quinta-feira, 29 de abril de 2010

VII- OS FLAGELOS

VII- OS FLAGELOS


Do começo da vida até ao momento da morte, Jesus teve sempre diante dos olhos a Sua Paixão sangrenta.
Qual um artista que traz incessantemente consigo, numa gestação dolorosa, o ideal de que fará a sua obra prima.

Para Jesus, este grande drama da Paixão tem cinco atos principais: Ele os enumera, pormenoriza-os e sobre eles frequentemente comenta na intimidade da sua conversação com os Apóstolos.

O Filho do Homem, diz mais de uma vez aflitivamente, será traído (e ai daquele que O trair!): em conseqüência dessa traição será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos, que por sua vez O entregarão aos gentios”. E aí está o primeiro ato.

Depois será escarnecido, posto a ridículo. Et illudent ei. Ludibria-lO-ão, divertir-se-ão à Sua custa cinicamente. E nesta palavra, como num espelho profundo onde se refletissem cenas distantes, Jesus vê se desenrolarem todos os ultrajes do corpo da guarda, do Pretório, do palácio de Herodes, até a sinistra irrisão da coroa e do título real afixado à cruz: é o segundo ato.

O terceiro cifra-se numa palavra: Et conspuent eum: cuspir-Lhe-ão em cima. É um traço que O atormenta antecipadamente, frisa-O Ele com dolorosa precisão.

Et flagellabunt: será flagelado, açoitado como um escravo ou um animal malfazejo: é o quarto ato.

Após todas essas cenas, todas essas orgias de sangue, o quinto ato termina no Calvário.
Assim, como em cruel escorço, eis toda a Paixão do Cristo, tal qual O preocupa e O angustia de antemão.
A traição. As zombarias. Os escarros. Os flagelos. A cruz.

Tais são os cimos que Ele tem de galgar em menos de dezoito horas. Que profundezas de humilhações ser-Lhe-á forçoso atravessar para atingi-los!

Flagellabunt eum!

A flagelação parece ser, à luz da reflexão, uma cruel inutilidade: porque essa tortura suplementar a quem vai padecer a morte? A flagelação pode quando muito compreender-se como um castigo destinado a punir e a escarmentar.

Mas, para um condenado, não passa isso de um ato de selvageria. Aturou-o Jesus.

Tão bem o haviam compreendido os Judeus que, na conformidade da sua lei, ratificada por Deus, tinham que limitar no número dos golpes, trinta e nove, e o lugar onde se deviam aplicar esses golpes estava designado: as espáduas e o peito do réu.

Jesus não teve o benefício da Sua lei nacional.

Estava entregue aos gentios: ora, os gentios, mais bárbaros, mais cínicos, mais próximos dos baixos instintos, a despeito da sua civilização, não entendiam essas reservas no modo do castigo.
Ó Jesus! Fostes pois inteiramente despido e atado assim a uma coluna, com as mãos presas pela frente a uma argola, e o Vosso corpo se dobrava dolorosamente em dois!

Quanto tempo durou esse horrível suplício? Qual foi o número dos golpes?

Sabemos que eram gentios que batiam, que nenhuma lei limitava os golpes; – que eles eram estimulados pelos judeus; – que o homem entregue perdera toda reputação; – que já lhes era entregue em estado deplorável, coberto de poeira e de escarros, como um louco indigno de compaixão, um sedutor, um mágico; – que Pilatos, na sua cruel política, pedira um castigo de preferência severo; – que eles, os gentios, não queriam ficar atrás relativamente ao que fôra feito na noite precedente pela guarda de Caifás; – que, finalmente, eram soldados grosseiros, ávidos de espetáculos sangrentos.

Sabemos também que não se utilizavam varas para os estrangeiros e os escravos, mas sim flagelos engrossados de nós ou eriçados de pontas.

É provável portanto que aqueles verdugos não se tenham contentado com bater só no lado de trás do corpo, porém que, quando a sua Vítima ficou ensangüentada desse lado, a tenham cruelmente virado e sulcado de golpes, da cabeça aos pés o Divino Cordeiro a sangrar e a gemer sob os flagelos.

Supra dorsum meum fabricaverunt peccatores. Lavraram-me as costas todas. Prolongaverunt iniquitatem suam. E prolongaram a sua cruel prática (cf. Sl 128, 3).

Aí estão o lugar e a duração já indicados.

A planta pedia usque ad verticem, non est in eo sanitas, nem um só lugar sem laceração, da base ao vértice.

Vulnus et livor et plaga tumens. São só feridas, rasgos lívidos, chaga túmida (cf. Is 1, 6).

Como designar melhor os efeitos de uma longa e cruel flagelação? Nenhum dos suplícios suportados pelo Filho do Homem na Sua Paixão podia produzir efeitos semelhantes. E sob o dedo do profeta se remata a sinistra pintura:

Já não tinha forma, nenhuma beleza, o rosto está como suprimido, encolhido, aniquilado por aquela horrível dor; flagelado, açoitado como o último dos homens, assemelha-se o Seu corpo ao de um leproso; exangue, parece um galho mirrado que sai de uma terra seca. Podem-se-Lhe contar os ossos, postos a nu. Faz mal à vista, a gente desvia a cabeça, é um homem açoitado por Deus: açoitado, que digo? Ele está é triturado” (Isaías 53).

Estes pormenores não convêm senão à flagelação. Por que a quis Deus tão longa, tão cruel, tão especialmente horrível? Por que essa pintura do Profeta tão pungente, tão realista? Por que de per si constitui ela um ato do drama lúgubre? Por que acrescentou Ele que de antemão ela faz experimentar ao Filho do Homem um arrepio involuntário?

Os que conhecem o terrível mistério da depravação humana e as perversões de uma carne de que Deus queria fazer um invólucro radioso da alma pura, talvez compreendam os horrores da expiação divina.
Em duas circunstâncias memoráveis Deus alçou-se contra a carne culpada: no dilúvio, que cobriu o mundo corrompido, e em Sodoma e Gomorra, que inflamaram-se numa noite, quais sinistros archotes.

A mesma corrupção existe hoje em dia: se não tivéssemos a onda de Sangue Divino que correu na coluna, o mundo subsistiria ainda?

(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Perroy, SJ)

(Texto recebido por e-mail)

PS: Mantenho os grifos.