A dor aperfeiçoa as almas,
como um escultor tornando-as mais belas
Ah! Mãe de todas a mais aflita!
Ó Maria, a Vós é imposto assistir Jesus moribundo,
mas não vos é facultado procurar-Lhe alívio algum.
Maria ouve o Filho dizer que tem sede,
sem que Lhe seja permitido dar-Lhe um pouco de água para dessedentá-Lo.
Pode dizer-lhe apenas, conforme as palavras de São Vicente Ferrer:
"Meu Filho, tenho tão somente a água de minhas lágrimas."
(Santo Afonso Maria de Ligório)
Detenhamo-nos um momento neste vértice: ele é luminoso. A dor não fere, pois, somente aqueles que se esquecem de Deus neste pobre mundo, nem os que aqui se corrompem. Os justos também sofrem; os bons também têm mágoas. Eles sofrem para se tornarem mais justos; têm provações que os tornam melhores. Discutamos sem pressa esta questão. Iluminados pela triste, porém, penetrante luz da dor, vamos começar a compreender a vida.
Quando se saberá que o homem é o seu próprio escultor; que Deus o colocou na terra no estado de gérmen, precisamente para que ele se criasse; para que desse mármore frio e informe, sem individualidade, personalidade nem beleza, o homem tirasse uma estátua viva? Mas, principalmente, quando se saberá que, neste trabalho, Deus lhe deu a dor como auxiliar?
Ó homem, não eras belo, grande nem santo; e o és agora. Porque? Porque sofreste.
Vede como nascem os homens. Todos no estado de gérmen. Alguns disformes; os melhores apresentam um fundo estéril e seco, uma seiva áspera. A criança é impiedosa, disse um grande observador. O jovem revela pouca sentimentalidade; a sua vivacidade natural, o seu entusiasmo não vem do coração; e nas suas palavras imperiosas, nos gestos de desdém, ele manifesta a ausência de bondade.
O seu coração não nasceu ainda, diz-se então. Tem graça, espírito, imaginação, ciência; no entanto, não fala bem. Que lhe falta? A dor, que ele não conheceu ainda.
O tempo, as provações, os sofrimentos submissamente suportados são elementos indispensáveis para que o coração adquira doçura e a alma a sua elevação, a sua beleza moral.
Certas cordas, e são precisamente as mais belas, só vibram no homem quando as lágrimas as umedecem. E é por isso que a dor é tão abundante. A onda que vem, não espera que a vaga precedente tenha passado. Dores do espírito, dores do coração, moléstias e sofrimentos de todas a espécie, a inextinguível amargura corre indefinitidamente e envolve a vida inteira.
Porque? pergunta o homem, atônito.
Porque se esvai continuamente a felicidade?
Porque a dor jamais finda?
Porque? Para que nos aperfeiçoemos para que nos cinzele o lento e delicado trabalho do buril.
A uns são aplicados esses grandes golpes da dor, semelhantes às possantes marteladas com que Michelangelo tirou do bloco de mármore a estátua de Moisés. Outros só têm esse contato contínuo, minucioso, penetrante e delicado do torno que dá a um diamante a sua beleza, o seu brilho, o seu fogo. Mas tanto em um quanto nos outros, em todas as almas, a mesma operação inteligente da dor as auxilia nas aspirações da beleza perfeita.
A dor cabe, portanto, uma pesada e incessante tarefa; não vos surpreenda, pois, a sua freqüência. Ela se aplica com insistência nos vossos pontos frágeis. Sois fraco; cumpre que ela vos torne forte; sois forte; convêm que ela vos torne fraco.
Eis uma pessoa cujo coração é afetuoso; a dor vem feri-la, para proporcionar-lhe no sacrifício e no esquecimento de si mesma um amor que não seja muito humano, porém nobre, elevado, ativo e perseverante. Eis outra cujo caráter é firme e generoso, mas cuja personalidade se expande exageradamente; a dor acode em seu auxílio.
Cumpre, certamente, que as lágrimas venham vivificar essa sensibilidade que se extingue ou esse amor que se dissipa. Almas tão altivas, tão pessoais, que vos deleitais na contemplação do vosso "eu", espere a dor; ela vos forçará a amar. E vós, corações amorosos, esperai-a também, receiosamente. Ela só permitirá que a vossa sensibilidade se torne generosidade e virtude.
Nós nos compreendemos, seguramente bastante o trabalho inteligente da dor; adoraríamos a mão invisível e terna que dirige o buril, se tivéssemos essa nítida percepção.
Quando não nos lisonjeamos e contemplamos calmamente a nossa alma, causa-nos surpresa a maneira justa e precisa pela qual a dor nos feriu.
E não somente ela desperta a alma com inteligência, revelando-lhe as lacunas, as sombras, os vícios, dando-lhes qualidades que lhe faltam; como também, muitas vezes, o seu cinzel se aplica nos pontos em que mais virentemente florescem as virtudes. Porque?
A fim de as fortalecer e aumentá-las, a fim de as desembaraçar de todo e qualquer obstáculo ao seu desenvolvimento. Sois paciente e bom; sereis assaltado por toda a sorte de enfados; sois generoso, vivereis entre egoístas. A vossa mais alta virtude será justamente a menos conhecida; a vossa mais bela qualidade procurará debalde a sua aplicação.
Apraz-vos a vida íntima da família, é possível que toda a vossa existência se passe sem a companheira desejada, ou talvez a percas pouco depois do vosso casamento. A vossa alma acariciava todos os sonhos da paternidade; nunca tereis filhos. Se tendes na alma um ponto sensível, é exatamente ali que a dor aplicará o seu buril; e embora a ninguém o tenhas revelado, a dor achará esse lugar. E si, por acaso, vós mesmo não conhecieis esse ponto, a dor vo-lo mostrará.
Compreendeis, portanto, que a dor é apenas um instrumento manejado por Alguém que conhece a vossa alma.
Quero indicar-vos outras provas disso.
Já notastes com que arte a dor se proporciona ás almas?
Sobe e desce, eleva-se ou abaixa-se com elas; faz-se delicada ou grosseira, conforme for necessário. Não sois sensiveis ás dores delicadas da alma; Deus vos enviará as duras fadigas do corpo. Não sentis as nobres preocupações da honra; Deus vos dará as penas vulgares da fortuna. Não vos magoam os santos sofrimentos do coração; Deus vos sugerirá as inquietações do espírito: não erra nunca o seu alvo, porquanto, se não puder atingir-vos a alma, ferirá o vosso corpo.
Vede, no entanto, como a dor se espiritualiza á medida que as almas se desprendem da terra.
Quem descreverá jamais sofrimentos sutis, incompreendidos pela multidão, reservados ao homem de gênio, ao poeta, aos espíritos superiores?
Como seria narrado ao martírio invisível e sublime que Deus opera no coração das mães, no enlevado coração das virgens e sos santos?
A vida é um crisol em que as almas se formam para o Céu; e nesse crisol elas são sempre afagadas pela chama que convêm á sua natureza. Vós que compreendeis o mistério da dor e aspirais á elevação e á santidade, deixai que o sofrimento vos torture.
Quem dirige o buril que vos fere, sabe melhor do que vós onde e como é necessário aplicá-lo.
Isto me conduz a outro ponto de vista ainda mais digno da nossa atenção, e do nosso interesse, tantos são os aspectos multiplos que se nos apresentam.
A dor supre o amor.
(Excertos do livro: A Dor - Monsenhor Bougaud)
PS: Grifos meus.