São Francisco de Sales
Tratado do amor de Deus
Livro oitavo, Capítulo XIV
São Basílio diz que a vontade de Deus
nos é manifestada por Suas ordens ou mandamentos, e que então nada há que
deliberar; porque se deve fazer com simplicidade aquilo que é ordenado; mas
que, quanto ao mais, na nossa liberdade está o escolhermos a nosso gosto o que
bem nos parecer, embora não se deva fazer tudo o que é lícito, mas só o que é
conveniente; e que, enfim, para bem discernir o que é conveniente, deve-se ouvir
o conselho do prudente pai espiritual.
Mas, Teótimo advirto-vos de uma tentação
aborrecida que múltiplas vezes sobrevém às almas que têm grande desejo de em tudo
seguir aquilo que é mas conforme à vontade de Deus; pois em todas, as
ocorrências o inimigo as põe em dúvida sobre se é a vontade de Deus que elas
façam uma coisa de preferência a outra; como, por exemplo, se é vontade de Deus
que elas comam com o amigo ou não comam, que usem roupas cinzentas ou pretas,
que jejuem na sexta-feira ou o sábado, que vão à recreação ou que dela se
abstenha coisa em que elas consomem muito tempo; e, enquanto se ocupam e embaraçam
em querer discernir o que melhor, perdem inutilmente o tempo de fazer vários
bens, cuja execução daria mais glória a Deus do que poderia dá-la o
discernimento do bom e do melhor em que elas se distraíram.
Não se costuma pesar a moeda miúda, mas
some nas moedas de importância. O comércio seria por demais aborrecido e
consumiria muito tempo se fosse preciso pesar os soldos, os "liards",
os dinheiros e as pitas[1].
Assim não se devem pesar toda sorte de pequeninas ações para saber se elas
valem mais do que outras. Há mesmo muita superstição em querer fazer esse
exame: porquanto, a que propósito se há de pôr em dificuldade se é melhor ouvir
missa numa igreja do que noutra, fiar do que coser, dar esmola a um homem do
que a uma mulher? Não é servir bem um amo empregar tanto tempo em considerar o
que se deve fazer quanto em fazer o que é necessário. Cumpre medirmos a nossa
atenção pela importância daquilo que empreendemos: seria um cuidado desregrado
dar-se tanto trabalho para deliberar sobre uma viagem de um dia a fazer, como
sobre uma de trezentas ou quatrocentas léguas.
A escolha da vocação, o projeto de algum
negócio de longa consequência, de alguma obra de longo fôlego, ou de alguma
despesa muito grande, a mudança de residência, a escolha das conversas, e tais
coisas semelhantes, merecem que pensemos seriamente sobre o que é mais conforme
à vontade divina. Mas nas pequenas ações diárias, em que a própria falta não é
nem de consequência nem irreparável, que necessidade há de fazer de atarefado,
de atento e de embaraçado em fazer consultas importunas? A que fim me hei de
pôr em despesas para saber se Deus gosta mais de que eu reze o rosário ou o
ofício de Nossa Senhora, já que não haveria tanta diferença entre um e outro
que para isso seja preciso fazer uma grande investigação? que eu vá ao hospital
visitar os doentes, de preferência a ir às vésperas, que eu vá ao sermão de
preferência a ir a uma Igreja onde há indulgência? Ordinariamente não há numa
dessas coisas mais do que noutra nada tão aparentemente notável, que por isso
se deva entrar em grande liberação. Deve-se andar com toda boa fé e sem sutileza
em tais ocasiões; e, como diz São Basílio, fazer o que bem nos parecer, para
não cansarmos o espírito, não perdermos o tempo e não nos põem em perigo de
inquietação, escrúpulo e superstição. Ora, eu aqui entendo sempre o caso em que
não há grande desproporção entre uma obra e outra, e não se encontra
circunstância considerável de uma parte mais do da outra.
Nas próprias coisas de consequência,
deve-se ser humilde, e não pensar achar a vontade de Deus à força de exame e de
sutileza de raciocínio. Mas, depois de havermos pedido a luz do Espírito Santo,
de te termos aplicado a nossa consideração à indagação do Seu plácito, tomado o
conselho do nosso diretor e, se for o caso, de outras duas ou três pessoas
espirituais, devemo-nos resolver e determinar em nome de Deus, e não devemos
depois pôr em dúvida a nossa escolha, mas cultivá-la e sustentá-la devota,
tranquila e constantemente. E, embora as dificuldades, tentações e diversidades
de sucessos que se encontrem no progresso da execução do nosso desígnio possam
suscitar-nos alguma desconfiança de não havermos escolhido bem, devemos todavia
permanecer firmes, e não olhar a tudo
isso, considerar que, se houvéssemos feito outra escolha, talvez tivéssemos
achado cem vezes pior: além de que não sabemos se Deus quer que sejamos
exercitados na consolação ou na tribulação, na paz ou na guerra. Esta resolução
santamente tomada, nunca se deve duvidar da santidade da execução: porquanto,
se ela não depende de nós, não pode falhar; fazer diversamente é uma prova de
grande amor-próprio ou de infância, fraqueza ou parvoíce de espírito.
[1]
Pitas, moedinha de cobre, cunhada em
Poitiers, latim Pictavum, valendo um
quarto de um dinheiro.