiritual”
àquele a quem lhe agrada que seja conhecida. Podem assim falar a uns sem falar
a outros e sem ser entendidos ou compreendidos por todos. Pois a linguagem
angélica não parece ser outra coisa mais do que o destino ou a direção dum
pensamento, por um ato de vontade a algum destes puros espíritos que só então o
conhece[10].
[1]
Ansaldo, Della sperança..., cap. X.
[2] S.
Bernardo, in Natali sancti Victoris,
sermo II, no. 3.
[3] S.
Tomás, Summ., IIa. p, q. 84, art. II, 4.
[4] Ansaldo, Della speranza..., cap. X.
[5]
Honório d’Autum, Elucidarium, liv. III, no. 3.
[6] S.
Bernardo, In Dedication e Ecclesiae,
sermo I, no. 7
[7] S.
Gregório Magno, Moralium, liv. XVIII,
cap. XLVIII, no. 77, 78
[8]
Santo Agostinho, Sermo CCXLIII, cap.
5
[9]
Santo Agostinho, De bono conjugali,
cap. XVIII, no. 21.
[10]
Petau, De Angelis, liv. I, cap. XII,
nos. 7 e 11.