A dor purifica a alma de suas faltas
Há nesta triste terra outro perigo em nos encerrarmos nela, na exclusiva contemplação das coisas visíveis; e esse é o perigo de nos corrompermos, aviltando-nos, degradando-nos; é, enfim, o perigo de perdermos, ao contato do mal, a beleza da nossa alma.
Ora, sendo Deus a justiça infinita, o mal, mesmo o mais leve, não poderá tocar uma alma sem provocar imediatamente uma punição. O castigo, como já dizia o velho Homero, sempre acompanha o crime com um passo lento e certo. Cometendo um ato culpado, concedeis a Deus uma razão para que vos castigue. Com o cometimento de dez atos culpados, suscitais dez razões para a vossa punição. Imaginai o caso de cem ou mil ações repreensíveis! E se fizesseis de vossa vida uma trama em que mil culpabilidades de toda a espécie se encadeiassem num tecido sem fim?
Algumas vezes, quando um navio está em pleno mar, uma fenda diminuta se abre em seus flancos. A água por ali penetra, lentamente, gota a gota; se o comandante não remediar o mal, poucos dias após, o navio estará no fundo do oceano.
Grande e triste imagem do perigo das almas! Elas desceriam quase todas, lentamente, infalivelmente, aos abismos da justiça infinita, se não houvesse uma força expiatória, uma virtude purificante que servisse de contrapeso á multidão das suas faltas.
E por isso foi sempre considerado como o mais terrível de todos os castigos, para uma alma pecadora e impenitente, ignorar a dor, ser abandonada a uma felicidade sem nuvens. Há venturas que apavoram. Só podemos contemplá-la trêmulos e apreensivos.
Entrevedes desse modo o segundo papel da dor, a sua segunda e sublime missão. Quando o homem pecou, quando perdeu, ao contato do mal, a pureza de sua alma e o amor do bem, ao mesmo tempo que o generoso impulso que o arrebatava da terra, Deus o confia á dor.
Ela foi colocada junto ao mal, para o arrancar do coração do homem por meio da expiação. A dor purifica em suas chamas o homem culpado, como, ao contato do fogo, o ouro repele toda a escória da sua substância abrasada.
Não creio que nenhum homem, tendo a nítida sensação do bem e do mal, tente acusar a justiça de Deus. Quanto a mim, essa justiça não me parece somente um elemento necessário de Sua bondade; ela me atrai mais do que me repele. Um Deus que não soubesse punir, tratar-nos-ia com indiferença.
Eu não sentiria o peso da Sua mão, mas também não poderia beijar-Lhe os joelhos...
Não pretendo afirmar a suavidade desses golpes; diremos como podem ser amenizados; queremos unicamente agora mostrar a sua explicação e o seu fim útil, importante e sagrado aos olhos de Deus; notai, a arte profunda com que Deus criou a dor.
É quase inexato dizer que Deus criou a dor, pelo menos como hoje ela se manifesta. Deus não fez a dor, como não fez a morte; nasceram ambas no mesmo dia, essas desventuradas filhas do pecado, horrendas como ele, destinadas a ensinar ao homem que impunemente não se revoltaria contra a ordem eterna e, principalmente, encarregadas de submetê-lo a essa ordem por meios imprevistos, porém sublimes.
Semelhantes aos grandes mestres da arte que, dispondo apenas de ruínas e destroços, constróem soberbos templos, o amor infinito se apoderou da dor, no momento em que tristemente ela aparecia no mundo, e dela procurou fazer o grande meio de reabilitação das almas.
Querendo punir, pois que assim era necessário, mas querendo ainda mais perdoar. Tirando o bem do mal, empregando o mal na vitória do bem, Ele formou com a Sua justiça e o Seu amor um suplício que se pudesse tornar uma reabilitação. E no meio do mundo foi erguido um cadafalso que poderia ser um altar. Desse modo fez a dor...
E a fim de que fosse quase impossível ao homem não transformar sofrimento em expiação, eis como Deus procedeu. Disse: "O homem caminha para a sua perda por um triplice declive. Corrompe-se pelos atos que são compostos, a um tempo, de orgulho, concupiscência e revolta; pois bem, eu o lançarei, a despeito de sua vontade, com determinados intervalos, na humildade, na obediência e no sacrifício."
E desses três elementos, misteriosamente fundidos, Ele compôs a dor.
Aproximai-vos de um doente, de um moribundo. Em que estado se acha? Primeiramente, na humildade. Esse espírito tão vivo, tão brilhante, essa boca tão eloqüente, essa proclamada ciência dos negócios, onde tudo isso está? Essa mulher tão bela causa agora pavor. Todos os seus dons naturais despareceram.
A humildade se manifesta em tudo; eis o primeiro estado. Ele corresponde ao primeiro elemento de todo o mal, que é o orgulho. Examinai ainda a sua obediência passiva.
Ontem, não obedecia a ninguém, nem mesmo a Deus; hoje, cumpre-lhe obedecer a toda a gente, até mesmo aos seus servidores. E que sofrimento é o seu! Onde se oculta o sangue que lhe fervia nas veias, nos momentos de prazer? Circula agora mui lentamente ou com demasiada agitação. Ela se acha na obediência, na humilhação e na dor...
É isso, como vêdes, o inverso do pecado. Obtende desse doente um ato de adesão interior, um ato de amor e de resignação, e vereis como rapidamente será recuperada a sua saúde moral.
É assim que as almas não perecem. De tempos em tempos, Deus as lança na dor, forçando-as á expiação de suas faltas; e basta que elas consintam um pouco nisso, para que esse sofrimento voluntariamente aceito as regenere e as resgate, compensando-lhes as iniquidades.
E se é fácil ver, por uma composição metafísica, que a dor é um fruto da sabedoria, com mais facilidade ainda vemos que ela é um efeito do amor. Como a dor se proporciona a cada alma! Dir-se-ia que uma terna e invisível mão a dirige para os pontos em que é necessário despertar a vida. Com que inteligente teimosia volta sempre á região dos nossos corações! E que maravilhosos resultados determina!
Ela quase opera como um sacramento, ex opere operato, por sua própria virtude. Esse homem violento, imperioso, pessoal se torna acessível desde que a dor o feriu; estende-vos espontaneamente a mão, agradece-vos as menores atenções. Quanta humildade nasce da dor!
Aquele coração insensível agora vos quer, e vos suplica um pouco de afeto. O amor renasce nele com as lágrimas. Aquele mancebo, tão ousado contra Deus, inacessível a toda a luz do céu, e que vivia aturdido pelo surdo murmúrio de suas próprias paixões, sente que elas se tranquilizam, - como sucede a calmaria após a borrasca - desde que a dor o atinge.
Extingue-se o foco do mal; dissipam-se os seus impuros sonhos. Tudo o que constituia a vergonha de sua alma, o seu desespero de cristão, diminue, desaparece, ao contato da dor.
Assim, o homem orgulhoso se submeteu, enterneceu-se o insensível, acalmou-se aquele que se deixava arrebatar por suas paixões. A alma, enfim, deformada pelo mal, foi de novo forjada pela dor como numa bigorna divina.
Que sucederia, pois, ó meu Deus, se a alma aderisse á dor, se compreendesse a sua eficácia, se, a cada golpe de martelo, ela murmurasse um agradecimento; se, enfim, não permanecesse muda, inerte, cega, prostrada, porém inteligente, viva, ardente, aplaudindo o trabalho do celeste Operário!
Ó minha alma, conhece a fealdade de tuas faltas, as tuas perpétuas fraquezas, as tuas obscuridades de cada dia, as tuas vaidade e as tuas revoltas: lava-te nas tuas lágrimas. Não ouso aconselhar-te a que busques a dor; mas, quando ela vier, não a repilas. É uma amiga. Compreende o valor desse segundo batismo, do qual tão bela podes sair!
E tu, mãe, batiza os teus filhos nas tuas pobres dores. Quando eles nascem no meio de tuas grandes angústias, quando passas as noites a acalentar nos teus braços esses pobres e pequeninos entes que choram sem saber porque (oh! muito depressa o saberão!), não deixes inativa a soma desses sofrimentos. Coloca-os a render, sobre a cabeça de teus filhos, para que cheguem á idade dos perigos ricos do tesouro das lágrimas de sua mãe, de seus sofrimentos voluntariamente aceitos e corajosamente oferecidos em favor deles.
Deus fez, de fato, outra maravilha, tornando inestimável a dor submissamente recebida. É pouco para ela purificar uma alma; a sua virtude superabundante se aplica a todas as que nos são caras. É como o perfume de Aarão, que, depois de ter ungido e sagrado a sua cabeça, descia ao longo da barba e embalsamava até as últimas franjas de suas roupas. Lêde, no Gênesis, o admirável diálogo de Deus e Abraão; dez justos, vereis aí, podiam servir de contrapeso a milhares de culpados. Compreendereis a onipotência expiatória da dor.
Esse homem que jamais envia aos céus uma prece, que nenhuma homenagem dirige a Deus, que O contrista e, talvez, O insulte, sabeis porque vive e não é ferido pela dor? É que em torno dele há filhos que oram, uma esposa que chora, entes queridos que, colocando dores, méritos, virtudes, inocências num dos pratos da balança, fazem contrapeso ás iniquidades que ele coloca no outro.
E se os povos subsistem, se essas imensas oficinas do mal não rebentam sob o peso das graves desobediências á lei de Deus, é porque no meio deles há expiações voluntárias, homens que sofrem e se imolam por amor. E se, algumas vezes, acumulam-se as vergonhas, os crimes nas veias das nações, as desgraças também ali se acumulam; se um país desce ao abismo e dele remonta, procurai a razão.
Achareis grandes almas que livremente se sacrificaram; algumas dores imerecidas nobremente, santamente, sublimente suportadas; algumas gotas de sangue puro correndo por amor, para lavar imensas iniquidades.
Mas não insistamos mais nestas considerações de ordem geral. Outros pontos de vista nos atrai a atenção.
A dor vivifica e engrandece a alma.
(Excertos do livro: A Dor - Monsenhor Bougaud)
PS: Grifos meus.