São Francisco de Sales
O Tratado do Amor de Deus
Livro sexto - Capítulo VIII
Estando,
pois, assim recolhida dentro de si mesma em Deus ou diante de Deus, a alma torna-se
às vezes tão docemente atenta à bondade do seu bem-amado, que lhe parece que a sua
atenção quase não seja atenção, tão simples e delicadamente é exercida: como sucede
em certos rios que correm tão doce e igualmente, que, aos que os olham ou que sobre
eles navegam, parece não verem nem sentirem nenhum movimento, porque absolutamente
não se vêem tais rios ondular nem crispar-se. E é a esse amável repouso da alma
que a bem-aventurada virgem Teresa de Jesus chama oração de quietude, quase não
diferente daquilo que ela mesma denomina sono das potências, se todavia bem o
entendo.
De
certo, os amantes humanos contentam-se às vezes com estar junto ou à vista da
pessoa a quem amam, sem lhe falarem, e sem discorrerem consigo mesmos nem sobre
ela nem sobre as suas perfeições, saciados, ao que parece, e satisfeitos de saborearem
essa bem-amada presença, não por qualquer consideração que sobre ela façam, mas
por um certo aplacamento e repouso que seu espírito haure nela. Meu bem-amado me é um ramalhete de mirra, ficará
sobre meu seio (Cânt 1, 12). Meu
bem-amado é meu, e eu sou dele, que se apascenta entre os lírios, enquanto o dia
ascende e as sombras se inclinam (Cânt 2, 16-17). Mostrai-me, pois, ó amigo de minha alma, onde pasceis, onde vos deitais
ao meio-dia (Cânt 1, 6). Estais vendo, Teótimo, como a santa Sulamita se
contenta com saber que seu bem-amado esteja com ela, ou no seu parque, ou noutro
lugar, desde que saiba onde ele está: por isso ela a Sulamita está bem calma, bem
tranquila e em repouso.
Ora,
esse repouso passa algumas vezes tão adiante na sua tranquilidade, que toda a alma
e todas as potências desta ficam como que adormecidas, sem fazerem nenhum movimento
nem ação qualquer, exceto a vontade; a qual aliás não faz nenhuma outra coisa senão
receber o contentamento e a satisfação que a presença do bem-amado lhe dá. E o
que é ainda mais admirável é que a vontade não percebe essa satisfação e esse
contentamento que ela recebe, fruindo insensivelmente dele, visto que não pensa
em si, mas naquele cuja presença lhe dá esse prazer; como múltiplas vezes sucede
que, surpreendidos por um sono leve, nós apenas entrevemos aquilo que nossos amigos
dizem ao redor de nós, ou quase imperceptivelmente sentimos as carícias que eles
nos fazem, sem sentirmos que sentimos.
Não
obstante, a alma que nesse doce repouso goza desse delicado sentimento da presença
divina, embora não perceba esse gozo, testemunha todavia claramente o quanto essa
felicidade lhe é preciosa e amável, quando lha querem tirar, ou quando alguma coisa
a desvia dela: porque então a pobre alma faz queixas, grita, às vezes até chora
como uma criancinha a quem acordaram antes de haver dormido e bastante, a qual,
pela dor que sente com o seu despertar, bem mostra a satisfação que tinha no seu
sono. Pelo que o divino pastor adjura as filhas
de Sião, pelos corços e veados das campinas, a que não acordem a sua bem-amada
até que ela o queira (Cânt 8, 4), isto é, até que ela acorde por si mesma. Não,
Teótimo, a alma assim tranquila em seu Deus não deixaria esse repouso por todos
os maiores bens do mundo.
Tal
foi quase a quietude da santíssima Madalena quando, sentada aos pés de seu Mestre, escutava a sua santa palavra (Lc 10,
39). Vede-a, rogo-vos: ela está sentada numa profunda tranquilidade, não diz
palavra, não chora, não soluça, não suspira, não se mexe, não ora. Marta, azafamada,
passa e terna a passar por dentre da saleta; Maria não pensa nisso. E que faz
então? Não faz nada, mas escuta. E que quer dizer escuta? Quer dizer está ali como
um vaso de honra a receber gota a gota a
mirra de suavidade que os lábios de seu bem-amado destilavam no seu coração
(Cânt 5, 13); e esse divina amante, cioso do amoroso sono e repouso daquela bem-amada,
repreendeu Marta, que queria acordá-la: Marta,
Marta, estás muita atarefada, e te perturbas com muitas coisas: uma só entretanto
é necessária: Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada (Lc 10,
41-42). Qual foi, porém, a parte ou porção de Maria? Ficar em paz, em repouso,
em quietude ao pé do seu doce Jesus.
Os
pintores pintam ordinariamente e dileto São João na ceia, não somente repousando,
mas dormindo sobre o peito de seu Mestre, porque ele ali esteve sentado à maneira
dos Levantinos, de modo que a sua cabeça tendia para a seio de seu caro Mestre;
e como ele não dormia sobre este de sono corporal, não havendo nenhuma verossimilhança
nisto, assim também não duvido que, achando-se tão perto da fonte das doçuras
eternas, ele ali não tivesse um profundo, místico e doce sono, como um filho de
amor que, agarrado ao seio de sua mãe, mama dormindo, e dorme mamando. Ó Deus!
que delícias para aquele Benjamim, filho da alegria de Salvador, de dormir assim
nos braços de seu Pai, que, no dia seguinte, como o Benoni, filho de dor, o recomendou
aos doces seios de sua mãe! Nada é mais desejável à criancinha, quer esteja
acordada quer durma, do que o peito de seu pai e o seio de sua mãe.
Quando,
pois, estiverdes nessa simples e pura confiança filial junto a Nosso Senhor, ficai
nela, meu caro Teótimo, sem absolutamente vos mexerdes para fazerdes atos sensíveis,
nem do entendimento nem da vontade; porque esse amor de simples confiança e
esse adormecimento amoroso de vosso espírito nos braços de Salvador abrange por
excelência tudo e que aqui e acolá ides procurando para vosso gosto. É melhor
dormir sobre esse sagrado peito, da que velar alhures onde quer que seja.