quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Sobre as Bases da Ordem Nova - Pio XII

RADIOMENSAGEM DO SANTO PADRE PIO XII
NELL'ALBA E NELLA LUCE
SOBRE AS BASES DA ORDEM NOVA
24 de dezembro de 1941
(Tradução de Gederson Falcometa)

A todos os povos do mundo

Introdução

1. No dia que refulgente precede a festa do santo Natal, esperada sempre com vivo anélito de alegria suave e penetrante, quando toda a fronte está prestes a inclinar-se e todo o joelho a dobrar-se em adoração diante do inefável mistério da misericordiosa bondade de Deus, que na sua caridade infinita quis dar à humanidade o maior e mais augusto de todos os dons, o seu Filho Unigênito; o nosso coração, amados filhos e filhas, espalhados sobre a face da terra, dilata-se até vós, e, sem esquecer a terra, remonta-se às alturas e se aprofunda no céu.

2. A estrela, que, há vinte séculos, indica o berço do recém-nascido Redentor, resplandece ainda maravilhosa no céu da cristandade. Embora se amotinem as gentes, e se insurjam as nações contra Deus e contra o seu Messias (Sl 2,1-2); através das tempestades do mundo humano a estrela não conheceu, não conhece e não conhecerá jamais ocaso: o passado, o presente e o futuro são seus. Ela exorta a não desesperar nunca: resplandece sobre os povos, mesmo quando na terra, como sobre o oceano a bramir encapelado, se adensam cinzentos bulcões, geradores de destruições e misérias. A sua luz é luz de conforto, de esperança, de fé inabalável, de vida e certeza no triunfo final do Redentor, que transbordará, como torrente de salvação, na paz interior e na glória para todos os que, elevados à ordem sobrenatural da graça, tiverem recebido o poder de se tornarem filhos de Deus, porque nascidos de Deus.

3. Por isso nós, que nestes acerbos tempos de cataclismos bélicos sofremos com vossos sofrimentos e penamos com vossas dores, nós que vivemos, como vós, sob o gravíssimo pesadelo de um flagelo que dilacera - vai já em três anos -, a humanidade; na vigília de tão grande solenidade queremos, com comovido coração de pai, dirigir-vos a palavra, para vos exortar a permanecerdes firmes na fé, e para vos comunicar o conforto daquela verdadeira, exuberante e sobrenatural esperança e certeza, que irradiam do berço do recém-nascido Salvador.

A trágica situação atual

4. Realmente, amados filhos, se o nosso olhar se não levantasse acima da matéria e da carne, mal poderia encontrar algum motivo de conforto. É verdade que os sinos difundem a alegre mensagem do Natal, iluminam-se Igrejas e oratórios, as harmonias religiosas alegram os espíritos, tudo é festa e esplendor nos sagrados templos; mas a humanidade não cessa de dilacerar-se numa guerra de extermínio. O sagrado rito faz ecoar nos lábios da Igreja a admirável antífona: "O Rei pacífico mostrou-se na sua magnificência; toda a terra deseja contemplar a sua face";(1) mas ela ressoa em estridente contraste com os acontecimentos, que ribombam por planícies e montes com ruído aterrador, assolam terras e casas em vastas regiões, lançam milhões de homens com suas famílias na infelicidade, na miséria e na morte. É certo que há muitos espetáculos admiráveis de indômito valor na defesa do direito e do solo pátrio; de serenidade na dor; de almas que vivem como chamas de holocausto pelo triunfo da verdade e da justiça. Nós todavia com a angústia, que nos oprime a alma, ponderamos, e vemos, como num sonho mau, os terríveis embates de armas e de sangue deste ano que agora finda; a infeliz sorte dos feridos e dos prisioneiros; os sofrimentos corporais e espirituais, as mortandades, destruições e ruínas, que a guerra aérea leva e despenha sobre grandes e populosas cidades, sobre centros e vastas regiões industriais; as riquezas dilapidadas dos Estados, os milhões de pessoas que o imane conflito e a dura violência vão lançando na miséria e na fome.

5. E ao passo que diminui o vigor e a saúde de grande parte da juventude no período do crescimento em razão das privações impostas pelo atual flagelo, sobem ao contrário a alturas vertiginosas os gastos e os pesados encargos da guerra, os quais originando contração das forças produtivas no campo civil e social, dão sérios fundamentos às sinistras preocupações de quantos volvem o olhar ansioso para o futuro. A idéia da força sufoca ou perverte a norma do direito. Tornai possível e dai porta aberta a indivíduos ou a grupos sociais ou políticos para prejudicarem os bens e a vida alheia; deixai que todas as outras destruições morais perturbem e escaldem a atmosfera civil a calor de tempestade; e vereis as noções de bem e de mal, de direito e de injustiça perder os seus contornos definidos, embotar-se, confundir-se e em perigo de desaparecerem. Quem em virtude do ministério pastoral tem meio de penetrar nos corações, sabe e vê que cúmulo de dores e de ansiedades inenarráveis pesa, e cresce em muitas almas, cerceando-lhes o desejo e a alegria de trabalhar e de viver; sufocando-lhes os espíritos e tornando os mudos e indolentes, desconfiados e quase sem esperança perante os acontecimentos e as necessidades: perturbações da alma que não se podem olhar com indiferença, quando se tem a peito o verdadeiro bem dos povos e se deseja promover para breve a volta às condições normais e ordenadas da vida e atividade. Diante desta visão do presente, nasce uma amargura que nos invade o peito, tanto mais que hoje não se vê possibilidade de entendimento entre os beligerantes, cujos recíprocos fins e programas de guerra parecem estar em oposição irreconciliável.

Causa de tantos desastres: a descristianização do indivíduo e da sociedade

6. Quando se indagam as causas das presentes ruínas, diante das quais a humanidade, que as considera, fica perplexa, ouve-se não raro afirmar que o cristianismo falhou na sua missão. De quem e donde parte tal acusação? Porventura daqueles apóstolos, glória de Cristo, daqueles heróicos zeladores da fé e da justiça, daqueles pastores e sacerdotes, arautos do cristianismo que através de perseguições e martírios amansaram a barbárie e a prostraram devota ao altar de Cristo, iniciaram a civilização cristã, salvaram as relíquias da sabedoria e da arte de Atenas e de Roma, uniram os povos no nome cristão, difundiram o saber e a virtude, alçaram a cruz sobre os zimbórios e abóbadas das catedrais, imagens do céu, monumentos de fé e de piedade, que ainda levantam a fronte veneranda em meio das ruínas da Europa? Não; o cristianismo, cuja força deriva daquele que é caminho, verdade e vida e com ele está e estará até à consumação dos séculos, o cristianismo não faltou à sua missão; mas os homens rebelaram-se contra o verdadeiro cristianismo, fiel a Cristo e à sua doutrina; forjaram um cristianismo a seu talante, um novo ídolo que não salva, que não repugna às paixões da concupiscência da carne, à avidez do ouro e da prata que fascinam a vista, à soberba da vida; uma nova religião sem alma ou uma alma sem religião, uma máscara de cristianismo morto, sem o espírito de Cristo; e proclamaram que o cristianismo faltou à sua missão.

7. Cavemos até ao fundo da consciência da sociedade moderna, procuremos a raiz do mal: onde é que ela prende? Também aqui não queremos calar o louvor devido à prudência dos homens de governo, que ou favoreceram sempre ou quiseram e souberam repor em seu lugar com vantagem do povo os valores da civilização cristã nas felizes relações entre a Igreja e o Estado, na tutela da santidade do matrimônio, na educação religiosa da juventude. Mas não podemos fechar os olhos à triste visão da descristianização progressiva individual e social, que do relaxamento dos costumes passou ao enfraquecimento e à negação declarada de verdades e forças destinadas a iluminar as inteligências sobre o bem e o mal; a corroborar a vida familiar, a vida particular, a vida nacional e pública. Uma anemia religiosa, semelhante a contágio que alastra, feriu assim muitos povos da Europa e do mundo e produziu nas almas tal vácuo moral que nenhum simulacro de religião, nem mitologia nacional ou internacional o poderá encher. Com palavras e com fatos e com providências governativas, que outra coisa se tem sabido fazer, há dezenas e centenas de anos, senão arrancar dos corações dos homens, desde a infância à velhice, a fé em Deus, criador e pai de todos, remunerador do bem e vingador do mal, desnaturando a educação e a instrução, combatendo e oprimindo com todas as artes e meios, com a difusão da palavra e da imprensa, com o abuso da ciência e do poder, a religião e a Igreja de Cristo? 

8. Precipitado o espírito no báratro moral com o afastamento de Deus e da prática cristã, que outra coisa restava senão que pensamentos, propósitos, cuidados, estima das coisas, ação e trabalho dos homens se voltassem e olhassem só para o mundo material, afanando-se e suando por se dilatarem no espaço, por crescerem cada vez mais, além de todos os limites, na conquista das riquezas e do poder, para competirem em produzir, mais rapidamente e melhor, tudo o que parecia requerer o adiantamento e o progresso material? Daqui na política a prevalência de um ímpeto desenfreado para a expansão e para o mero prestígio político, sem preocupações de moralidade; na economia o dominar das grandes e gigantescas empresas e associações; na vida social o acorrer e acumular-se de multidões de povos, em prejudicial superabundância, nas grandes cidades e nos centros industriais e comerciais, com a instabilidade que segue e acompanha sempre uma multidão de homens que mudam de casa e residência, de terra e emprego, de paixões e amizades.

Funestas conseqüências

9. A conseqüência de tudo isto foi que as mútuas relações da vida social tomaram um caráter puramente físico e mecânico. Com desprezo de todo o razoável resguardo e moderação sobrepôs-se o império da coação externa, a simples posse do poder as normas da ordem reguladora da convivência humana, emanadas de Deus, que estabelecem as relações naturais e sobrenaturais do direito e do amor para com os indivíduos e para com a sociedade. A majestade e a dignidade da pessoa humana e das sociedades particulares foi cerceada, aviltada e suprimida pela idéia da força que cria o direito; a propriedade particular para uns tornou-se num poder direto de desfrutar o trabalho alheio, noutros gerou inveja, descontentamento e ódio; e a organização que daí nasceu converteu-se em forte arma de luta para fazer prevalecer os interesses de classe. Em alguns países um conceito ateu e anticristão do Estado com os seus vastos tentáculos enleou de tal modo o indivíduo, que quase o despojou da independência, não menos na vida particular que na pública.

10. Quem poderá hoje maravilhar-se, se esta oposição radical aos princípios da doutrina cristã veio enfim a converter-se em ardente choque de tensões internas e externas, que levou a esse extermínio de vidas humanas e destruição de bens, que estamos vendo e a que assistimos com profunda pena? A guerra, funesta conseqüência e fruto das condições sociais descritas, bem longe de lhes sustar o influxo e o desenvolvimento, promove-o, acelera-o, amplifica-o, com tanto maior ruína, quanto mais se prolonga, tornando a catástrofe cada vez mais geral.

11. Das nossas palavras contra o materialismo do último século e do tempo presente, argumentaria mal quem deduzisse uma condenação do progresso técnico. Não; nós não condenamos o que é dom de Deus; o qual, como faz surgir o pão das leiras da terra, assim nos dias da criação do mundo escondeu nas entranhas mais profundas do solo tesouros de fogo, de metais, de pedras preciosas, afim de que um dia a mão do homem os escavasse para a sua necessidade, para as suas obras, para o seu progresso. A Igreja, mãe de tantas universidades da Europa, que ainda hoje exalta e reúne os mais ousados mestres das ciências, perscrutadores da natureza, não ignora porém que de todos os bens e até da liberdade, se pode fazer uso digno de louvor e de prêmio, ou pelo contrário de censura e condenação. Assim sucedeu que o espírito e a tendência com que muita vez se usou do progresso técnico, foram causa de que na hora que passa, a técnica deva expiar o seu erro e ser como punidora de si mesma; criando instrumentos de ruína, que destroem hoje o que ontem edificou.

Remédio: voltar à fé e à observância da lei moral

12. Perante a vastidão do desastre, originado dos erros indicados, não se vê outro remédio, senão a volta aos altares, ao pé dos quais inumeráveis gerações de crentes têm encontrado a bênção e a energia moral necessárias ao cumprimento dos próprios deveres; à fé que iluminava indivíduos e sociedades, ensina os direitos e os deveres competentes a cada um; as normas prudentes e inabaláveis da ordem social, que tanto no terreno nacional como no internacional, levantam uma barreira igualmente eficaz contra o abuso da liberdade e contra o abuso do poder. Mas o apelo a estas benéficas fontes deve ressoar alto, persistente, universal na hora em que estiver para desaparecer a ordem antiga e ceder o passo e o lugar a uma nova.

13. A futura reconstrução poderá oferecer preciosas oportunidades de promover o bem, não isentas porém do perigo de cair em erros e com os erros favorecer o mal; e exigirá seriedade prudente e madura reflexão, não só por causa da gigantesca dificuldade da empresa, mas também pelas graves conseqüências que, se falhasse, produziria no campo material e espiritual; exigirá inteligências de largas vistas e vontades de firmes propósitos, homens corajosos e ativos, mas sobretudo e acima de tudo consciências, que nos planos, nas deliberações e nas ações sejam animadas, movidas e sustentadas por um vivo sentimento de responsabilidade, e não hesitem a inclinar-se perante as santas leis de Deus; porque se com a força plasmadora na ordem material não se aliar suma ponderação e sincero propósito na ordem moral, verificar-se-á sem dúvida a sentença de santo Agostinho: "Correm bem, mas não correm no caminho. Quanto mais correm, mais erram, porque mais se extraviam".(2)

14. Nem seria a primeira vez que homens, esperançados de coroar-se com os louros de vitórias bélicas, sonhassem dar ao mundo uma ordem nova, mostrando novos caminhos que a seu parecer conduziriam ao bem-estar, à prosperidade e ao progresso. Mas todas as vezes que cederam à tentação de impor a sua construção contra os ditames da razão, da moderação, da justiça e da nobre humanidade, encontraram-se caídos por terra, a contemplar assombrados as ruínas de esperanças falidas, e de projetos abortados. A história ensina que os tratados de paz estipulados com espírito e condições contrastantes, quer com os ditames morais, quer com uma genuína sabedoria política, tiveram sempre vida raquítica e breve, descobrindo assim e atestando um erro de cálculo certamente humano, mas nem por isso menos funesto.

15. Ora, as ruínas desta guerra são demasiado ingentes para que se lhes possam acrescentar ainda as de uma paz ilusória; e por isso, para evitar tamanha desgraça, convém que nela colaborem com sinceridade de vontade e de energia, com propósito de generosa contribuição, não só este ou aquele partido, não só este ou aquele povo, mas todos os povos, ou antes a humanidade inteira. É uma empresa universal de bem comum, que requer a colaboração da cristandade, por causa dos aspectos religiosos e morais do novo edifício que se quer construir.

16. Usamos, portanto, de um nosso direito, ou melhor, cumprimos um nosso dever, se hoje na vigília do Santo Natal, divina aurora de esperança e de paz para o mundo, com a autoridade do nosso ministério apostólico e o caloroso incitamento do nosso coração, chamamos a atenção e a consideração do universo inteiro para os perigos que insidiam e ameaçam uma paz, que deve ser base conveniente de uma ordem nova e corresponder à expectativa e aos votos dos povos por um mais tranquilo porvir.

Bases de uma verdadeira ordem nova

17. Tal ordem nova, que todos os povos anelam ver realizada depois das provações e ruínas desta guerra, tem de ser levantada sobre a rocha inabalável da lei moral, manifestada pelo próprio Criador por meio da ordem natural, e por ele insculpida nos corações dos homens com caracteres indeléveis; lei moral cuja observância deve ser inculcada e promovida pela opinião pública de todas as nações e de todos os Estados com tal unanimidade de voz e de força, que ninguém se possa atrever a pô-la em dúvida ou atenuar-lhe o vínculo obrigatório.

18. Como farol resplandecente, deve com a luz de seus princípios dirigir o curso da atividade dos homens e dos Estados, os quais terão de seguir as suas admoestações e indicações salutares e profícuas, se não quiserem condenar à tempestade e ao naufrágio todo o trabalho e esforço para estabelecer uma ordem nova. Resumindo, pois, e completando o que em outras ocasiões foi por nós exposto, insistimos também agora sobre alguns pressupostos essenciais de uma ordem internacional, que, assegurando a todos os povos uma paz justa e duradoura, seja fecundo de bem-estar e prosperidade.

1) Nada de agressões contra a liberdade e a vida das nações mais pequenas

19. No campo de uma nova ordem fundada sobre princípios morais, não há lugar para a lesão da liberdade, da integridade e da segurança das outras nações, qualquer seja a sua extensão territorial ou a sua capacidade de defesa. Se é inevitável que os grandes Estados, pelas suas maiores possibilidades e poderio, tracem o caminho para a constituição de grupos econômicos entre si e as nações mais pequenas e mais fracas; é, todavia, incontestável - como para todos; no âmbito do interesse geral - o direito destas ao respeito da sua liberdade no campo político, à guarda eficaz, nas contendas entre os Estados, daquela neutralidade que lhes compete segundo o direito natural e das gentes, à tutela do seu livre desenvolvimento econômico, pois que só em tal modo poderão conseguir adequadamente o bem comum, o bem-estar material e espiritual do próprio povo.

2) Nem opressão das minorias étnicas e das suas peculiaridades culturais

20. No campo de uma nova ordem fundada sobre princípios morais, não há lugar para a opressão manifesta ou súbdola das peculiaridades culturais ou lingüísticas das minorias nacionais, para o impedimento ou contração das suas possibilidades econômicas, para a limitação ou abolição da sua natural fecundidade. Quanto mais conscienciosamente a competente autoridade do Estado respeitar aos direitos das minorias, tanto mais segura e eficazmente lhes pode exigir o leal cumprimento dos deveres civis, como aos outros cidadãos.

3) Nem açambarcamento injusto das riquezas naturais por parte de algumas nações com prejuízo das outras

21. No campo de uma nova ordem fundada sobre princípios morais, não há lugar para acanhados cálculos egoísticos, tendentes a açambarcar as fontes econômicas e as matérias de uso comum, de modo que as nações menos favorecidas pela natureza fiquem delas excluídas. Ao qual propósito é-nos de suma consolação ver afirmada a necessidade da participação de todos os bens da terra, ainda naquelas nações que ao atuar este princípio pertenceriam à categoria das "nações que dão" e não "das que recebem". Mas é conforme a equidade que a solução dessa questão, decisiva para a economia do mundo, se faça metódica e progressivamente com as necessárias garantias, e aproveitando a lição das faltas e omissões do passado. Se na futura paz não se arcasse corajosamente com este ponto, ficaria nas relações entre os povos uma profunda e vasta raiz a germinar amargos contrastes e exasperadas invejas, que acabariam por levar a novos conflitos. Note-se, porém, que a solução satisfatória deste problema está estreitamente ligada com outro princípio fundamental de uma ordem nova, do qual falamos no ponto seguinte.

4) Nem corrida aos armamentos nem violação dos tratados 

22. No campo de uma nova ordem fundada sobre princípios morais, uma vez eliminados os focos mais perigosos de conflitos armados, não há lugar para uma guerra total, nem para uma corrida desenfreada aos armamentos. Não se deve permitir que a calamidade de uma guerra mundial com as suas ruínas econômicas e sociais, com as suas aberrações e perturbações morais, se despenhe pela terceira vez sobre a humanidade. Para que esta seja tutelada contra tal flagelo é necessário que com seriedade e lealdade se proceda a uma limitação progressiva e adequada dos armamentos. O desequilíbrio entre o exagerado armamento dos Estados poderosos e o deficiente armamento dos fracos cria um perigo para a conservação da tranqüilidade e da paz dos povos e aconselha a descer a uma ampla e proporcionada limitação no fabrico e posse de armas ofensivas.

23. Segundo a medida que se realizar o desarmamento, será preciso estabelecer meios apropriados, honrosos para todos e eficazes, a fim de restituir a norma "os tratados devem ser observados" (Pacta sunt servanda), a função vital e moral que lhe compete nas relações jurídicas entre os Estados. Esta norma, que no passado sofreu crises preocupantes e infrações inegáveis, tem por isso mesmo encontrado contra si uma desconfiança quase insanável nos vários povos e respectivos governantes. Para que renasça a confiança recíproca, devem surgir instituições, que, conciliando o respeito geral, se dediquem ao nobilíssimo ofício de garantir o sincero cumprimento dos tratados, e de promover, segundo os princípios do direito e eqüidade, oportunas correções ou revisões.

24. Não nos passa despercebido o cúmulo de dificuldades que será preciso superar e a dose quase sobre-humana de boa vontade que se requer de ambas as partes, para que concordem em solucionar a dupla empresa aqui traçada. Mas este trabalho comum é tão essencial para uma paz duradoura, que nada deve embargar os homens de Estado responsáveis de o empreenderem e nele cooperarem com as forças de uma boa vontade que, olhando ao bem futuro, vença as dolorosas recordações de tentativas frustradas no passado, e não se deixe aterrar à vista do gigantesco vigor que se requer para semelhante tarefa. 

5) Nem perseguição da religião e da Igreja

25. No campo de uma nova ordem fundada sobre princípios morais, não há lugar para a perseguição da religião e da Igreja. Da fé viva em um Deus pessoal transcendente deriva uma clara e constante energia moral que informa todo o curso da vida; porque a fé não é só uma virtude, mas a porta divina por onde entram no templo da alma todas as virtudes e se forma aquele caráter forte e constante que não vacila nas lutas da razão e da justiça. Isso vale em todos os tempos; porém muito mais num tempo em que tanto do homem de Estado como do último cidadão se exige a máxima coragem e energia moral para reconstruir uma nova Europa e um novo mundo sobre as ruínas que o conflito mundial com a sua violência, com o ódio e a divisão dos espíritos acumulou. Quanto à questão social em particular, que ao fim da guerra se apresentará mais aguda, aí estão as normas traçadas pelos nossos predecessores e por nós mesmos para a resolver. Convém notar, porém, que elas só se poderão aplicar plenamente e dar todo o seu fruto, se os homens de Estado e os povos, os patrões e os operários estiverem animados da fé em um Deus pessoal, legislador e juiz supremo, a quem todos devem responder pelas próprias ações. Porque ao passo que a incredulidade, que se revolta contra Deus, ordenador do universo, é a mais perigosa inimiga de uma justa ordem nova, ao contrário todo o homem que crê em Deus será um seu decidido fautor e paladino. Quem crê em Cristo, na sua divindade, na sua lei, na sua obra de amor e de fraternidade entre os homens, contribuirá com elementos particularmente preciosos para a reconstrução social; com maior razão e mais contribuirão os homens de Estado, se se mostrarem prontos a franquear as portas e aplainar o caminho à Igreja de Cristo, para que, livre e sem peias, pondo as suas energias sobrenaturais ao serviço do bom entendimento entre os povos da paz, possa cooperar com seu zelo e com o seu amor no imenso trabalho de curar as feridas da guerra.

26. Torna-se-nos por isso inexplicável como em algumas regiões repetidas determinações embaraçam o caminho à mensagem da fé cristã, enquanto dão ampla e livre passagem a uma propaganda que a combate. Subtraem a juventude à benéfica influência da família e alheiam-na da Igreja; educam-na num espírito adverso a Cristo, instilando-lhe idéias, máximas, e práticas anticristãs; tornam árdua e embaraçada a obra da Igreja na cura de almas e no exercício da beneficência; desconhecem e rejeitam o seu influxo moral sobre os indivíduos e a sociedade; determinações estas que longe de terem sido mitigadas ou abolidas no decurso da guerra, têm sido sob diversos pontos de vista progressivamente agravadas. Que tudo isto e mais ainda tenha podido continuar em meio dos sofrimentos da hora presente é triste sinal do espírito com que os inimigos da Igreja impõem aos fiéis, além de todos os outros não pequenos sacrifícios, ainda o peso angustioso de uma terrível ansiedade a amargurar e oprimir as consciências.

27. Nós amamos, - Deus nos é testemunha! com igual afeto a todos os povos sem exceção; e para evitar até a aparência de nos deixarmos levar por espírito de facção, temo-nos imposto até agora a máxima reserva; mas as disposições contra a Igreja e os fins que com elas se pretendem, são tais que nos sentimos na obrigação, em nome da verdade, a proferir uma palavra, também para que não venha, por desgraça, a nascer desorientação entre os fiéis. 

Saudação à Roma cristã

28. Nós contemplamos hoje, amados filhos, ao Homem Deus nascido numa gruta, para de novo levantar o homem àquela grandeza, donde tinha caído por sua culpa; para o repor sobre o trono de liberdade, de justiça e de honra que os séculos dos falsos deuses lhe tinham negado. O fundamento daquele trono será o Calvário; o seu ornato não será o ouro e a prata, mas o sangue de Cristo, sangue divino que há vinte séculos corre sobre o mundo e purpureia as faces da sua esposa a Igreja, e, purificando, consagrando, santificando, glorificando os seus filhos, se torna candor de paraíso.

29. Ó Roma cristã, aquele sangue é a tua vida; por aquele sangue tu és grande e iluminas com.tua grandeza as próprias ruínas e restos das tuas grandezas pagãs, e purificas e consagras os códigos da sapiência jurídica dos pretores e dos Césares: Tu és mãe de uma justiça mais alta e mais humana, que te honra a ti, a tua sede, e quem te escuta. Tu és farol de civilização, e a Europa civil e o mundo devem-te quanto de mais sagrado e de mais santo, quanto de mais sábio e mais honesto exalta os povos e torna bela a sua história. Tu és mãe de caridade: os teus fastos, os teus monumentos, os teus hospícios, os teus mosteiros, os teus conventos, os teus heróis e as tuas heroínas, os teus arautos e os teus missionários, as tuas épocas e os teus séculos, com suas escolas e universidades, atestam os triunfos da tua caridade, que tudo abraça, tudo sofre, tudo espera, tudo opera, para se fazer tudo a todos, e a todos confortar e aliviar, a todos sarar e chamar à liberdade dada ao homem por Cristo, e tranqüilizar a todos naquela paz que irmana os povos e de todos os homens, sob todos os climas, quaisquer sejam as línguas e os costumes que os distingam, faz uma só família e do mundo uma pátria comum.

30. Desta Roma, centro, cidadela e mestra do cristianismo, cidade que Cristo, mais do que os Césares, fez eterna no tempo, nós movidos pelo ardente e vivíssimo desejo do bem de cada povo e da humanidade inteira, a todos dirigimos a nossa voz rogando e suplicando que venha depressa o dia em que nas terras, onde hoje a hostilidade contra Deus e contra o seu Cristo arrasta os homens à ruína temporal e eterna, prevaleçam melhor conhecimento da religião e novos propósitos; o dia em que sobre o berço da nova ordem dos povos resplandeça a estrela de Belém anunciadora de um novo espírito que mova a cantar com os anjos: "Glória a Deus no mais alto dos céus", e a proclamar, como dom enfim concedido pelo céu a todas as gentes: "E paz aos homens de boa vontade". Despontada a aurora daquele dia, com que júbilo nações e governos, livres dos temores de insídias e de verem renovar-se os conflitos, transformarão as espadas, que rasgam agora peitos humanos, em arados que sulquem, ao sol da bênção divina, o fecundo seio da terra, para dela arrancarem um pão, banhado sim de suor, mas não já de sangue e de lágrimas!

31. Nesta esperança e com esta anelante oração sobre os lábios, enviamos a nossa saudação e a nossa bênção a todos os nossos filhos do mundo inteiro. Desça a nossa bênção mais copiosa sobre aqueles - sacerdotes, religiosos e leigos - que sofrem penas e angústias pela sua fé; desça também sobre os que, embora não pertençam ao corpo visível da Igreja católica, estão perto de nós pela fé em Deus e em Jesus Cristo e conosco concordam na ordem e nos fins fundamentais da paz; desça com particular afeto sobre quantos gemem na tristeza, duramente torturados pelas angústias da hora presente. Seja escudo a quantos militam sob as armas; refrigério aos doentes e feridos; conforto aos prisioneiros, aos expulsos da terra pátria, aos que estão longe do lar doméstico, aos deportados para terras estrangeiras, aos milhões de infelizes que a todas as horas lutam contra os espantosos estímulos da fome. Seja bálsamo a todas as dores e desventuras; seja amparo e consolação a todos os mesquinhos e necessitados que esperam uma palavra amiga que derrame em seus corações força, coragem, suavidade de compaixão e de auxílio fraterno. Repouse enfim a nossa bênção sobre aquelas almas e sobre aquelas mãos piedosas que com inexaurível generosidade e sacrifício nos têm dado com que poder, mais do que permitia a estreiteza dos nossos meios, enxugar as lágrimas, suavizar a pobreza de muitos, especialmente dos mais pobres e abandonados entre as vítimas da guerra; fazendo assim ver por experiência como a bondade e benignidade de Deus, cuja suma e inefável revelação é o Menino do presépio que nos enriqueceu com sua pobreza, não cessam nunca, através dos anos e das desventuras, de viver e de operar na sua Igreja.

A todos concedemos com profundo amor paterno, da plenitude do nosso coração, a bênção apostólica.

PIO PP. XII

Notas

(1) In Nativ. Domini, in I Vesp., antiph. I.
(2) Sermo 141, c. 4; Migne, PL 38,777.