sexta-feira, 2 de abril de 2010

Do Crucifixo

Do Crucifixo


Oh! invenção admirável do amor divino!

Para São Paulo à ciência do crucifixo reduzia-se toda a religião. Geralmente o Crucifixo é o compêndio de tudo quanto o cristão deve crer e praticar. O Crucifixo faz-nos conhecer toda a malícia do pecado, o excesso da nossa miséria e o excesso ainda maior da misericórdia divina.

O Crucifixo é a maior prova que Deus, embora sendo Deus, podia dar-nos do Seu amor e o meio eficaz que podia empregar para ganhar o nosso coração. Todas as virtudes acham-se contidas no Crucifixo: ele é a consumação dos caminhos interiores.

Direi uma palavra sobre cada um destes conceitos. A graça dirá muito mais ás almas dedicadas ou desejosas de se voltarem ao amor.

O Crucifixo é o compêndio de tudo quanto o cristãos deve crer. A pessoa Daquele que sofre, Filho único de Deus e concebido no seio de Maria por obra do Espírito Santo, nos propõe os dois grandes mistérios da Santíssima Trindade e da Incarnação. O objeto dos Seus sofrimentos nos instrui sobre o mistérios da Redenção e do pecado original.

O mistério da predestinação, o da graça, a vontade de Deus de salvar todos os homens encerram-se também na Cruz. Esta é a fonte de todos os Sacramentos, como me seria fácil mostrar minuciosamente; e todo o culto com que a Igreja honra a Deus reporta-se ao sacrifício da Cruz.

O Crucifixo é o compêndio de tudo quanto o cristão deve praticar. Toda a moral evangélica reduz-se a carregar cada um a sua cruz, renunciar a si mesmo, crucificar a carne e a cobiça, imolar-se á vontade de Deus. Jesus Cristo não prescreveu lei alguma nem deu conselho cujo cumprimento e perfeito modelo não se encontrem na Cruz. Ela é a mais viva e notável expressão de toda a doutrina evangélica.

O Crucifixo nos faz conhecer toda a malícia do pecado. Na verdade, não pode haver maior mal do que aquele que causou a morte de um Deus-Homem!

Antes de Jesus Cristo podia-se fazer alguma idéia da ofensa a Deus, porém, essa idéia era bem fraca e imperfeita. O suplício eterno do inferno, embora exceda a toda inteligência criada, não corresponde á malícia do pecado, porque pode castigar este, mas não basta para expiá-lo. Nada menos do que uma pessoa divina era necessária para reparar dignamente, por seus sofrimentos e humilhações, a injuria feita a Deus pelo pecado. Ao pé da Cruz é que aprendemos a julgar do pecado e a conhecer todo o horror que merece.

O Crucifixo ainda nos faz conhecer o excesso da nossa miséria, excesso tal, que não nos é possível remediá-lo por nossas próprias forças. Todo o gênero humano estava perdido irremediavelmente, perdido para a eternidade, para sempre privado da posse do soberano bem, se Jesus Cristo, sofrendo e morrendo na Cruz, não o houvesse resgatado, reconciliado com Deus, e restabelecido nos Seus direitos. Para isso bastava o pecado original, mas a esse pecado quantos pecados atuais mais graves não acrescentamos nós! Em que abismo de miséria não nos lançamos voluntariamente?

O Crucifixo faz-nos conhecer o abismo ainda maior da misericórdia divina. Um abismo atraiu outro abismo; o abismo dos nossos males foi absorvido e mergulhado no abismo infinito da misericórdia.

Oh! quanta razão tinha David em dizer que as misericórdias de Deus estão acima de todas as suas obras! Tudo quanto Deus fez na ordem da natureza nada é em comparação do que fez na ordem da graça. A bondade do Todo-Poderoso excedeu a si mesma, resgatando-nos. Nunca, nem mesmo no Céu, o nosso entendimento há de atingir a grandeza incompreendível desse benefício que a fé nos mostra no Crucifixo.

Deus, embora seja Deus, não nos poderia dar maior prova do Seu amor.

Qualquer prova por Ele dada devia ser consentânea aos direitos da sua justiça, aos quais não podia renunciar. Era mister fosse essa justiça aplacada. Mas por quem? Quem a poderia satisfazer, vingar e ao mesmo tempo poupar os culpados?

Oh! invenção admirável do amor divino! Deus transfere para o Seu próprio Filho todas as nossas iniquidades; n'Ele as castiga, vinga-se n'Ele e esse Filho adorável consente de todo o coração em ser por nossa causa a vítima da cólera divina! Que amor ao Pai! que amor no Filho! Quem pode pensar em tal arrebatamento de admiração e profunda gratidão?

Se Deus nos tivesse facultado propôr-lhe algum remédio para os nossos males, teríamos imaginado e escolhido por Ele? Se acaso este nos acudisse á mente, teríamos ousado propô-Lo? Semelhante meio de salvação só poderia ser concebido no coração de um Deus que nos ama infinitamente.

Se o nosso coração pode resistir a tanto amor, que dureza, que malícia, que ingratidão!

Deus imola o Seu próprio Filho, para retirar-nos do inferno e abrir-nos o paraíso; descarrega sobre Ele a Sua cólera e nos perdoa; nesse Filho nos adota por Seus filhos; confere-nos direito á Sua herança e nos prodigaliza todos os socorros sobrenaturais para a conseguirmos. E que nos pede Ele? Que O amemos, sirvamos e Lhe obedeçamos.

E nós não O amamos!
E consideramos o Seu serviço como jugo insuportável!
E violamos os Seus mandamentos!

Todos os crimes, todos os escândalos reinam hoje no cristianismo, com tanta e maior licença que entre os pagãos! A irreligião chegou a tal ponto que Jesus Cristo e a Sua Cruz tornam-se objeto de desprezo, zombaria e horror. A incompreensibilidade desse mistério de amor é exatamente a razão pela qual é rejeitado.

Poder-se-á conceber tal excesso de impiedade? Compreender-se-á até que ponto o amor desprezado, insultado e ultrajado deve estar irritado contra tantos cristãos apóstatas, secretos ou declarados!

Ah! que motivo para as almas boas amarem a Deus de todo o coração e O desagravarem, com sua dedicação, de tantos ultrajes! De que virtudes o Crucifixo não nos oferece modelo?

Amor de Deus, confiança em Deus, abandono ás suas vontades mais rigorosas, paciência inalterável, caridade para com o próximo, perdão das injúrias, amor dos inimigos, humildade, pobreza, abnegação inteira de Si mesmo; virtudes levadas ao cúmulo da perfeição, exercidas nas circunstâncias mais difíceis, praticadas com generosidade e coragem dignas de um Homem-Deus.

Depois disto, queixa-nos de que a virtude nos custa; disputamos a Deus bagatelas, censuramo-Lo por nos exigir demais. Um olhar para o Crucifixo fará nos envergonharmos das nossas queixas e da nossa covardia.

Temos sofrido e sofreremos em prol da nossa salvação algo que se aproxime, sequer de longe, dos sofrimentos e humilhações de Jesus Cristo? Ele era Deus - dirá alguém - e eu sou apenas uma fraca criatura. Ele era Deus, é verdade, por isso sofreu tudo quanto poderia sofrer a natureza humana unida á divina.

Se a união hipostática comunicava á Humanidade santa uma força infinita, proporcionados a esta foram os sofrimentos e, sem a poupar, a justiça de Deus carregou-a com todo o peso que ela podia suportar. É princípio de fé que Deus jamais permite sermos provados além das nossas forças.

Por mais fracos que sejamos, poderemos sempre suportar as provas que Ele nos envia, pois a medida do socorro iguala e mesmo excede sempre a dos males. Sem razão alegamos a nossa fraqueza e pensamos que para nós não sirva o exemplo do Salvador.

Finalmente, o Crucifixo é a consumação dos caminhos interiores. Mostra-nos Jesus Cristo sacerdote e vítima. Jesus imolando-Se Ele próprio á glória do Pai, imolando-Se voluntariamente e dedicando-Se á Sua justiça.

Poucas almas amadas por Deus são chamadas a esse estado de vítima e de semelhança expressa com Jesus crucificado. Mas as que têm motivo para se julgarem destinadas a essa honra devem compartilhar os sofrimentos e humilhações do Salvador; devem plantar no coração a Sua Cruz, ou antes, devem deixar que Ele mesmo a plante e enterre. Jesus submisso e obediente até á morte, deve ser o seu modelo, a sua consolação e força.

Se ás vezes as suas penas lhes parecem excessivas, se lhes faltar coragem; se forem tentadas a cusar Deus de injusto rigor, detenham os olhares no Crucifixo. Jesus na Cruz responderá a tudo e sairão de perto d'Ele com o desejo de sofrerem ainda mais.

Seja o Crucifixo o nosso grande livro, seja o livro não somente dos nossos olhos, mas do nosso coração.

Peçamos a Jesus que nos ensine a ler nesse livro e que nos descubra todos os Seus segredos, não para que apenas na oração os contemplemos, senão para os praticarmos durante toda a nossa vida. Entremos no caminho interior por uma dedicação absoluta, sem reserva, á vontade de Deus; entreguemo-nos inteiramente ao Seu espírito e á Sua graça. Façamos de todo o coração, no momento dado, todos os sacrifícios por Ele exigidos de nós; peçamos-Lhe que tome e arranque á força o que não teríamos coragem de dar-Lhe.

Em uma palavra, deixemo-nos reduzir ao estado de Jesus Cristo expirando na Cruz, nas dores, nos opróbrios, no aparente abandono do Pai, reunindo na Sua alma e no Seu corpo todos os males de uma vítima da justiça divina e do furor das paixões humanas.

(Excertos do livro: Manual das almas interiores - Pe. Grou - Companhia de Jesus)

PS: Grifos meus.