quinta-feira, 22 de abril de 2010

IV- OS ESCARROS E AS PANCADAS

IV- OS ESCARROS E AS PANCADAS


Não há expressão mais viva do asco do que o escarro à face de um homem.

Vai isto ainda mais longe do que a bofetada, parece que se apanha tudo quanto se tem no fundo de si de cólera, de reprovação, de sumo desprezo, para lançá-lo com a própria saliva ao rosto do inimigo.
Mal foi Jesus em casa de Caifás reconhecido réu de blasfêmia, que toda barreira se rompeu em torno dEle.

O Sumo Sacerdote, deixando bruscamente o estrado, rasgou violentamente a veste. Todos os outros juízes sentados em semi-círculo à volta dEle, pularam dos seus assentos. Os dois secretários, ocupados nas duas extremidades em recolher os depoimentos pró e contra o acusado, jogaram fora as suas tabuinhas.

Uma palavra estrondeou como um clamor, pôde-se ouvi-la do átrio: “blasfemou, é digno de morte”.

É um sinal. Alguns dos que estão na sala, juízes sem dúvida, aproximam-se-Lhe logo e Lhe cospem no rosto.

Vendo isto, os criados, os oficiais subalternos já se não contêm: cada qual quer fazer melhor.

De ordinário havia na própria sala do julgamento criados e soldados armados de látegos e de cordas para baterem o acusado ao primeiro sinal. É esta turba que se desenfreia. Breve já não bastam os escarros: esbofeteiam-nO; a bofetada é ainda nobre demais, dão-Lhe socos.

Podiam ser três ou quatro horas da madrugada: empurram Jesus, sempre atado, para algum canto; é Ele recebido por aquela criadagem, passa como um objeto desprezível e desprezado, batido pela frente, batido por detrás, batido ao passar.

Entrementes, os sinedritas se retiraram, com os cumprimentos de praxe; tornar-se-ão a encontrar nos alvores do dia para um novo conselho.

Jesus nesse ínterim é entregue sozinho aos soldados. Sabe-se o que seja uma soldadesca grosseira, de palavreado e gestos asquerosos, a divertir-se brutalmente, bebendo em excesso e tendo duas horas a passar em face de um condenado de marca, decaído juridicamente de grandeza.

Só a meditação do coração, os olhos do amor podem penetrar esses horrores.

 
Sabemos nós, com efeito, até onde tenham podido ir ultrajes contra o meigo Salvador?

Há uma emulação de ódios contra Ele.

Examinemos, interroguemos, experimentemo-lo pelos tratos e pelos ultrajes; disse-se Filho de Deus: vamos a ver se as suas palavras são verdadeiras” (Sb 2, 17-18).

Ademais, Ele está sozinho, abandonado, entregue.
Os juízes, com a aparência sempre temível da legalidade, já não estão lá.

Passa Ele por um sacrílego e por um blasfemador; é um condenado pela mais alta autoridade moral: os Sacerdotes.

Se eram judeus os soldados, bastava isto a explicar-lhes e a cobrir-lhes todos os ultrajes.

Se se lhes mesclavam os romanos, obsequiosamente prestados para a conjuntura, bastava ser Ele judeu e vencido: Roma não costumava sensibilizar-se inoportunamente.

E depois, é noite, e os guardas, quaisquer, estão cansados da sua tarefa, provavelmente enervados daquela faxina suplementar que lhes foi imposta. Portanto, agitam-se, gritam, riem, batem a torto e a direito, e babam nEle.

E bateram só na cabeça? Ou até onde levaram a insolência?...

Batiam-no e diziam muitas coisas contra Ele blasfemando”, nota São Lucas. Sem dúvida escarnecem principalmente o Seu título de profeta, a Sua magia, o Seu poder! É este ponto que se comprazem em repisar, porque vêem esse poder abatido!

Parece porém que o olho dos Profetas tenha sido ainda mais dolorosamente impressionado que o do Evangelista.

Jó exclama: “Arremessaram-se sobre mim como por uma brecha aberta... prostraram-me com as ondas da sua violência... Para eles tornei-me como lama, pó cinza!” (Jó 30, 14.19).

Como melhor pintar a opressão e o aniquilamento?

Abandonei meu corpo aos que me batiam, dizia Isaías, não desviei o rosto... quando escarravam em mim... arrancavam-me a barba, e eu deixava!” (Is 50, 6; 13, 5).

“Busquei em redor alguém para me socorrer; não havia ninguém!”

Ó esta solidão no meio dos inimigos!

Sou como o pelicano no meio do deserto... como a coruja numa casa desolada. Vê-lo, estou sozinho” (Sl 110, 7), insiste Ele.

Finalmente, foi dito: “Será saturado de opróbrios”. Cumpre pois que os tenha todos. Aliás, não é a gente alcoolizada que Ele está entregue? “Os que bebiam escarneciam de mim e me ridicularizavam, compondo cantigas contra mim”.

E alhures: “Tornei-me o objeto das suas trovas... e das suas fábulas” (Jó 30, 9). Advinha-se facilmente o que pudessem ser essas trovas improvisadas...

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(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Perroy, SJ.)

PS: Recebido por e-mail, mantenho os grifos.