quinta-feira, 1 de abril de 2010

Quinta-feira Santa - Lava-pés e Instituição da Santa Eucaristia

Quinta-feira Santa
Lava-pés e Instituição da Santa Eucaristia


"Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas,
começou a lavar os pés dos discípulos."
( Jo 13,3-5)

Ora, discorramos por todas as ações de Cristo neste mesmo dia, sem sair dele, e veremos como todas confirmam este parecer. Quando o amoroso Senhor deu princípio à primeira, que foi lavar os pés aos discípulos, nota e pondera o Evangelista que se deliberou o Divino Mestre a uma ação tão prodigiosa, considerando e advertindo que seu Padre lhe tinha posto tudo nas mãos: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus, coepit lavare pedes discipulorum (Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas, começou a lavar os pés dos discípulos - Jo 13,3-5).

Muitas outras vezes se faz menção no texto sagrado deste tudo dado a Cristo por seu Eterno Padre: Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. Omnia quaecumque habet Pater, mea sunt. Omnia quae dedisti mihi, abs te sunt (Todas as coisas me foram entregues por meu Pai - Mt. 11,27 ; Todas quantas coisas tem o Pai são minhas - Jo 16,15; Todas as coisas que tu me deste vêm de ti - Jo 17,7)

E em outros muitos lugares. Pois se tantas vezes se repete que o Padre deu tudo a seu Filho, por que razão só neste lugar se diz que esse tudo lho pôs nas mãos: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus? Sem dúvida pela correspondência e oposição que têm as mãos com os pés. O intento do evangelista era encarecer o amor de Cristo neste dia para com os homens, e haver o Filho de Deus de lavar os pés aos homens, com aquelas mesmas mãos em que o Eterno Padre tinha posto tudo, parece que levantava tanto a baixeza da mesma ação, que chegava a tocar no Padre.

Por isso disse Pater, com grande advertência. Bem pudera o evangelista dizer Deus, como logo continuou: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deus vadit (Sabendo que Ele saíra de Deus, e ia para Deus - Jo 13,3) - mas disse nomeadamente Padre: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus - para, assim como contrapôs as mãos aos pés, contrapor também o Padre aos homens.

E verdadeiramente nesta oposição de mãos e pés, e de Padre a homens, parece que foram mais amados os homens, que o mesmo Padre.

O amor todo é estimação. E quem haverá que, vendo ao Filho de Deus lavar os pés aos homens com aquelas mesmas mãos em que o Padre tinha posto tudo, não lhe pareça que a olhos vistos fez mais estimação o Filho dos pés dos homens que das dádivas do Padre?

O Padre estimou tanto ao Filho que tudo quanto tinha pôs nas mãos do Filho: Ominia dedit ei Pater in manus (O Pai depositara em suas mãos todas as coisas - Jo 13,3) - e o Filho estimou tanto aos homens que, com tudo quanto o Padre lhe tinha posto nas mãos, pôs as mesmas mãos aos pés dos homens: Coepit lavare pedes discipulorum (Começou a lavar os pés dos discípulos - Jo 13,5).

- Notai este modo de lavar, que foi muito diverso do que costuma ser. Não lavou os pés aos homens com as mãos vazias, senão com as mãos cheias. Assim lavou, e assim havia de lavar, porque assim lava Deus. Deus quando lava, não só alimpa, mas enriquece: alimpa, porque nos tira as manchas da culpa, e enriquece, porque juntamente nos enche dos tesouros da graça.

Assim que, sendo Deus o que lavava os pés aos discípulos, claro está que não havia de ser com as mãos vazias, senão cheias. Mas, se estavam cheias de tudo o que nelas pôs o Padre, e essas mesmas mãos põe Cristo debaixo dos pés dos homens, como se não há de entender que estima mais os mesmos pés, que tudo quanto o Padre Lhe pôs nas mãos?

Dos cristãos da primitiva Igreja diz São Lucas que tudo quanto tinham vendiam, e punham o preço aos pés dos apóstolos: Afferebant pretia eorum quae vendebant, et ponebant ante pedes apostolorum (Act 4,34s). E por que lho punham aos pés, e não lho entregavam nas mãos, se era o preço de tudo?

Para mostrar, diz São Crisóstomo, que estimavam  mais os pés dos apóstolos que tudo quanto davam e quanto tinham. Entregar-lho nas mãos seria fazer estimação do que davam; pôs-lho aos pés era protestar veneração das pessoas, e, como estimavam mais as pessoas que as dádivas, por isso lhas punham aos pés, e não lhas davam nas mãos: ponebant ante pedes apostolorum.

Ó dádiva do Padre! Ó pés dos homens!
Ó amor e estimação de Cristo!

O Padre deu tudo quanto tinha ao Filho, e não lho pôs aos pés, senão nas mãos, porque estimou o que lhe dava quanto a mesma dádiva merecia, pois era tudo quanto tinha Deus. E que este tudo do Padre, de que estavam cheias as mesmas mãos do Filho, o pusesse o Filho, e mais as mesmas mãos aos pés dos homens!

O que podia daqui inferir o discurso, se não tivesse mão nele a fé, é que prezou Cristo mais os pés dos homens que as dádivas do Padre. Mas o certo, e a verdade, é que não foi nem podia ser assim. Amou e estimou o Filho sumamente as dádivas de seu Padre, tanto pelo que eram em si, como pelas mãos de quem vinham. Porém, esta mesma estimação não desfaz, ante reforça mais o mesmo discurso, porque dele se infere estima com sobre estimação, e amor sobre amor.

Quando a Madalena pôs aos pés de Cristo os alabastros, os ungüentos, os cabelos, os olhos, as lágrimas, as mãos, a boca, e a si mesma, não foi porque não estimasse tudo isto, senão porque tudo isto era o que mais estimava. E que conseqüência tirou dali, não outrem, senão o mesmo Cristo? Quoniam dilexit multum (Porque amou muito - Lc 7,47).

- Se pôr tudo o que mais estimava, e a si mesma, a Seus pés, inferiu o Senhor o grande excesso com que amava. E assim era, porque quando o que se preza muito em um amor se põe aos pés do outro, então se prova que este segundo é maior.

Logo, se assim o inferiu Cristo, porque não inferiremos nós o mesmo? Se tudo quanto o Padre pôs nas mãos do Filho, e as mesmas mãos e a Si mesmo, prostrado em terra, põe o Filho aos pés dos homens, como não há de parecer que os homens são os que mais estima, e os homens os que mais ama?

Para declarar o amor do Padre, foi-nos necessário fingir parábolas; para inferir o do Filho não é necessário fingi-las, basta aplicar uma e Sua.

Quando o filho Pródigo, em serviço de outro amor, empregou quanto tinha recebido de seu pai, e sua própria pessoa, até se abaixar às maiores vilezas de servo, não é certo que amou mais a quem se tinha rendido que a seu pai? Pois este pródigo foi Cristo, diz Guerrico Abade, e depois dele Guilherlmo, ainda com maior energia: Quis unicus prodigus invenitur sicut ille unigenitus Patris? (Guerr. Serm. un Pent. Guil. apud Euseb. in Theopol. p. 1, lib 1, c. 4)

O único pródigo que houve no mundo foi o Filho do Eterno Padre. - E por que Pródigo e único?

Pródigo, porque se pareceu com o Pródigo, e único, porque o excedeu. Pareceu-se com o Pródigo, porque assim como o Pródigo tudo quanto tinha recebido do pai, e a si mesmo, empregou em serviço e amor de quem o não merecia, assim Cristo, com tudo quanto Lhe tinha dado Seu Padre, e com Sua própria pessoa, serviu e amou aos homens e - para que a parábola ficasse inteira - a homens pecadores.

E excedeu muito o mesmo Pródigo, porque o Pródigo, obrigado da fome, foi buscar o pão à casa do pai, e Cristo não o foi buscar a outra parte, mas desentranhou-Se a Si mesmo, e fêz-Se pão: O Pródigo arrependeu-se do seu amor, e pediu perdão do que tinha amado, e Cristo não se arrependeu jamais, mas perseverou constante no mesmo amor até o fim: In finem dilexit eos.

Do ministério humilde do lavatório, passou o Senhor ao mistério altíssimo do Sacramento, e aqui se declarou Seu amor muito mais por parte dos homens. E porque? Porque para o Padre instituiu o Sacramento como sacrifício: para os homens instituiu o sacrifício como sacramento, e, posto que o mistério seja o mesmo, maior amor se argui dele enquanto Sacramento que enquanto sacrifício.

Como sacrifício consome-se: como Sacramento conserva-se; como sacrifício é ação transeunte: como Sacramento permanente; como sacrifício tem horas do dia certas: como Sacramento é de todo o tempo, de dia e de noite; como sacrifício não se aparta do altar, e de sobre a ara: como Sacramento sai às ruas, e entra em nossas casas; como sacrifício, enfim, tem por fim o culto e adoração do Padre: como Sacramento, a presença, a assistência e a união com os homens.

Vêde a diferença do amor na mesma instituição e na mesma mesa, que foi a mesa e o altar: Tibi - ao Padre - gratias agens. Discipulis - aos homens - accipite, et comedite: Ao Padre deu as graças, aos homens fez o banquete: ao Padre ofereceu-Se, com os homens uniu-Se.

E como Se uniu? É tal a união que os homens contraem com Cristo no Sacramento que, comparada com a mesma união que o Filho tem com o Padre, se a não excede enquanto união, excede-a muito enquanto amorosa.

Revelando Cristo a união altíssima que tem com Seu Padre, diz: Ego in Patre, et Pater in me est (Jo 14,10): Eu estou no Padre, e o Padre está em mim. - E declarando a união que tem com o homem no Sacramento, diz pelos mesmos termos: In me manet, et ego in illo (Jo 6,57): Ele está em mim, e eu nele. - E qual destas duas uniões tão parecidas é maior?

A que o Filho tem com o Padre é maior em gênero de união, porque é unidade; porém, a que Cristo tem com o homem no Sacramento é maior em gênero de amorosa, porque a fez o amor. Pois, a união que tem o Filho com o Padre não a fez o amor? Não, porque a união entre o Padre e o Filho funda-se na geração eterna antecedente a todo ato da vontade.

A nossa é obra da vontade do Filho: a do Filho é obra do entendimento do Padre. O Filho está no Padre, e o Padre no Filho, porque o Padre Se conheceu; e nós estamos em Cristo, e Cristo em nós, porque o Filhou nos amou. Logo, ainda em comparação da união que o Filho tem com o Padre, vence, sem controvérsia nem batalha, o amor dos homens.

Isto no sacramento enquanto sacramento. E passando ao sacrifício enquanto sacrifício, digo que também o mesmo sacrifício se ordenou a maior união de Cristo com os homens, que do mesmo Cristo com o Padre. Santo Agostinho, distinguindo esta união, e admirando o amor de Cristo nela, depois de advertir que todo o sacrifício se compõe de quatro partes:

Quid offeratur, a quo offeratur, cui offeratur, pro quibus offeratur (August. lib. 4, Trind. cap. 14): quem oferece, o que oferece, a quem oferece, e porquem oferece - diz que o fim que Cristo teve no admirável invento do Seu sacrifício, foi fazer que todos estes quatro, por meio Dele, fossem uma só coisa: Ut idem ipse unus, verusque mediator per sacrificium pacis reconcilians nos Deo, unum cum illo maneret, cui offerebat; unum in se faceret, pro quibus offerabat: unus ipse esset, qui oferebat, et quod offerebat.

Só a agudeza de Agostinho pudera penetrar os íntimos secretos de tão intrincado e bem tecido labirinto de amor.


No sacrifício do altar, quem oferece é Cristo, o que oferece é Seu corpo, a quem oferece é o Padre, por quem oferce são os homens. E como pode ser que todos estes quatros em um só sacrifício se unam de tal sorte que sejam uma e a mesma coisa?

Deste modo. Para que Cristo, que é sacerdote que oferece, fosse a mesma coisa com o sacrifício, fez que o sacrifício fosse de Seu corpo; para que os homens, por quem se oferece, fossem a mesma coisa com o sacrifício e com o sacerdote, fez que os homens O comêssemos; e para que o Padre, a quem se oferece, fosse a mesma coisa com os homens e com Cristo, fez que por meio do mesmo sacrifício Se reconciliasse o Padre com os homens.

Só o amor onipotente podia inventar um bocado, em que, sendo um só o que o come, fossem quatro, e tais quatro os que ficassem unidos.

Agora pergunto eu: e nesta união tão maravilhosa como verdadeira, à qual Cristo ordenou o mesmo sacrifício que oferecesse ao Padre, quem são os que ficam mais unidos a Cristo, o Padre, ou os homens? Não há dúvida que os homens. Porque a nossa união com Cristo é imediata e direta: a união do Padre com o mesmo Cristo é mediata e reflexa.

A nós uniu-nos Cristo imediatamente a Si: ao Padre uniu-Se o mesmo Cristo por meio de nós. Porque o Padre Se uniu a nós, por isso Cristo Se uniu ao Padre.

Se sorte que a união do Padre conosco foi o motivo.

Tornai a ouvir as palavras de Agostinho, e ouvi-as com atenção: Ut ipse unus per sacrificium pacis reconcilians nos Deo, unum cum illo maneret, cui offrebat: Ofereceu-Se Cristo ao Padre em sacrifício, para que, por meio do mesmo sacrifício, reconciliando-Se o Padre com os homens, Se unisse Cristo ao mesmo Padre.

Pois, para Cristo se unir ao Padre, é necessário que o Padre primeiro se una aos homens e se reconcilie com eles? Sim, que debaixo destas condições ama Deus quando parece que antepõe o amor dos homens ao Seu amor.

Si offers munus tuum ad altare, et ibi recordatus fueris quia frater tuum habet aliquid adversum te: vade prius reconciliari fratri tuo, et tunc offeres munus tuum (Mt 5,23s): Se tiveres posta a tua oferta ao pé do meu altar- diz Deus - e não estiveres reconciliado com teu próximo, vai primeiro reconciliar-te com ele, e então aceitarei a tua oferta.

Ao mesmo modo, e debaixo da mesma condição, se une Cristo ao Padre no sacrifício de Seu corpo. Assim como Deus não aceita a oferta do homem antes de o homem estar reconciliado com o próximo, assim Cristo não se une ao Padre antes de o Padre Se reconciliar com os homens: Ut reconcilians nos Deo, unum cum illo maneret.

Oh! assombro!
Oh! prodígio do amor de Cristo para com os homens, ainda em respeito do Padre!

O maior intérprete dos evangelistas, comentando este texto, infere dele que Deus em certo modo antepõe o amor do próximo ao Seu próprio amor: Dilectioni quodammodo sui proximi dilectionem anteponit (Maldonat. ibi).

E se esta força tem a condição de estar primeiro reconciliado o homem com o próximo, para Deus aceitar a sua oferta, por que não terá a mesma conseqüência o estar primeiro reconciliado o Padre com os homens, para Cristo se unir ao Padre?

E para que se veja quanta certeza tem isto que se chama em certo modo, ouçamos ao mesmo Cristo neste mesmo dia, e na mesma mesa em que instituiu o mesmo mistério: Ipse Pater amat vos, quia vos me amastis (Jo 16,27): O Padre ama-vos a vós, porque vós me amastes. - A força deste porquê é igual em um e outro caso.

Assim como o Padre ama aos homens porque os homens amam ao Filho, assim o Filho se une ao Padre porque o Padre se une aos homens. Logo, se amar o Padre aos homens, porque os homens amam ao Filho, é sinal de amar o Padre mais ao Filho que aos homens, também o unir-Se o Filho ao Padre, porque o Padre Se une aos homens será sinal de amar o Filho mais aos homens que ao Padre?

A fé não pode afirmar que seja assim, mas o entendimento não pode negar que o parece.

(Sermão Segundo do Mandato - VI - Volume VII - Padre Antônio Vieira - Editora das Américas)

PS: Grifos meus